O VELHO QUE VIROU PEIXE

O VELHO QUE VIROU PEIXE

(Lázaro Faleiro)

Profunda paz. Plenitude de felicidade permeia aquela herdade. A casa ao pé da serra; o riacho logo abaixo. Beiradeando brenhas e banhados, baitas bacuris fazem festa para os olhos – pés de alface colossais, sinais, testamentos do teor da terra, loa de terra boa. Cintilações e cristais nas horas matinais, no verde dos matagais, no variado vaivém dos mananciais. Profusão de cores pelos arredores da casa. Perfume sutis, penetrantes odores, perfilar de pássaros e flores; canto, encanto e recanto dos amores das gentes, dos viventes, dos animais.

Desde meia década, desdita destoa daquele paraíso. A decadência, a demência da doença, o sem siso do velho. Gritos, atritos martelam o infinito cotidianamente; estranhas falas – facas no coração da gente! Dia e noite, noite e dia, que agonia, como doíam! Contundente, pungentes ais, batendo brenhas, beiradas de ribeirões, chavascais; ecoando constantes pelos grotões, cercanias e campos distantes, no repetir-se a cada instante; por fim se esvaindo, volatizando, sumindo, se acabando na lonjura da sepultura dos gerais!

Lembranças lentas, lanhentas, lacerantes. A amargura das lamúrias, no vaivém de infindáveis manhãs, noites viscosas, vagarosas, vãs; vacuidades de eras, sutil crença na quimera de ver o velho vencer a senil doença... O desconsolo daquele quadro. O coração não cabendo no peito... Pesado fardo, padecimento... Um sofrimento sem jeito?!

E aqueles ais se amiúdam mais e mais, se multiplicam, ecoam, se amontoam pelos gerais, no vacilo de vagas alucinações; num esquisito rito, demente, contundente no reviver reveses e loas, coisas ruins e boas, na proa do passado do paciente, a gritar, em tom plangente, tão triste, nomes de animais, bichos, gentes, parceiros, parentes que não mais existem.

Passos apressados no atalho que dá pra roça, pro trabalho. Pensamentos sem cabimento... Presságios, pressentimentos? O caminho do capão do mato, perto do riacho, logo abaixo, não cabe na unção de meu coração apertadinho, pequetitinho – bagozinho de feijão! E o Santa Marta, indiferente à minha sina, segue contente sua eterna tamina – milenar cantiga de águas cristalinas.

No afã daquela manhã tão diferente, energia malsã, sinistra energia, sinergia; fio e amarrio; lio e atavio a atar-me, a puxar-me inexoravelmente para o rio...

Ao chegar lá embaixo, no riacho; reluzente no tremeluzir e no purificar-se das águas, liberto de peias e mágoas, fazendo festas, acrobacias, destilando alegria, tanta ternura, mágica poesia, um portentoso e jocoso peixe, como nunca vi igual, afastando todo o mal, tinha, por sinal, a fisionomia de meu velho pai...

Mágico momento. Memento para minha alma. A fala, a cabala daquele quadro, o amor afastando toda a dor:

- Menino, não temas; sou teu pai! Tenho pressa; tenho que ir-me. Vim despedir-me. Vou fazer uma longa viagem... Coragem! Não vês? Podes crer; estou sadio como nos velhos tempos... sem amarras, sem sofrimentos...

- Mas... assim em forma de peixe?

- Não te avexes; há mil motivos para estarmos felizes... Adeus, meu filho; volto às minhas raízes.

Assim falou; assim sumiu nas brancas águas do rio...

Lazaro Faleiro
Enviado por Lazaro Faleiro em 30/01/2020
Código do texto: T6854598
Classificação de conteúdo: seguro