172 - Cento e Setenta e Dois.
Adivinhava os gestos. Sentia a roupa a deixar o corpo, o barulho dos sapatos a cair no chão, o pijama a raspar a pele morena, a luz velada, o movimento do corpo a alongar-se na cama, o suspiro. Imaginava o que pensaria, o livro que lia para chamar o sono, a noite cheia do seu cheiro, do ruído manso da sua respiração, da coberta de xadrez sobre a alvura do lençol bordado, do sonho que seria leve, cheio de pássaros num céu azul ou de um campo verde a perder de vista com traços de flores fortes, algumas papoilas para dizer que o vento era fraco. Levantava-se para se certificar que do outro lado da rua já não se via a fresta do costume. De relance olhava para baixo e sentia que era tarde por já não passar ninguém. Tudo à sua volta era escuro, o corpo nu teve frio e voltou a deitar-se. Quando adormeceu viu no sonho o que só imaginava. O corpo, a pele, a guerra e o bom que era estar na sua cama estreita com a obsessão da sua vida.