Pantalla
Era estranho. Todo dia, ou quase, o ritual se repetia. Ao acordar, caminhar uns passos até os fundos da habitação onde se encontravam as facilidades de banheiro. Entre os primeiros procedimentos estava o olhar no espelho em cima da pia para reconhecer suas feições a inaugurar aquele novo dia.
Mas o que vinha a causar o espanto ainda difuso, ultimamente, era o brilho que emanava daquele vidro, junto com a imagem refletida, porém sem cintilação. Era como algo querendo estar sobreposto, ou algo querendo ser atendido. Da maneira como se olhava não era mais um espelho, antes uma superfície que, sim, podia exibir imagens que vinham de uma origem a distância, podia estar em qualquer lugar. Como uma tela, genérica. Chamou-a de Pantalla, em pensamento, por reminiscências familiares. Havia uma sensação, quase uma impressão física, recorrente ao seu anseio por comunicação.
Resolveu arriscar: “E aí, meu?”. “E aí, meu?”, recebeu a resposta.
Estava sintonizado! Não fazia ideia do que era o fenômeno, porém tinha a noção de que buscar explicações, no momento, só iria despender uma energia de que não se deveria disponibilizar. Havia aprendido o valor de não desperdiçar o vital e o essencial para o existir e para a resistência naquele espaço provisório. O importante agora era a conexão.
Tá me ouvindo bem? Estou, sim.
Com um mínimo de esforço a imagem foi ficando como que sem manchas, mais limpa. A nitidez alcançada não estava a dever à obtida com as atuais tecnologias de comunicação doméstica, na casa de alguns gigabytes. Não saberia definir, no entanto, se aquela espécie de “skype” era mais virtual ou imaginária; o quanto era sky ou éter.
E aí? Que saudade. Pois é, quanto tempo. Você sabe a falta que eu sinto de uma interlocução inteligente. Eu também, eu também. Como você está, me conta? Dizer que estou bem-na-medida-do-possível pode parecer um pouco de lugar comum, ou mesmo conformismo, mas eu te digo que é no sentido de estado de espírito. Sei como é. Pois eu te digo mais, que tudo o que ocorreu – que não era desejável, de jeito nenhum – pode nos dar a conhecer, no sistema de contrapesos que há no universo, algumas coisas as quais colocamos no prato dos benefícios. Pois se tudo fosse só desvantagem, nascer nem seria uma opção. Pois é, sabemos exatamente como é isso.
A conexão era excelente. Nada de travar ou congelar a imagem. Não havia este quê de sinal cair. Sinal não era a palavra que explicava o transporte daquela troca de dados e imagens. Dados e imagens talvez não fossem termos adequados tampouco. Então, queda de qualquer coisa da mesma forma não fazia sentido. Bastava a atenção, o único valor.
Vejamos que é a atividade mental a que nos obrigamos exercer a principal força capaz de mover o nosso espírito. Que bom ouvir isso, fico feliz. Não quer dizer que não haja as coisas práticas a cuidar: as há, são muitas e importantes, muito importantes. Mas de tudo podem me privar, não é mesmo?, das ideias é que não. O que eu posso dizer, num esforço de ser sintético – você me conhece – é que hoje eu sou uma pessoa inviável economicamente, mas o sangue que me corre ainda é quente.
Por alguns momentos a imagem parecia querer ficar com aqueles traços oblíquos, próprios de uma sincronização horizontal prestes a descalibrar. Era um sintoma muito antigo para o momento, só fazia sentido porque ele mesmo era antigo o suficiente para ser contemporâneo com sincronismos de raios catódicos. Sorriu ao se dar conta que o problema da imagem, na realidade, era reflexo da sua desatenção por instantes, devido aos movimentos no corredor externo. Bastava fixar a mente na sua ligação que a imagem estabilizava.
Certamente que eu te entendo, meu amigo, mas talvez haja apenas um pouco de exagero. Talvez. Mas, veja: quando nos referimos ao peculiar “tudo bem” parece que depois que o inventaram nunca mais ficou ruim e fica-se assim, no terreno dos cumprimentos da cerimônia informal. Mas, sim, no geral estou bem, na medida em que não consigo esmorecer com reveses. Não parecemos ter baixa resistência a frustações, ao contrário, os processos vão andando e nem sempre encaminham os nossos objetivos. Há um ambiente despótico de que somente a nossa destruição fará a expiação das deficiências sociais. Caramba, meu, mas é isso mesmo. E não vemos nada melhorar, tudo é decadente. Em qualquer lado do Atlântico. A nossa devastação é que conta pontos, se justas ou não há muito deixou de importar.
A conexão seguia estável, totalmente alta e clara. Nada era desatento.
E as coisas todas, essas que você está a lidar, como estão, quais são as perspectivas? É aí que eu te digo que eu não imaginava que o Estado tivesse tantas facetas, tudo fazendo a mesma coisa, e que os raciocínios fossem tão subjetivos e preconcebidos (“preconceituados”, podemos dizer, se me permite o neologismo), a não ter a menor razoabilidade, outrora um princípio. Fico impressionado. Sou filho dessa pátria que hoje não me quer, nada do que eu poderia produzir lhe importa. O que pode ser construído desta forma, me pergunto, quando literalmente me tiram até o direito de recomeçar? É por isso que disseste ser inviável? Exato, retomo o ponto. Se por acaso hoje me tirassem os grilhões e me abrissem os ferrolhos para as ruas, eu estaria obrigado a vagar na clandestinidade, à margem dos dispositivos regulamentares. Esta é a verdade, não se trata de lamento magoado. Eu não conseguiria viver oficialmente. É razoável isso?
Uma porta se abre, a luz da pantalla esvanece, mas em alguns segundos tudo volta ao normal.
Tô entendendo. Todavia, é tocante que quanto mais me empurram para os porões dessa abstração que é a sociedade deles, mais me sinto fortalecido. Posso abdicar da identidade, do registro geral e do cadastro de pessoa física, jamais do ser humano. Às favas com os códigos e os supremos rituais. Fuck The Norm! já foi o brado da ira contra a máquina. A felicidade está em outros caminhos: os sinuosos que te aprazem apenas percorrer, não como vias do objetivo de chegar. Parece romântico, mas é assim que vai ser. Já me peguei sonhando a tocar violão em estações ferroviárias para comprar o almoço. O problema era a preparação do repertório, tinha que servir tanto para Japeri quanto para Copenhagen porque não haveria mais fronteiras. Hehe!
O tempo passava sem ser percebido, como costumava ser a conversa entre os amigos.
Mas também estivemos a acompanhar a sua luta, você foi guerreiro e fiquei muito feliz com o resultado do assunto indo para o arquivo redondo. Bem que eu sentia que as notícias que aqui chegavam tinham um quê de terrorismo plantado. O tema, claro, muito sério, mas a forma com que se dava aqui, pelo menos para mim, tinha aquela distorção típica para fazer uma pressão no outro lado. Acho que não me enganei. Foi muito importante a derrota deles; como eu torci, saiba disso. Vendo hoje a personalidade inconsciente dos aparatos oficiais consigo entender a angústia do poeta que perguntava por que é mais forte quem sabe mentir. Pois, sem notarmos, a verdade deixou de ser o que se quer, a meta: é a vitória que tem mais valor porque a guerra ideológica substituiu a conformidade com o direito. Tudo com uma boa dose de hipocrisia. Quem acreditou que tinha defesa a custo viu alcaguetes laureados serem os preferidos do Estado e das arquibancadas. Que tal? Estou impressionado com tudo isso também. Pois é, essas circunstâncias que impõem impotência ao cidadão perante o sistema – nada mais autêntico como situação Kafkiana – acabam por te impelir a buscar forças e, de alguma forma, ao invés de resignação mais forte você se sente. É nesse meio que um ou sucumbe ou não se curva e sintetiza energia. A minha, eu descobri, vem das calorias emocionais daqueles para quem eu realmente importo. E assim eu sinto a força realimentada perante todos esses percalços. Porque, no final das contas, tudo isso não é nada. Não significa nada. Por isso digo que estou bem.
A pantalla mostra um certo aquecimento devido ao tempo de funcionamento.
Muito bom, meu! Que bom ouvir de você. Eu também, e fico aqui na torcida. Vamos nos falando, agora já aprendemos como fazer. É isso, foi bom pra matar as saudades. Keep in touch. Beijo. Beijo.
Conexão desfeita.