O TEMPO DO PRIMEIRO ANDAR
“A distinção entre passado, presente e futuro é
apenas uma ilusão teimosamente persistente”
- Albert Eistein
O caminhão estacionou. Era um prédio envelhecido pelo tempo, sem ao menos uma varanda, alguma ramagem ou um pedaço de grama. A direita um armazém, modesto e sem pontos chamativos, já a esquerda outro prédio que somente se diferia do que iríamos morar pelos números residenciais e pela cor, um cinza menos profundo em um tom mais aberto.
A frente existia um sobrado tão antigo quanto aquela rua, quanto aquele bairro, onde o branco das paredes havia sido carcomido pelo tempo. Possuía poucas janelas e, apesar da grande extensão daquele lote, não havia sequer um quintal, apenas um pedaço de verde apagado da relva que clamava por água, vivendo moribunda. O sobrado era rodeado por grandes muros que permitiam ver somente a entrada, por entre o portão de grades.
Voltei-me para meu novo batido aposento, desci e fiz sinal para o motorista, confirmando que aquele era o local. Aos poucos a mudança foi sendo descida, enquanto no carro minha esposa ainda se encontrava em letargia. Não quis acordá-la, havia passado por uma longa semana e, mesmo que fossem poucos e ordinários minutos de sono, já iriam ser de bom grado ao seu humor.
Não possuíamos muitos móveis, apenas o essencial, frutos do nosso passado. Eram mobílias de nossa época de solteiros, onde, em momento anterior eram de domínio de nossos familiares. Apesar da feição puída, eram móveis de qualidade que, assim como nomes, passam de geração em geração, buscando serem primeiramente bem usados e, posteriormente, lembrados.
– Apartamento sete. – Disse aos indivíduos que fariam a mudança, entregando-lhes as chaves.
Apesar do que vocês possam imaginar, os carregadores da mudança não eram homens dotados de força aparente ou corpulentos, eram apenas rapazes de vinte e poucos anos, onde juntavam-se às suas necessidades – aparentes pelas suas demonstrações de simplicidade – e faziam seu trabalho de subir e descer mobílias, sem ao menos questionarem-se como seriam as novas vidas de seus contratantes, ou como eram em seus cantos passados. Carregavam os móveis em seu dorso, junto aos fardos da vida árdua que levavam.
Dirigi-me ao carro, onde minha mulher ainda se encontrava em seu descanso. Acordei-a, dizendo que a mudança estava sendo levada para o apartamento e precisávamos de sua presença, para que os móveis fossem colocados no lugar que mais lhe agradavam.
Adentramos ao prédio e subimos as escadas, não havia um corrimão ou ruídos, apenas a quietação de um edifício tomado agora pelo som de diversos pés que subiam e desciam as escadas, hora com caixas nos braços, hora com mãos tão vazias quanto os pensamentos de manhãs de domingo.
Minha esposa decidiu onde ficariam os móveis e se prontificou a fazer o almoço, procurando colheres e temperos em meio ao rebuliço da mudança.
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Não sei dizer ao certo quantos degraus subi e desci, apenas que naquele dia foram-se quatro horas para que tudo estivesse arrumado. Os rapazes do caminhão de mudança já haviam ido embora e no apartamento sobraram apenas minha mulher, nosso jeito de organizar o espaço, o ar de novo mesmo em um local surrado e eu, com meus pensamentos agitando meu entardecer.
Fui à janela da cozinha, essa dava de frente para a rua, para o sobrado. Examinei novamente a construção e idealizei formas de torná-la mais agradável, dando-lhe uma pintura, algumas mudas de flores e apresentando-a uma ornamentação amadeirada, além de, como cereja do bolo, colocar graciosamente um casal de velhos sentados em bancos na frente da casa. Tudo isso já ouvira da boca de minha mulher, apenas transcrevi o sonho de futuro que ela possui para um local que me chamou atenção.
A porta do sobrado se abriu e de lá saíram uma idosa, uma mulher e uma jovem, ambas de aparência deleitável. A mais envelhecida era a idealização personificada de senhorinhas, cabelos brancos amarrados em coques, rechonchuda, de roupas beges e de lã, apoiada em uma bengala. A mulher, na casa dos trinta anos, era preta, esguia e sorridente, com seus trajes coloridos e chamativos. Já a moça era nova e muito pálida, com vestes brancas e cabelos curtos, e saiu junto da mulata em largos e acelerados passos, enquanto a senhora permaneceu na porta do sobrado.
Voltei meu olhar para meu apartamento e fui até meus aposentos, onde estava minha mulher. Ela me recebeu com um beijo e pediu-me para que fosse à mercearia comprar remédios para sua enxaqueca. Alisei seus cabelos, dei-lhe outro beijo e saí.
Ao sair do prédio deparei-me com a plena senhora ainda na porta de seu insosso sobrado. Dirigindo-me o olhar, sorriu e, ao acenar, deixou cair de seu bolso um novelo vermelho que brilhava tal como uma fita de led. Percebendo minha hesitação ao levantar o braço para a cumprimenta-la, visto o sobressalto em virtude do novelo brilhante, a senhora pôs-se a voltar para dentro de seu aposento.
Acompanhei a porta fechando, lentamente, como se o tempo houvesse desacelerado e o meu único foco fosse aquela porta. Estava ali, estagnado, quando ouvi, em alto e bom som, o trinco da porta fechar. Assustei-me com o estrondo do trinco, pois estava a metros de distância do sobrado e, no entanto, pude captar cada traço daquele ruído.
Atinei-me ao pedido que minha esposa havia feito e voltei meu pensamento à mercearia.
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Já era a terceira muda de rosa que plantara em meu pequeno e descascado vaso de cerâmica. No entanto, a infeliz, assim como as demais, atrofiava. Não sobrevivia aos ares daquele lugar, assim como a grama. Eis a explicação da ausência de canteiros e árvores, mesmo que plantados em terras trazidas de outro lugar, não vingavam, apenas definhavam com o passar dos dias. Desatinei-me a pensar sobre o tempo vivido naquele lugar.
Há semanas estávamos em nossa rotina, mas nosso sonho não se concretizava, havia se estagnado, assim como meus projetos de rosas. Havíamos ido em diversos médicos e todos alegavam não existir problema com minha esposa ou comigo, éramos férteis, com boa idade e boa saúde, apenas não fecundávamos, apesar das inúmeras tentativas.
Já conhecíamos os vizinhos de duas casas a direita e três a esquerda, além do dono da mercearia e até mesmo os pregadores que passavam em todas as casas na primeira semana do mês, convidando a todos para conhecer a igreja do bairro.
Meus pensamentos foram invadidos pela voz sútil e majestosa de minha mulher. Ela sugeriu que visitássemos as vizinhas do sobrado. Apesar da pobreza de beleza daquele lugar, sentia atração pela conformidade do desleixo que o tempo deixara e perpetuava a cada dia naquele amontoado de tijolos e concreto. Sentia-me instigado.
Cruzamos a rua, chegamos na porta, passamos pelo portão que estava aberto e tocamos a campainha. Um doce som ecoou pela casa e, posteriormente, o barulho do calcorrear infinito de alguém que viera nos atender. Diversas, dezenas, centenas de vezes o mesmo estrondo dos sapatos se repetia, até que ouvimos o trinco e depois a porta se abrir. Era a mulata.
Fomos recebidos e acolhidos pela anfitriã que nos apresentou às demais companheiras que residiam consigo. A doce senhora era sua vó, enquanto que a pálida moça era sua prima. O sobrado possuía uma decoração rústica e, como minha mulher relatou, tanto para mim quanto para as três moradoras, era impregnado por três cheiros que se misturavam: café passado logo de manhã, o amadeirado creme que eu utilizava após fazer a barba e um cheiro sereno de pomar. No entanto, eu sentia apenas que o ar possuía o mesmo frescor de torta de limão.
Na sala havia uma escada, trabalhada em vidro, granito branco e quartzo, como a doce senhora nos descreveu, mas não fomos convidados para o primeiro andar, apesar de meus comentários sugestivos a uma breve passada no espaço para conhecê-lo. Depois de alguns minutos, fomos embora, minha mulher, minha inquietação com o que havia depois das escadas e eu.
Mais tarde, naquela noite, me vi na janela da cozinha examinando o sobrado novamente e pressupondo o que estaria no primeiro andar. Era apenas mais um espaço, por que me gerara tanta curiosidade!?
Na calada da noite vi-me de pé e, novamente, estava disposto frente a janela, observando cada particularidade daquela construção. Assim como chamas que iniciam com fraqueza e se intensificam conforme incendiam o carvão, apareceram vertigens de luzes nas janelas do sobrado. Assustei-me, pois elas ficaram tão vívidas quanto um incêndio e, em meus pensamentos, era isso que ocorrera. Fui as pressas até a porta do sobrado.
Bati diversas vezes, onde em cada batida meu gesto ocorria em uma velocidade. Direcionava minha mão fechada à porta e, como uma cobra dando o bote, meu braço se deslocava rapidamente e voltava, fazendo o movimento de chicote. Ao repetir o movimento, ele ocorria lentamente, quase que cessando-se no ar e, ao repeti-lo, normalizava-se. Neste ciclo fiquei, incontáveis vezes, batendo na porta, em um cenário vermelho bordô que impregnava minha pele e minha visão. A porta, então, se abriu.
Em meio ao vermelhidão do espaço, avistei um longo fio vermelho, como o que a senhora havia deixado cair naquela tarde, o qual formava um caminho às escadas. Sorrateiramente deixei-me conduzir por aquele brilho, com a mente omissa de porquês, razões ou intenções. Apenas fui conduzido.
Após subir as escadas, deparei-me com um longo corredor e, em seu final, três portas, onde na frente de cada uma delas havia uma das moradoras da casa e, o fio vermelho, se ramificava de onde eu me encontrava até cada uma delas, assim como um raio que inicia-se único e ramifica-se no céu, quebrando-o.
Aproximei-me das três e deixei que seus olhares penetrassem o meu, todos os três pares de olhos vermelhos e vívidos como todo aquele espaço, como aqueles fios. A primeira porta a minha esquerda era da doce senhora, essa levantou uma de suas sobrancelhas e deu uma leve piscadela, lentamente, já a porta a minha direita era da pálida moça que me olhou, abaixou o olhar, olhou-me novamente e cruzou os braços, tudo isso em milésimos de segundos. Já a porta do meio era da mulata que me perguntou se eu sabia quem elas eram. Silencioso fiz que não com a cabeça.
Ela então se apresentou como aquilo que é e está sendo, já a esquerda encontrava-se a doce senhora denominada de aquilo que já foi e fora, enquanto que a direita estava pálida jovem denominada de aquilo que será e há de ser. Elas, eram as três moiras e juntas coordenavam o tempo. Cada qual com seu momento e sua porta, administrando as almas e seus estados através dos fios vermelhos da vida. Elas, assim como o sobrado e tudo que nele havia, eram alimentadas pela vida daquele lugar, por isso nada se plantava e nada se colhia naquelas terras, tanto quanto a infertilidade de todos que por ali habitavam. Toda magia tem seu preço, mas não há lugar escrito quem a deve pagar.
Senti-me atordoado por aquelas palavras, jogado dentro um livro de fantasia que não possuía sumário ou introdução, apenas o meio e o fim de uma história, que não sabia como começara. A mulata aproximou-se, puxou a barra de sua saia, pegou uma de minhas mãos e deslizou sobre seu corpo. Aproximou-se e tocou seus seios em meu corpo, perpassou sua boca rente a minha e disse ao se afastar:
– O presente te atiça, excita, mas não o convém. Tua mulher sente três cheiros neste lugar, um para cada uma de nós, para cada um dos tempos, mas e você? Tu sentes apenas um, aquele que pertence ao teu tempo. Os demais cheiros só serão sentidos quando você se encontrar em seu tempo certo, pois agora você está no lugar e no momento errado. Esse instante não pertence a você.
A palavras a mim proferidas eram cunhadas de razão, nada mais sentia além da brisa de torta de limão e profundamente sentia o meu descompasso nesta vida.
A mulata concluiu:
– Vá em direção ao cheiro que sentes, encontre teu tempo e encontrarás o teu lugar.
Fechei os olhos e respirei fundo, estendi a mão e senti um toque macio e acanhado em meus dedos, o cheiro se intensificara. Fui conduzido à porta e o vermelho se cessou. O meu tempo chegou/chega/chegará.
Canêdo.
Conto inspirado em Murilo Rubião, com
sua escrita ainda fresca em minha alma.