O Marceneiro e a Vilótera 1.0

O CAVALO DE MADEIRA

(O MARCENEIRO E A VILÓTERA)

Era uma vez um marceneiro — que também era um artesão, porque fazia artesanato, e de vez em vez pintor, quando pintava — que havia sido mandado embora da fábrica de brinquedos em que trabalhava. O seu chefe, Ogro Noel, encontrava-se em meio à uma crise financeira crítica, crítica a ponto de não ter dinheiro para platinar a barba para o natal. O chefe não pensou muito para causar uma demissão em massa na fábrica.

Preocupado com qual rumo tomar depois do pé na bunda, o marceneiro, que também era artesão e pintor, esperou no ponto de ônibus em frente à fábrica por uma linha recomendada por um amigo via uatezape chamada Alla Deriva. As histórias de seu amigo contam que esta linha nunca levava ao mesmo lugar.

Não demorou muito para que o ônibus chegasse, todo branco com detalhes em vermelho, cor de sangue. Apesar do daltonismo do artesão, dava pra ver que era vermelho-sangue. Mas isso não é importante.

Ao acomodar-se em um dos primeiros bancos, o artesão sacou do bolso direito seu último brinquedo construído na fábrica: um cavalinho de madeira. Estava escuro no ônibus, porque o Alla Deriva não tinha janelas para os passageiros, apenas para o motorista. O marceneiro analisava seu brinquedo com a ponta dos dedos, passando-os sobre os fiapos que ainda precisavam ser lixados.

O tempo foi passando, até que uma senhora sentou-se ao seu lado. O marceneiro ficou impressionado com o casaco de pele dela. Bonito até era, mas quem usaria isso no calor que estava ali? ‘Deve estar com febre’, pensou o artesão. A senhora não tardou para cumprimentá-lo, mostrar uns memes de bom dia no uatezape e perguntar o que o rapaz fazia ali. ‘Eu tenho nada além de minhas roupas’, disse o marceneiro, ‘meu amigo disse-me que sempre pega esta linha quando está em busca de respostas ou de um caminho’. A senhora fez uma cara de pena e logo respondeu ‘pois é, eu ganhei na loteria, não veio muito dinheiro porque o prêmio foi dividido em três pessoas, mas como eu gasto com facilidade, estou buscando uma forma de nunca perder o que tenho agora’. O artesão levantou a sobrancelha enquanto pensava, ‘é, tem gente na pior’, e os dois permaneceram quietos até o próximo destino.

Os passageiros do ônibus eram bem miscigenados, algumas pessoas tranquilas, outras estressadas; algumas com roupas de estampas em inglês que ofendiam a mãe do marceneiro, enquanto em outras, estampas minimalistas com a palavra ‘Ranço’. Pouco tempo após as observações do artesão, o motorista parou o ônibus e alertou os passageiros que restaram ‘vocês devem seguir acompanhados de alguém sempre e somente de um alguém, ou o caminho de volta não será possível’.

Quando desceram do ônibus, os olhos saltaram da rosto: eles foram deixados na terra de ninguém. Um vasto deserto. O que via-se de carros na rua, tornaram-se pedras, e o que via-se de prédios, montanhas. Os outros grupos de casais discutiam entre si, enquanto a vilótera¹ voltou-se para o marceneiro: ‘O que fazemos agora?’, ‘Você não prestou atenção? Devemos andar em duplas’. Os casais chegaram à conclusão de fazer o caminho reverso, seguindo o ônibus que já havia partido dali, para tentarem alcançar a cidade o mais rápido possível; mas o artesão negou o convite de juntar-se à eles, por conta do aviso do motorista ‘vocês devem seguir acompanhados de alguém sempre e somente de um alguém, ou o caminho de volta não será possível’. Os casais partiram, enquanto o marceneiro e a vilótera decidiram seguir para o norte, onde longe, lá longe, encontravam-se duas estátuas da altura de mil homens.

Eles começaram com o primeiro passo. Depois o segundo. Depois o terceiro. Depois já foram centenas. No smartwatch da senhora já tinha contabilizado mais de dois mil passos. O tempo voou e a lua assumiu o lugar do sol. E a velha perguntou ‘por que tanto você acaricia esse cavalo?’. O artesão sorriu, ‘porque é a única coisa que me resta, queria ter caprichado mais nele e ter dado para alguma criança, mas não está lixado, tampouco envernizado’.

Eles decidiram deitar para descansar.

No outro dia, o marceneiro notou olheiras escuras na vilótera. ‘Você dormiu bem’? ‘Não dormi’, disse ela, ‘passei a noite contando o dinheiro para ver se não estava faltando nada’. Eles seguiram, e o artesão notou que a velha de tempo em tempo tirava uma garrafa d’água guardada em sua bolsa para tomar um gole, mas não ofereceu uma vez sequer ao rapaz. As pernas já estavam cansadas, e a noite caiu de novo. Eles se acomodaram por ali e o ciclo seguiu-se por mais três dias.

O marceneiro e a vilótera encontravam-se muito próximos das estátuas, mas o homem já não estava aguentando. Com os lábios secos e as pernas trêmulas, ele deu alguns passos e desmaiou. A mulher se enfureceu, pensando ‘que rapaz mais fracote, logo agora’! Ela agachou, retirou sua garrafa d’água, colocou um gole na tampinha e dirigiu à boca do marceneiro; e fez isso algumas vezes, com pouca vontade, deixando a água cair na roupa e no cavalinho do marceneiro, até que sobrou um último gole em sua garrafa.

O artesão tossiu e levantou o pescoço. ‘Ainda bem que você acordou, esse era o último gole’. ‘Fico muito agradecido, senhora’, disse ele enquanto punha-se em pé. Ao esticar seu pescoço para cima, esticar, esticar até seu peito para os céus, o marceneiro descobriu a causa de tanta sombra onde estavam. Havia uma estátua gigantesca em sua frente, com uma placa e um cesto abaixo. Eles se aproximaram, e na placa lia-se:

‘Coloque o que acompanhou-lhe e trouxe-lhe forças para seguir em sua jornada. Eu farei um milagre o que você me der, e logo ela chegará ao fim’.

A senhora sorriu, e abriu a bolsa já pegando um bolo de notas de cem. ‘Espera’, gritou o marceneiro, ‘Você não acha mais justo colocar sua garrafa d’água? Sem ela, nenhum de nós dois teríamos chegado aqui’. ‘É, mas eu não teria vindo parar neste fim de mundo se não fosse pelo dinheiro’, respondeu ela, ‘terei uma fonte de dinheiro só minha aqui, que fará um rio com uma correnteza tão forte que me levará até a cidade’.

Assim, a vilótera colocou um bolo de dinheiro no local, e então tirou a garrafa da bolsa e virou todo o dinheiro da bolsa no cesto, para completá-lo até a boca. Quanto terminou, o marceneiro se aproximou, estendeu a mão em que estava seu cavalo de madeira, já sem nenhum fiapo, de tanto ele tirar com os dedos, e colocou-o no cesto. O chão estremeceu, e um pilar surgiu abaixo do cesto, ascendendo até a cabeça da estátua. A outra estátua, longe dali, abriu a boca e lentamente começou a jogar notas de cem pelos ares, que caiam como as penas de um corvo. Estava chovendo dinheiro.

A vilótera começou a correr em direção à estátua, com seu casaco de pele quase se tornando asas para que ela voasse mais rápido. Mas começaram a sair cada vez mais notas, e elas começaram a sair da boca da estátua como rajadas. Ela abriu os braços para segurar as notas que vinham em direção à ela, mas as rajadas ficaram mais rápidas, como o vôo de várias águias, até que formou-se um rio que encobriu a senhora.

O marceneiro, assustado, esperou a tempestade acabar e então aproximou-se de onde a vilótera foi encoberta para desenterrá-la. Aos poucos, foi puxando a montanha de notas para os lados com os braços, mas à medida em que ele buscava, as notas desapareciam. Até que todas elas desapareceram e somente o casaco da mulher restou por ali.

O rapaz, sem saber o que fazer, voltou para pegar a bolsa e a garrafa d’água, perto da outra estátua. Porém, ao chegar mais próximo, notou que o pilar antes ascendido não estava mais lá, tampouco o cesto.

Em vez disso, ao lado da bolsa com a garrafa, havia uma pequena fonte de água, onde perto dela estava cavalo marrom, igual ao cavalinho de madeira do marceneiro.

O artesão aproximou-se cuidadosamente do cavalo, que gesticulou seu pescoço em direção ao chão. Ele então sorriu e fez um carinho nas costas do cavalo. Pegou a garrafa e encheu com água da fonte. Depois, apoiou-se nas costas do cavalo e subiu. Dali, ambos partiram ainda em direção ao norte do deserto. E após um dia e uma noite, eles estavam de volta à cidade juntos.

As histórias contam que eles permanecem lá até hoje.

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Este é um texto que escrevi em 17/12/2018 para um 'concurso' muito engraçado. Foi bem divertido de escrever.