As Memórias de Ander - Parte I

Não sei se fico triste ou orgulhoso, minha vida, apesar de intensa, durou muito pouco, não me arrependo das escolhas que fiz, não mais, apesar de que reconheço que nem sempre acertei nas minhas escolhas. Cá estou nessa cabana, vejo minha esposa cuidando de mim e a preocupação em seus olhos, não consigo me mexer direito, meus músculos doem muito com o mínimo de esforço, isso é humilhante, que um guerreiro como eu tenha que definhar dessa forma, morrer envenenado em uma cama e não em um campo de batalha com minhas armas em punho, nem sei dizer o quanto isso me atormenta.

Alana insiste para que eu continue rabiscando nesses pedaços de papel, ela diz que isso pode me ajudar a manter a mente sã, que foi por esse motivo que ela me ensinou a ler e a escrever. As intenções dela são boas, mas pra ser sincero eu não sou um desses bardos, não está em mim contar histórias, mas acho que posso tentar, sei que eles nunca irão ler mais gostaria de escrever uma carta para meus pais, contar minha história, tudo que eu fiz, tudo que eu passei.

Eu sou Ander, como todos do meu povo não ostento um sobrenome, eu cresci em uma tribo isolada nas florestas do continente, levávamos uma vida simples, sobrevivíamos a partir da caça e dos saques a outras tribos e pequenas cidades próximas, desde pequeno todo homem e mulher aprendia a lutar, aprendia a se defender, pois nós sabíamos que a vida não seria justa, somente aqueles capazes de se adaptar conseguiriam sobreviver.

Faz vinte um anos que nasci, numa pequena tenda feita com peles de urso e couro, trazido a vida por Kah, o guia de nossa tribo, era um ancião, um guerreiro velho e muito respeitado, segundo as lendas ele havia conseguido criar uma conexão tão forte com os deuses que podia até mesmo ouvir suas vozes e tentar interpretar suas vontades.

Fui o primeiro de cinco filhos, meus irmãos e irmãs... Sinto muita saudade deles, gostaria de poder abraçá-los de novo, de correr pela floresta com os gêmeos, olhar as estrelas com Gaire ou pescar com Jin, mas isso não vai acontecer, pelo menos não nessa vida. Antes eu tinha dito que não tinha arrependimentos, percebo agora que menti, gostaria de ter aproveitado mais meu tempo ao lado deles, de ter cultivado melhor suas amizades e conseguido me despedir de verdade.

Bom, mesmo que poucas ainda tenho minhas lembranças para me consolar, na verdade isso é tudo que me resta ultimamente, posso dizer que minha infância não foi ruim, a tribo era relativamente grande, muitos jovens nasceram no mesmo ciclo que eu, e logo fomos criados para viver em conjunto, aprendendo a lutar, caçar, a sobreviver, a confiar um nos outros.

Nos aventurávamos por toda a região, explorando as vastas florestas durante o dia e à noite, Kah era quem nos ensinava, o velho era um professor rigoroso, todos os dias pela manhã ele ficava parado no centro da vila, com uma postura ereta, os músculos rijos, impassível. Aos poucos os jovens iam se reunindo ao redor dele, mesmo assim sua postura não mudava muito. Somente quando todos aqueles com idade suficiente se reuniam a sua volta é que ele esboçava alguma reação, sem falar nada o velho guerreiro seguia caminhando para o centro da floresta.

Passávamos o dia todo na companhia dele, ao todo quinze crianças com idades entre 10 e 12 anos. Kah nos ensinava tudo, os costumes da tribo, por horas ele falava sobre como os deuses cuidavam de nós, como o mundo foi esculpido a partir do barro e a vida soprada em nós por Guh, que em sua forma de uma águia gigante viajava pelo mundo cuidando de seus filhos e punindo aqueles que mereciam ser punidos.

Eu lembro que ele nos levava para o centro da floresta até uma antiga escultura, um totem, que representava as diferentes formas de Guh. Ali sob seus olhos aprendemos a lutar, todos os dias sem exceção essa era a nossa rotina, passava o dia na floresta sob a supervisão de Kah e quando começava a anoitecer voltava para a tribo onde ficava com meus pais e meus irmãos, nos reuníamos em frente a uma grande fogueira e ouvíamos as historias sobre nosso povo.

Pensando agora sinto falta disso, mais do que posso imaginar. Como é engraçada a vida e as coisas que damos valor só depois que perdemos, eu consigo lembrar quando tudo mudou, eu tinha quatorze anos, era o dia da cerimônia de passagem eu e os outros do meu ciclo deixaríamos de ser crianças para nos tornarmos homens.

O ritual era feito diante de toda a tribo aos pés do totem de Guh, os iniciados formavam um semicírculo com Kah a nossa frente e o restante da tribo atrás, utilizando o sangue de um animal sacrificado, normalmente cobras caçadas por nós no dia anterior, elas eram mortas na hora e uma marca era feita em nosso fronte com o seu sangue ainda fresco.

A cerimônia era feita antes do nascer do sol para representar o nosso renascimento como homens em nossa sociedade. O inicio da cerimônia ocorreu normalmente, Kah passava de um lado para o outro olhando para todos os meninos e meninas ali parados, eu consigo me lembrar de sua expressão até hoje, ela continuava dura e impassível, mas seus olhos brilhavam com um certo orgulho.

- Guh!

- Guh!

- Guh!

Esse era o coro cantado por todos, como um mantra cada vez mais alto as vozes iam se unindo. Kah continuava cantarolando frases em um dialeto antigo.

- Abençoe aqueles com a força de Guh , dê a coragem para que esses jovens lutem com força e levem seu nome para as terras distantes.

A mão de Kah estava fria em contraste com o sangue quente e grudento que tocava minha testa, senti a pressão que ele fez em mim quando começou a desenhar o símbolo de Guh.

- Que Liren cuide de seus caminhos e mostrem a vocês as maravilhas de um cida em comunhão com a natureza.

- Guh!

- Guh!

- Guh!

-Que o grande guerreiro dos céus abra suas asas, andem por essa terra com orgulho e destemor.

A cerimônia já estava para acabar, foi quando tudo aconteceu Kah tinha ungido o último de nós, uma névoa começou a cobrir todo o local, as pessoas foram sumindo uma após a outra e o totem de Guh começou a esfarelar.

Então eu senti, grilhões apareceram no meu pulso com seu toque gelado provocando um choque que percorreu minha espinha. Lagrimas começaram a escorrer pelo meu rosto, acho que eu estava pressentindo tudo que iria acontecer, e ai o mundo ficou escuro. Quando acordei estava no mesmo lugar, mas todas as pessoas haviam sumido.

Rijo
Enviado por Rijo em 16/04/2020
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