A Outra Margem do Rio

Tuntum, cidade de nome onomatopeico no coração do Brasil, é cortada por um enorme rio, que de tão grande, muitos pensam tratar-se do mar. Do lado norte do rio está o bairro de Além Rio, do lado sul, estão os bairros de Padre Cícero, Bairro da Favela, Rapina e o infame bairro das Quatro Bocas.

O bairro Além Rio, talvez por estar protegido pelas águas do rio, ou por qualquer outro motivo ignorado, era habitado por pessoas de extrema arrogância, dotados de maldade incalculável, divertiam-se promovendo as maiores crueldades imagináveis contra os pobres moradores da outra margem do rio. Entre esses malvados, o pior deles era, sem dúvidas, o que atendia pela irônica alcunha de Geraldo Bonzinho, que segundo dizem, era descendente de Dona Quitéria, uma próspera fazendeira que ficou célebre por possuir um rosário feito com as orelhas dos escravos fujões e insolentes.

Geraldo Bonzinho, que passava grande parte de suas horas ociosas costurando cu de porco, colocando fósforo acesso em boca de sapo e dando nó em teta de vaca, também era fanático pelo Bruce Lee. Depois de ver repetidas vezes as fitas em que estrelava seu ídolo, e aprendendo todos os golpes, Geraldo Bonzinho, acompanhado de seus comparsas, cruzava o rio, e como uma horda de bestas enfurecidas, cometiam todo o tipo de barbaridade: saqueavam, destruíam, metiam fogo na mercearia, espancavam mulher grávida. Quando passada a sede momentânea por provocar sofrimento, Geraldo Bonzinho retornava, tranquilamente, a Além Rio.

O bairro das Quatro Bocas, reduto da malandragem tutuense, era, talvez, o menos atacado pelos do Além Rio, porém, Geraldo Bonzinho havia aprontado uma pesada. Além de frequentar os puteiros das Quatro Bocas e nunca pagar, acabou embuchando Clarice, que depois de cair no maior dos erros do meretricio, teve a infeliz ideia de levar a criança, ninguém sabe se era menino ou menina, até o cliente-amante. Geraldo negou a paternidade e expulsou a menina aos pontapés, baixo as risadas de seus comparsas. Clarice deixou o bebê sob os cuidados de Dona Eleonora, a dona do puteiro, e sumiu de Tuntum para nunca mais voltar, dizem que foi pros lados de São Paulo.

Dona Eleonora não era caridosa, e muitos se espantaram com a atitude da velha cafetina em assumir os cuidados do(a) filho(a) de uma de suas funcionárias. Mas aqui uma consideração pode ser feita, aqueles eram tempos difíceis, em que todos sofriam a opressão dos Além Rio, e em momentos de crise, é bastante comum que repentinos fortes laços de solidariedade surjam entre as pessoas das quais menos se espera.

A história começa a mudar de rumo quando Caneludo, que além de irmão de Clarice, era um grande capoeirista, descobre o ocorrido. Caneludo recebera este apelido, porque, dizem, suas canelas mediam mais de dois metros. Eu, particularmente, prefiro acreditar no que consta no célebre livro “Crônicas Tutuenses”, de José Raimundo, que indica que a medida verdadeira das canelas do Caneludo, eram de, aproximadamente, um metro e oitenta e cinco centímetros. Caneludo não era amigo da irmã. Sentia por Clarice o mesmo que a cafetina tinha pela pobre moça, um simples sentimento de propriedade. Se Dona Eleonora se compadecia em zelar pela criança bastarda, Caneludo acreditava que o que Geraldo Bonzinho fizera, fora não um ataque a irmã, e sim uma afronta ao próprio capoeirista, que via o desrespeito à sua propriedade, uma ofensa inaceitável. A sua primeira ideia foi tirar satisfações com Geraldo Bonzinho, porém, logo percebeu que ir até o Além Rio seria muito arriscado, preferindo, então, esperar que o desgraçado desse as caras nas Quatro Bocas. O problema é que Geraldo Bonzinho não aparecia, já há algum tempo vinha concentrando seus ataques exclusivamente ao bairro da Rapina. A oportunidade de desforra nunca se apresentava, e isso foi aumentando o ódio que Caneludo nutria ao facínora, até que o capoeirista todinho era só ódio e sede de vingança. Não pensava em outra coisa que não fosse acabar com a raça de Geraldo Bonzinho, e contrariando os conselhos de Pai José – um velho cego e conselheiro, muito respeitado por todos nas Quatro Bocas – decidiu que iria ao Além Rio, aos domínios de seu inimigo, e como Aníbal em outra época fizera quando rumou a Roma, Caneludo foi até a margem do rio que separava o sul do norte. Teria de cruzar o rio a nado, e ocorreu-lhe tirar as roupas, para que pudesse nadar melhor. Quando já estava nu, percebeu que uma velha o observava, e bastante envergonhado, cobriu suas genitálias com as mãos. A velha o esquadrinhava com seus olhinhos miúdos, dois pontinhos negros envoltos num emaranhado de rugas, e sorrindo, foi falando ao Caneludo:

-Meu jovem, não se preocupe com sua nudez, estou velha demais até mesmo para apreciar a beleza de um jovem. O que lhe peço é somente que me ajude a cruzar o rio.

-Mas eu não tenho canoa. Não sei como posso lhe ajudar. - disse Caneludo, que não tinha vontade alguma em ajudar aquela velha, que mais bem, seria um estorvo.

-Leve-me em seus ombros, creio que poderá fazer isso por mim, não é?

-Mas não sou tão forte, o mais provável é que morramos os dois afogados. - e notando que a velha levava consigo uma bolsa, disse que poderia levá-la se abandonasse seus pertences. Uma velha e uma bolsa era demasiada coisa para carregar.

Caneludo sabia que a mulher, que parecia miserável, não abandonaria aqueles que possivelmente fossem seus únicos pertences, e desta maneira não continuaria amolando o jovem capoeirista.

-Veja menino – dizia a velha – essa bolsa não pesa quase nada, e não seja tão humilde, você é muito forte, certamente, capaz de levar até mesmo dez velhas exatamente iguaizinhas a mim!

O elogio foi bem recebido por Caneludo, que precisava de um pouco de ânimo para executar o projeto que lhe trazia ao rio – lutar com o malvado Geraldo Bonzinho.

-Vamos, você me leva em seus ombros fortes, enquanto eu mantenho a bolsa sobre a cabeça para que não se molhe – disse a velha, quase num tom de voz que fazia parecer tratar-se de uma ordem.

Caneludo recordou-se de algo que sua irmã sempre repetia “ quem ajuda um pobre, empresta a Deus”, e pensando na dura batalha que teria contra Geraldo Bonzinho, a ajuda de Deus seria muito bem-vinda.

Colocando a velha sobre seus ombros, iniciou a travessia do rio, e enquanto se esforçava para cumprir esta difícil missão, sentiu as coxas da velha comprimirem-se contra seu pescoço, e sentiu-se algo excitado. “Se, pelo menos, não fosse tão velha” - pensou Caneludo.

Ao chegarem ao outro lado do rio, a velha saltou dos ombros de seu benfeitor com extraordinária agilidade.

-Obrigado, meu jovem. - e dizendo isso, foi abrindo a bolsa e tirou de dentro uma trouxa de roupa.

-Não precisa de pagamento. - disse Caneludo, que acabou por aceitar o presente da velha.

-Veja bem, esta roupa não é uma roupa comum. Ela é mágica! Quando você vesti- la, ficará indestrutível! - dizia isso mostrando uma surrada camisa e uma calça branca em farrapos.

A idade, às vezes, acaba por destruir a sanidade que se tivera outrora, enchendo de loucura o espírito. E com esta forte opinião acerca da velha, Caneludo vestiu a roupa, despediu-se, e afastou-se da velha o mais rápido que pôde, seguindo em direção ao Além Rio, onde encontraria o inimigo.

Quando Caneludo, por fim, chegou ao Além Rio, todos o olhavam com bastante atenção,de cima a baixo, afinal, quem seria aquele maltrapilho forasteiro?

Caneludo não dava atenção aos olhares, gritava o mais que podia:

-Geraldo Bonzinho, seu desgraçado, apresente-se aqui! Que eu, Caneludo, ilustre filho da Quatro Bocas, irmão da injustiçada Clarice, venho aqui para arrancar teu couro!

Não demorou muito para que um homem se apresentasse, dizendo ser Geraldo Bonzinho.

Caneludo nunca havia realmente visto seu inimigo, somente ouvido falar, e a falação do povo misturada com sua prodigiosa imaginação, haviam construído um Geraldo Bonzinho muito diferente daquele que agora tinha diante de si.

Geraldo Bonzinho não devia ter mais de um metro e cinquenta, com a pança de cerveja, os olhos eram de um azul acinzentado, a pele muito branca corada pelo sol, dava a impressão de que se tratasse de um porco, e não uma pessoa humana. Muito diferente do Hércules que todos falavam.

Um ficou parado defronte o outro, ninguém se metia no meio, parecia cena de bang- bang espaguete. Sangue ia jorrar.

-Vou te transformar em comida de urubu! - dizia Caneludo, com o que o outro respondia:

- Tu queres é morrer? Vens a Além Rio me desafiar? Vou é te furar, seu viado!

E os dois seguiram durante muito tempo com essas ameaças e insultos. Tanto tempo que alguns dizem que essas preliminares duraram o total de vinte e dois anos, mas de acordo com o já citado José Raimundo – venerável escritor tutuense – em suas crônicas constam que a duração dos insultos foi de não mais de quatorze anos.

Quem tomou a iniciativa foi Caneludo, gingando diante do inimigo, desferiu uma benção que teria matado, se o desgraçado não fosse tão ligeiro. Geraldo Bonzinho esquivou-se, para depois, saltando sobre o capoeirista, levou-o ao chão, e com o rival caído, Geraldo Bonzinho dava-lhe pontapés como se estivesse a bater em um cão vadio.

Uma enorme ferida abriu-se na testa de Caneludo, e o sangue cobriu-lhe toda a cara e os olhos. Via tudo vermelho, os comparsas de Geraldo Bonzinho que gargalhavam, a irmã que desapareceu, a malandragem das Quatro Bocas, o (a) sobrinho (a) que jamais conheceria, a velha que lhe havia prometido que roupa o deixaria indestrutível, o Pai José, o bom Deus que o abandonou. Era, impiedosamente, moído de pancada, e o último golpe que Geraldo Bonzinho desferiu contra o Caneludo, deixou-lhe mole, estendido na rua de terra batida. Todos se afastaram do moribundo.

-Dê água a ele, o pobre vai morrer! - disseram alguns, mas Geraldo Bonzinho disse que não, que tinha de morrer, que ele procurou briga em Além Rio, que “ eu, Geraldo Bonzinho, sou quem está com a razão”.

.Caneludo sentiu que subia aos céus, não somente sua alma, mas seu próprio corpo, a matéria também flutuava, e os do Além Rio, estupefatos, olhavam atônitos aquele homem ensanguentado que ia subindo, subindo, até ocultar-se por trás das nuvens mais altas. Caneludo havia conquistado um lugar no panteão dos deuses, tornara-se um Orixá.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 16/03/2020
Reeditado em 22/03/2020
Código do texto: T6889135
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