A Intrépida Caravana da Sra. Serafina: O Troll Gentil

Vila Solitária é uma pequena aldeia localizada ao norte do continente de Eadras, na distante região de Liandor. Sua população é pobre e totalmente voltada para a pesca e a agricultura, suas principais atividades econômicas. Nos meses de inverno a situação fica ainda mais difícil, já que o principal rio da região congela, tornando a pesca impossível, e os campos cobertos de neve não permitem o plantio.

Aos moradores resta apenas manterem-se com os alimentos estocados, o que neste ano não foi muito, devido as más colheitas, e com o que conseguiam através da caça na Floresta Profunda. Mas nem isso estava sendo possível nas últimas semanas, já que o monstro verde tinha voltado a atacar por aquelas bandas.

Todos temiam a criatura que costumava aterrorizar a região, pois os boatos diziam que ela, além de devorar a maioria dos animais, também atacava pessoas, tamanha era sua fome por carne e sangue.

A população de Vila Solitária estava passando pelo seu pior inverno nas últimas décadas, e isso fez com que uma atitude urgente fosse tomada por Tarlius, o líder da aldeia. Ele formou um grupo de corajosos caçadores e partiu para a região dos bosques no intuito de derrotar o monstro de uma vez por todas. Tarlius prometeu a todos que só retornaria quando eliminasse a ameaça monstruosa.

Para tristeza dos aldeões, dois dias se passaram e Tarlius e seu grupo não havia retornado. Os mais velhos alertaram que enfrentar um mal tão poderoso era estupidez e um atestado de morte certa. Agora o povo de Vila Solitária, além de enfrentar as agruras do inverno e a diminuição de seus estoques de comida, também tinha acabado de perder seu líder e os principais caçadores, homens valorosos que tinham deixado suas famílias, numa empreitada perigosa.

Em meio ao panorama de desgraça, onde a morte espreitava a todos como nunca antes, a população se viu totalmente perdida e sem esperança.

Mas isso foi antes da chegada da visitante mais estranha que os habitantes da pequena aldeia já viram, mesmo os mais velhos.

A Sra. Serafina, nome pelo qual se apresentou, chegou, no final de tarde do segundo dia depois que os caçadores haviam partido, em sua simpática carroça vermelha, puxada por um belo cavalo de pelo malhado marrom e branco. Mas o que chamou mais a atenção não foi seu veículo espalhafatoso, e sim quem era.

Serafina pertencia a antiga e extinta, pelos menos se acreditava nisso, raça dos elfos. Tinha a pele branca, orelhas pontudas, lisos e longos cabelos acobreados que brilhavam ao toque dos raios do sol e olhos esmeralda. Seu olhar transmitia ao mesmo tempo a leveza das crianças e a profundidade do tempo.

As lendas diziam que séculos atrás os elfos eram a raça mais numerosa e poderosa de toda Eadras, os primeiros a habitarem as terras do mundo, assumindo no decorrer do tempo a condução dos outros povos, principalmente os homens, inferiores em inteligência e sabedoria.

Mestres benevolentes, os elfos ensinaram sobre as coisas do ar, da terra, da água, do fogo e a respeito da energia que mantém a harmonia entre os elementos: a magia.

Não se sabe o motivo do porquê que os elfos simplesmente partiram do mundo. Alguns diziam que eles tinham partido para uma outra dimensão através de portais mágicos enquanto que outros falavam que as guerras do passado pelo poder da magia deixaram os elfos tão tristes que resolveram abandonar seus discípulos a mercê de sua ganância e loucura.

Muitas perguntas sobre este fato foram formuladas ao longo do tempo, mas nenhuma resposta surgiu até hoje.

Até hoje.

Serafina passou a noite na aldeia e no dia seguinte bem cedo falou com os aldeões.

- Por favor, vocês poderiam tomar conta de minha humilde carroça enquanto eu tentarei achar seu bravo líder? - essas foram as palavras da elfa antes de começar sua caminhada em direção aos bosques gelados onde o monstro verde vivia.

Mas será que ela não temia a criatura? Mesmo sendo uma elfa, como poderia enfrentar um monstro que, segundo os boatos, era do tamanho de uma árvore, sozinha e sem nenhuma arma? Ou, de tão solitária que se sentia, enlouqueceu e resolveu morrer nestas terras distantes?

Aos questionamentos da população, a enigmática elfa deu uma única resposta.

- Não se preocupem, não pretendo morrer hoje. De longe senti a tristeza de vocês por perder seus corajosos guerreiros. E aqui estou, ofertando humildemente meus serviços, para que a alegria volte a esta aldeia. Mas peço uma coisa em troca.

- O que? - perguntaram os aldeões.

- Que na volta eu possa cantar para vocês. Eu adoro cantar, sabe – disse a elfa com um sorriso no rosto.

Serafina caminhou por um longo tempo bosque adentro, sem se importar com a neve e o vento gelado que soprava constantemente, usando apenas vestido e um manto com capuz, até se deparar com uma clareira no meio da mata. Na mesma hora alguns pássaros saíram voando e um cervo passou correndo alguns metros ao seu lado.

Serafina sabia que os animais não tinham se assustado com ela, mas com uma outra presença entre aquelas árvores. A elfa nada temia.

- Não tenha medo, pode sair – falou Serafina em direção as árvores logo a frente. Depois de um longo silêncio, onde só se escutava o ruído do vento balançando as folhas, veio uma voz forte, gutural.

- Vá embora, essa floresta é minha. Vá embora antes que eu a devore, caçadora.

- Eu não vim lhe fazer mal, estou aqui para ajudar.

- Não preciso da sua ajuda, caçadora. Vocês humanos sempre mentem. Aposto que está escondendo uma arma. Então vá embora, antes que eu devore cada parte do seu corpo bem devagar. Só para você saber, eu não como nada faz um dia inteiro e seu corpo magricela seria um excelente café da manhã.

- Está com fome? - perguntou Serafina com voz suave e acolhedora. Continuava parada no meio da clareira, o vento gelado agitando seu manto – Então venha comigo, conheço um lugar onde podemos comer.

- Você não ouviu o que eu disse? - a criatura falou com voz irritada – Vá embora. Não tem medo que eu a devore?

- Não. Por que deveria?

- Porque sou um monstro – gritou a fera. Neste instante ouviu-se um barulho alto de madeira se partindo. Logo em seguida uma pequena árvore, arrancada pela raiz, saiu voando na direção de Serafina.

Antes que a árvore pudesse atingi-la, a elfa fez um movimento com a mão, fazendo brotar do chão nevado uma parede de pedra. A pesada árvore se espatifou contra o escudo rochoso, partindo-se ao meio numa chuva de lascas de madeira.

- Ops, não era minha intenção arremessar tão forte assim. As vezes não conheço minha própria força – disse a criatura com surpreendente educação.

- Realmente você é bem forte. Não é qualquer um que consegue arremessar uma árvore daquele tamanho. Então, já se convenceu que não sou nenhuma ameaça? Pode aparecer agora?

O monstro, convencido de que aquela estranha mulher não queria lhe fazer mal, saiu do meio das árvores e se revelou. Imediatamente Serafina soube do que se tratava. O ser de pele verde, corpo imenso e musculoso e braços grandes era um troll.

A raça dos trolls foi a primeira a habitar as montanhas do mundo, até a chegada dos humanos e, principalmente, dos anões, que os expulsaram dos seus antigos lares. A partir daí as tribos trolls foram perseguidas, consideradas feras irracionais e perigosas, e hoje são raros e reclusos, vivendo nos cantos mais remotos do mundo.

Por sua vez, o troll também percebeu que a mulher a sua frente não era humana, mas sim uma elfa. Serafina havia retirado o capuz e se revelado também.

- Como se chama? - perguntou Serafina. Ela e o troll estavam agora a poucos metros um do outro.

- Beogard é o meu nome, nobre senhora - o troll realmente estava encantado com a presença de Serafina. Nunca tinha visto uma elfa de verdade, só ouvido falar das histórias que os mais velhos de sua tribo contavam.

- Prazer em conhecê-lo, Beogard, eu sou Serafina. Faz muito tempo que não converso com um troll. Ficaria muito honrada se pudesse me acompanhar numa jornada.

- Jornada? - perguntou espantado o troll – Não, não posso sair daqui. Esta floresta é o único lugar onde posso me esconder. As pessoas não gostam de criaturas feias como eu, sempre me perseguem com suas armas e tochas. Desde que abandonei minha tribo eu prefiro vagar sozinho, caçando e vivendo em locais seguros.

Serafina passou alguns segundos olhando nos olhos da imensa criatura à sua frente. Seu silêncio não era por não ter o que dizer, mas porque sentia no fundo do seu coração grande empatia em relação a dor de Beogard, cuja vida era de solidão.

- Por que está me olhando assim? - perguntou o troll. Se não bastasse a presença hipnotizante da elfa, seu olhar era profundo e perturbador, impossível encarar por muito tempo sem desviar os olhos. E foi o que ele fez, olhando logo em seguida para baixo.

- Estava imaginando que você, com esse tamanho e essa grande força, poderia facilmente se defender de seus perseguidores, afinal, os trolls sempre foram uma raça guerreira por natureza, temida até pelos poderosos reis do passado – Serafina se aproximou mais ainda de Beogard enquanto falava – Portanto eu pergunto: por que você não usa sua força contra os que te perseguem?

- Nã..não sei. Simplesmente não consigo. Eu não sou como os meus antepassados, corajosos e fortes. Na verdade sou um covarde e fui expulso da minha aldeia por isso – Beogard não entendia porque estava falando aquelas coisas na frente de uma estranha. Mas algo na bela elfa o fazia abrir o coração.

- Você, Beogard – Serafina se aproximou ao ponto de levantar o braço e tocar o peito do troll, no exato local do coração – Perseguido pela aparência e pelo passado do seu povo, escolheu viver recluso, sem sentimentos de vingança. Tem a força para arremessar árvores, mas jamais a usou para machucar ninguém, pois não gosta de ferir as pessoas e sofreu muito toda vez que precisou fazer isso para sobreviver. Diante de suas escolhas, ao contrário do que falaram os membros da sua tribo, vejo um dos corações mais corajosos que já tive o prazer de conhecer em minha longa vida.

Beogard nunca imaginou que pudesse sentir tanta emoção. As palavras de Serafina mergulharam profundo em sua alma, arrancando lágrimas enterradas há décadas.

- Ob,,obrigado, minha senhora élfica – foram as únicas palavras que o troll conseguiu dizer.

- Me chame somente de Serafina, por favor – disse a elfa, sorridente – Mas tenho uma proposta a lhe fazer. Lembra daquela jornada que falei? Gostaria de me acompanhar nessa empreitada.

- Mas em que poderia ser útil? - perguntou Beogard.

- Ah, nobre troll, não se subestime tanto, afinal, sua força e seu coração poderiam ser usados para um grande propósito e ajudar muita gente. Além disso, poderia utilizar seus serviços de guarda-costas para mim. O que acha?

Beogard sentia que podia confiar totalmente nas palavras de Serafina. Mais ainda, naquela clareira repleta de neve prometera a si mesmo, no âmago do seu coração, que jamais deixaria de ficar ao seu lado, sempre protegendo-a, custe o que custasse, mesmo com sua vida se preciso fosse.

- Sim, minha senh...que dizer, Serafina, aceito acompanhá-la nessa jornada – dessa vez foi a vez do troll sorrir, mostrando suas enormes presas. Serafina sorriu de volta.

O momento foi repentinamente interrompido quando Beogard deu um grito. Uma flecha havia se enterrado em seu braço, fazendo seu sangue escorrer e causando grande dor.

- Vamos rapazes, a maldita criatura quer fazer mais uma vítima – a voz veio de um homem, vestido com roupas de couro e coberto por um manto e capuz como proteção para o intenso frio. O mesmo portava um arco, no qual já preparava uma segunda flecha, e uma espada pendurada na cintura. Atrás dele vinham mais quatro com vestimentas semelhantes, todos portando arcos e espadas. Eram caçadores, e a aparência deles demonstrava que estavam há muito tempo no encalço de sua presa.

- S..são eles de novo – falou Beogard, sentindo dor ao retirar a flecha do braço – Não param de me perseguir pelo menos há cinco dias.

- Não se preocupe – falou Serafina – Tenho certeza que podemos fazê-los mudar de ideia. Só estão com medo do que não conhecem.

Quase ao mesmo tempo os caçadores dispararam com seus arcos. A saraivada de flechas voou na direção do troll, mas Serafina, movimentando os braços rapidamente, fez surgir um redemoinho em volta dela e de Beogard. A força do vento arrastou tudo num pequeno espaço em volta, inclusive as flechas dos atacantes, que se partiram e forma lançadas longe.

O líder do grupo, não acreditando no que acabara de ver, não se intimidou e ordenou um ataque direto. Desembainhou a espada e os outros o seguiram na investida. Mas antes que pudessem se aproximar, a elfa invocou mais uma vez a força dos ventos, arrastando uma grande quantidade de neve e encobrindo o grupo de caçadores até o pescoço, deixando-os presos sob o peso da neve.

- Hei, o que está acontecendo aqui? Quem é você? - perguntou o que parecia sr o líder do grupo. O mesmo se debatia inutilmente tentando sair do monte de neve.

- Eu me chamo Serafina, e esse aqui é o Beogard. Honrados em conhecê-lo, nobre caçador.

- Be...Beogard? Esse monstro tem nome? Essas criaturas só vivem para devorar as pessoas, não possuem nomes nem hábitos civilizados como os nossos.

- Pois está enganado, humano – respondeu Beogard, apontando o dedo para o caçador – Não devoro pessoas, apenas caço animais para comer, ao contrário de vocês que parecem caçar por diversão. Então quem são os incivilizados aqui?

- Estávamos apenas protegendo nossas famílias de uma ameaça, e saiba você que não íamos desistir até que fosse embora ou morto.

- Suas intenções de proteção são nobres, senhor caçador – disse Serafina - Mas acredito que finalmente tenha percebido que as histórias sobre o monstro da floresta não eram verdadeiras. Estamos diante do mais gentil de todos os trolls, isso eu posso garantir – A elfa terminou de falar e segurou na mão de Beogard.

- Obrigado, senhora – falou o troll, respondendo ao gesto de confiança de Serafina.

- E o senhor, como se chama? - perguntou Serafina.

- Tarlius.

- Muito bem, Tarlius, líder dos caçadores, os habitantes de Vila Solitária estão preocupados com sua ausência todos esses dias. Na certa estão pensando que vocês foram caçados e devorados pelo perigoso monstro da floresta, não é? Por isso que, para acalmá-los, eu saí com a missão de encontrá-los. Feito isso, acho que agora podemos retornar e desfazer todos os enganos.

E assim, mesmo desconfiados durante todo o caminho, Tarlius e os demais caçadores aceitaram acompanhar Serafina e Beogard de volta à Vila Solitária.

Naquela mesma noite, ao redor de uma grande fogueira, os habitantes descobriram que o medo pode gerar histórias distorcidas e que aparências são muito enganosas. Perceberam que Beogard tinha algo muito maior do que seu corpo imenso: gentileza e coração.

Ah, e no final da noite Serafina cantou a mais bela canção que todos já ouviram em suas vidas, como havia combinado.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 09/02/2020
Código do texto: T6861722
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.