O CONCERTISTA MAGNÍFICO

Havia uma hora João Neuerbach estava sentado na cama, queixo sobre os punhos cerrados, pensativo que dava dó. Houvera um generoso aplauso no concerto. Casa cheia, “concert hall” todo iluminado desde os jardins. Generoso, mas não o suficiente. O ainda jovem Neuerbach esperara ovação estridente, com sabor a bis – chegara a sonhar uma chuva de ramalhetes e de cartolas, às antigas, logo após o seu terceiro garboso inclinar-se de agradecimento. Desse modo, fora um choque térmico quando o primeiro casal se levantara para a saída, antes do concessivo bis.
O que mais fazer? Ele fora dedicado, talentoso, laureado, em seus anos de conservatório. Mais, rapaz prodígio em seus dois anos de aprimoramento em Milão (merecido prêmio). O estágio em Paris, com o maestro Zanavsky – aulas de improvisação – lhe parecera muito da hora. E os cursos, seguidos da noite do recital, na Grünwald Academy, em Boston, foram então o prelúdio (sim, “Os Prelúdios”, de Lizst, o prenúncio da morte) da suposta glória. Os longos serões ensaiando o famigerado concerto lhe haviam custado as olheiras e uns três ou quatro quilos a menos.
Não há como acelerar o sucesso, não há como render mais num átimo: “Talvez eu tenha que esperar a meia idade para saborear a glória e a fama.” e se encabulava. Na centésima cisma, ele concluiu: “Ninguém pode! Não os comuns mortais” e foi quando se assustou com a ideia. “Ele pôde! Ele deu a alma e chegou lá. Aquilo custou-lhe os tufos, mas ele chegou ‘no limite’.”.
Acostumado a palcos, passarela de atores e de músicos, Neuerbach agora delira. Um incrível afã o arrebata, mesclando melodia, que corre nas veias, e drama, bem insólito. Encoraja-se, emposta a voz e vocifera:
– “Vinde a mim, Mefistófeles, meu caríssimo Mefisto! Se quereis mais uma alma virginal, eis-me vosso! Pouco vos peço em troca: apenas uma noite de brilho inigualável, da primeira nota ao último acorde; o deslumbramento inconcebível de toda uma plateia pasma. Uma noite de triunfo, apenas uma noite, apenas uma, apenas… e tereis a minha eterna servidão.”.
Num salto, ele ganha a pequena escrivaninha ao canto e se põe, frenético, a rascunhar um programa musical.
Os meses vindouros o encontrarão sempre cativo de seu anelo, horas pares e horas ímpares junto ao querido instrumento. Novas olheiras. Contatos, contrato, ensaios, contratempos, convites, sofreguidão. Haverá de ser uma noite ímpar, impagável, a do magnífico concerto desse novo virtuoso musical.
Poder-se-á ver, então, naquela noite anunciada por clarins, um jovem romper a quietude suspirosa da turba presente com uma epopeia de colcheias e bemóis. Como por uma plastia mágica, as cordas vibrarão alucinadas e parecerão dissolver-se no meio termo, tangendo a invisibilidade. O momento musical brincará de vesânia, ora cizânia, ora insânia. Quando concitadas, aquelas cordas exibirão uma incandescência insuspeita – parecerão arder de estalar os dedos. Porém, se a suavidade o exigir, as notas em sucesso trarão à mente a melodia incidental do passar sutil de uma sombra – o voo de uma pega terá sido mais sentido. Saber-se-á então que todo artista guarda o melhor para o final. A quintessência da vibração terá não ocaso, mas apoteose – apenas o novo mundo tê-la-á conhecido – e os oito compassos finais do último movimento da formidanda sinfonia darão o retrato irretocável de um instrumento que tenha entrado em combustão. Êxtase. Tempestade infindável de aplausos. Bis e mais bis.
Formas diáfanas volutearão sob a cúpula do teatro, passando desapercebidas. Ecos de todas as filarmônicas que tenham arrebatado audiências seletas estarão presentes e passíveis de serem ouvidos, não tenha sido a voragem do estridor assomado nas palmas incessantes, vindas dos corações candentes.
Hora da angústia, de pagar o preço avençado, cessadas todas as congratulações, todo o júbilo. Ainda no palco do teatro, Neuerbach verá ali subir um senhorzinho muito dos discretos, plenamente encanecido, assim como brancas serão as suas vestes – certas e poucas figuras como que irradiam a paz do Cosmos. Miúdo, um sorriso candura. Ele se acercará do jovem, lhe dará um vigoroso aperto de mão e lhe dirá:
– “Magnífico, rapaz! Meus melhores parabéns. Tenho um lugar especial para você em minha orquestra. Quer vir?”.
-- "Muito obrigado, senhor. Sinto, mas já tenho um contrato na sequência ".
-- "E eu não sei? Pois já negociei e seu contrato está comprado, em definitivo".