A Dalva e o Velho

A terra vermelha ainda guardava o calor do dia. O céu, limpo com exceção das estrelas, não demonstrava sinal algum de chuva ou alivio para a secura. O vento diagonal espalhava a poeira em pequenos redemoinhos dançantes. Mas o Velho não via nada disso.

Os pés cansados e corados pela terra estavam estendidos para fora da delimitação precária entre a casa que um dia fora amarela e o chão vermelho. Naquele mesmo terreno, há exatamente um ano, existia uma enorme plantação de frutas e verduras variadas. Antes ainda, algumas vacas magras e galinhas de poucas penas passeavam por ali. No hoje que inicia essa história, pedras pontiagudas e raízes secas eram tudo que a terra cuspia. Imaginando tudo isso, o Velho pegou uma porção de pedras e pó e viu como desciam arranhando pelos dedos. Quando a última pedrinha tocou o chão, os olhos miúdos soltaram a primeira lágrima da coragem.

O homem caminhou até o túmulo improvisado e sentou-se novamente num único movimento. As pernas em posição de índio o fizeram sentir ao menos três anos mais jovem, e com uma flexibilidade pouco exercida levantou o pescoço aos céus. A voz enrouquecida logo retumbou pelo terreno inóspito:

—Não vim falar com ela hoje. Vim falar com quem me escuta ai de cima... —anunciou, com os olhos doces e o medo escorrendo em cada sílaba — É um pedido muito sério.

Ninguém respondeu, mas as estrelas abaixaram a cabeça para ouvir.

—Ela cansou faz um ano hoje. E eu fiquei de luto, direitinho como ela mandou — respirou fundo e tossiu tomando forças do ar seco — Eu sou filho dessa terra. Nasci entre as pedras, brinquei pelos pés de macaxeira, chorei cada morte que veio com o cair das mangas... Não sou ingrato viu, mas cansei. Se é minha hora, recolhe meu espírito. Se não for, traz uma cor pra mim.

O Velho deu uma batidinha na madeira com as iniciais e sem resposta alguma recolheu-se.

Logo no despontar do sol, uma nuvem foi soprada do leste. Ofendida pelo despertar repentino, foi chorar na casa do Velho que, desacostumado com a chuva caindo, levantou de rompante. Numa única fungada sentiu o cheiro próspero da chuva e por alucinação jurava que a grama fresca já invadia os limites da casa. A excitação fora tanta que sem calçar-se abriu a porta fraca de madeira e sentiu os pingos descerem pela cabeleira grisalha. Riu quando uma gotinha desceu pelo colarinho do pijama puído. Com os pés ainda mais vermelhos, dançou em agradecimento pela bênção. Enlameado deixou pegadas pela casa e recostou-se com a música que vinha do telhado.

A chuva cobrou a lavagem da alma com um resfriado.

O Velho já não sabia mais se alucinava pela febre alta ou pelos neurônios idosos, mas além da chuva que não cessou por um minuto naquela semana, ouviu batidinhas na madeira oca da porta. Pestanejou por um momento e no outro as batidas voltaram mais fortes. Com um passo vacilante por vez, conseguiu jogar o corpo na parede e abrir a porta.

Uma mulher, coberta de roupas brancas até a cabeça, colocava o pé na soleira e pedia pra entrar com meia cintura já dentro da casa. O Velho não recusaria nem se estivesse são, teve medo de ser feiticeira e a mãe ensinou que pra elas nada se nega.

Foi empurrado com uma força nada característica e sentiu o feno batido da cama novamente na coluna.

***

O cheiro de café coado pegou o Velho pelo nariz e puxou pelas mãos pra levantar. Levantou e chegando na cozinha afastou a cortina vendo a miragem. Uma menina-mulher, de pele queimada e cabelo preso, passava o café no fogão de lenha. A imagem era tão bonita que o Velho apertou os olhos diversas vezes esperando que se dissipasse. Não houve resultado. A menina-mulher continuava ali no fogão, com um pano de prato no ombro e a melodia de um assovio se misturando a harmonia que a chuva produzida. Alguns minutos depois ela se virou e o viu escorado na parede. Um sorriso branco iluminou mais ainda a cara bonita.

—Você levantou Velho! Ia te deixar descansar mais um pouco.

—Quem é você?

—Ora, eu sou a Dalva! Senta aí que eu vou te servir o café. Há muitas coisas pra fazer ali fora.

O homem não sabia o que responder. Ou se deveria. Apenas seguiu a instrução e assistiu, a agora apresentada Dalva, atravessar a cozinha com a sua saia branca rodada e o bule fervente em mãos. Ela serviu o café na sua xícara favorita, na proporção correta, e ainda cortou o mel sem deixar que o melaço escorresse pela mesa.

—Dalva... Como você chegou aqui? — arriscou depois do primeiro e prazeroso gole.

—Eu soube que você estava doente. O vento da chuva me ajudou a chegar.

—Mas ninguém vem aqui. Ninguém sabia.

—Você me pediu, Velho. Eu cheguei. Você quer que eu vá embora?

—Não, de modo algum.

Com a negação da partida dela, que saiu mais como uma súplica do que como resposta, os céus selaram ali o compromisso do companheirismo.

Na primeira semana, a Dalva levantava cedinho e fazia café. O velho tomava e ela perguntava da vida dele. Ele nem sabia como responder. Na segunda semana, ela começou a fazer pão antes que o sol nascesse, porque ele sentia fome quando acordava. Na terceira semana, ele finalmente começou a falar.

—Você jura que nunca saiu daqui? — ela perguntou outra vez.

—Não, nunca. Mamãe nunca permitiu.

—E ela não era sua amiga?

—Ela mandava, não conversava.

—Cadê ela, Velho?

—Morreu faz um ano.

A Dalva engoliu em seco. Serviu mais café, bateu mais um pouco de manteiga.

—Você pode me contar? — solicitou ela, no tom mais gentil possível.

—A gente é daqui mesmo sabe? Não tem nada nem ninguém perto, mas é nosso.

—E quem são os outros?

—Ah, era a mamãe e os outros irmãos. Eu sou o menino Cinco. Na verdade, o Velho Cinco agora né? O resto tudo morreu de doença ou de bicho.

—Como vocês sobreviviam aqui? Não tem tudo que precisa...

—Não tinha mesmo, sabe? Mas os outros meninos iam buscar na cidade.

—Você nunca foi junto?

—Eu não era grande o suficiente... E quando fiquei, o Quatro foi e nunca voltou. A mãe não deixou mais ninguém ir e o resto foi morrendo em cada florada nova das plantas. Um dia sobrou eu e a mãe só. E foi suficiente por muito tempo. Aí ela morreu e secou tudo junto.

—E do que você vive?

O velho não soube responder. Não lembrava do que vivia e de repente se deu conta de que comia as coisas que ela fazia e não sabia de onde vinham.

—Como você fez o pão? E o café?

—A chuva trouxe uma vaca e umas sementes comigo. Você está pronto pra sair?

A Dalva e o Velho saíram naquele dia. E em todos depois daquele.

Na bolsa de pano, branca como o resto da roupa de Dalva, haviam sementes e frutas, que os dois comiam e usavam depois pra plantar. Dentro de um mês, com a chuva próspera e a terra vermelha brotando de felicidade, os dois tinham o terreno mais lindo que os olhos dos homens já puderam ver.

Enquanto recolhiam ervas daninhas numa manhã, o Velho olhou pra Dalva de soslaio e reparou de novo nas roupas brancas. Pensou, pensou, pensou mais um pouco, e por fim decidiu perguntar:

—Ô Dalva, você é feiticeira? — ele baixou o chapéu e não olhou pra ela. Escutou a risada de menina-moça em seguida.

—Eu não Velho. Mas faço mágica.

Ele olhou pro terreno cheio de verduras e árvores. Ele soube que era verdade e não perguntou mais nada.

***

Num outro dia, de chuva brava e vento violento, os dois estavam sentados na varanda da pequena casa tomando um chá de erva-de-chão. A Dalva levantou, sem mais nem menos, e voltou da casa com um livro nas mãos. O Velho olhou aquilo com desconfiança, e ela sorriu apaziguadora. Estendeu o livro, que ele nem soube pegar direito. Sem jeito, a pergunta do que eram aqueles desenhos tão pequenos soou. Com paciência, ela contou que eram letras. E leu pra ele.

Daquele dia em diante, depois de cuidar da terra e dos bichos, a Dalva lia e ensinava o Velho a ler e escrever.

***

Completou-se um ano da chegada da Dalva. Eles eram a companhia um do outro, vivendo e se deleitando das maravilhas da terra. Ambos viam algumas galinhas chegarem de lugar algum, frutas exóticas que o Velho não conhecia mas a Dalva sabia o nome. Nasceram, junto com os frutos, a amizade e o amor entre os dois.

Não havia um dia em que a Dalva não fizesse o Velho Cinco sorrir e olhar pra vida de um jeito diferente, mais colorido. Ele ria e sentia no fundo do peito a esperança.

—Eu queria que você não fosse embora nunca, Dalva.

— “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

—Quem disse isso?

—Um autor francês.

—E o que significa?

—Pra mim que, enquanto você desejar que eu não vá, eu terei de ficar.

O Velho entendeu, mas fingiu que não. Perguntou sobre a França. A Dalva contou as maravilhas do mundo, disse o nome de cada país, uma palavra em cada um dos 6 912 idiomas durante o resto dos dias.

E aí ele soube que ela tinha que ser liberta pra ir.

***

Ela avisou no dia mesmo que era chegada a hora. Ele jurou a si mesmo que não ia chorar. Mas não durou dois minutos, caiu no choro como uma criança abandonada.

A Dalva sorriu com compaixão e abraçou o seu menino. Era aquilo que ela mais amava, a alma inocente de menino num corpo tão cansado.

—Eu não quero que você vá...

—Você me liberou pra ir.

—Eu sei, Dalva... Mas dói. — conseguiu dizer com a voz embargada.

—Dói em mim também, menino Cinco. Mas você pediu e eu atendi o seu pedido.

Ele chorou a amizade e ela segurou com braços confortantes o laço e homem. No resto do dia, ela contou mais sobre tudo e ele se sentiu abismado outra vez com aquela menina-moça que era tão sábia.

Quando a madrugada caiu, ambos estavam sentados na frente da casa, contando estrelas. E continuaram assim até quase a hora do sol nascer. Ele viu de ladinho quando ela brilhou mais que o normal e deu três tapinhas na mão dela, enfiando um papel na bolsa dela logo em seguida. Quando ela já sumia e ele dizia as palavras de amor e amizade mais bonitas e sinceras que o universo já fora capaz de escutar, a Dalva puxou a mão dele junto.

Na terra vermelha, sobrou com os frutos um pequeno papel com um poema escrito em letras de menino que acaba de aprender a escrever.

“Dalva,

me ensinaste a escrever

e com essa sabedoria te

dedico

essa poesia.

Quem me dera

minha amada amiga

que atendesse

outro pedido

e me levasse

contigo.”

***

Quando a manhã despontou, a estrela Dalva brilhou como nunca. Logo depois, os astrônomos catalogaram a estrela Cinco, que apareceu do lado direito dela.

***

Um segredo que perdura até hoje pelo universo e pela Terra é que a Dalva só foi ler o poema quando chegou no céu, e levou o Cinco junto.

Alicia Cintra
Enviado por Alicia Cintra em 10/04/2020
Código do texto: T6912675
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