A FILHA DO PADRE
A FILHA DO PADRE
Lá na ladeia, havia um padre que paroquiava há mais de quarenta anos uma pacata e anónima terra. Já vinha de paroquiar outras aldeias, num corrupio inicial de princípio de vida sacerdotal, tendo chegado aqui, teria talvez não mais de trinta e cinco anos de idade. Quando chegou, encontrou de empregada a Sr.ª Glória, a quem o povo tratava por Glória do Padre, por sempre ter sido empregada de padres, mesmo quando estes mudavam. Ela ficava sempre. Agora, ambos já velhos, ela ainda mais velha seis ou sete anos e com as suas capacidades físicas muito diminuídas pelo peso dos anos e das doenças, o Padre Dinis, precisou de contratar uma nova empregada e serviu-se da igreja, para naquele “intervalinho” dos anúncios de missas para a semana seguinte, abrir “concurso”, para um lugar de empregada de padre.
Não foi fácil e na semana seguinte o padre Dinis ainda não tinha preenchido o lugar, porque segundo se falava, isto de ser empregada de padre gera sempre uns “rumores” que nem qualquer mulher suporta ouvir ou saber…, contudo Doroteia, ponderados todos os prós e contras, resolveu aceitar o desafio e no final da missa dominical e após o segundo anúncio, resolveu esperar no adro da igreja e próximo da porta da sacristia, o padre Dinis, que após se desparamentar e sem que este adivinhasse a presença no exterior da jovem, cá fora à espera, o fazia pachorrentamente, dando azo a que esta criasse um nervoso miudinho, que a levava a meter os dedos na boca, mordiscando-os.
Por fim, o padre lá sai da “toca” e para seu espanto, lá estava a Doroteia à espera para uma conversa que ele adivinhava estar relacionada com o anúncio, e na verdade não se enganou.
Tiveram uma breve conversa em que Doroteia disse ao que ia e o padre Dinis falou-lhe das condições que aquele trabalho exige, particularmente algumas indisponibilidades que ela não poderia usufruir, como as outras moças e neste particular lembrou-lhe que a dedicação e entrega dela deveria ser a tempo inteiro, tal como ele o faz com a igreja, isto é, não teria dias de folga e nem tão-pouco ter namorado. Doroteia nunca namorou e nem sabe se alguma vez iria namorar e com esta advertência é que nem pensar. Ainda assim, e depois de ouvir todas as condições que o padre Dinis lhe impôs, decidiu-se por aceitar, pelo que na segunda-feira já entrava ao serviço.
A Doroteia era uma jovem moça, filha de camponeses pobres, que viu naquele emprego uma saída profissional com melhoria, em relação ao seu passado. Teria dezanove anos, era alta, morena, sobrancelhas espessas, cabelos escuros, lábios ligeiramente grossos e pernas normais, nem bonitas nem feias.
A criada velha, a Glória do padre como o povo lhe chamava, deu-lhe indicações acerca dos hábitos da casa, tanto no tipo de comidas que deveria apresentar como nos horários para ver televisão, deitar, levantar e os demais… Doroteia foi aceitando a rigidez que obedecia a princípios e hábitos que estavam enraizados há dezenas de anos e que a Glória do padre havia criado como código de conduta. Destes todos, o mais difícil de seguir foi o dos horários de ver TV, isto porque depois do jornal das notícias a TV era desligada e nem o anúncio da novela ela chegava a ver.
Doroteia, na casa dos pais via diariamente as diversas novelas e pensava que poderia dar continuidade, contudo, aceitou as novas regras de vida e ao fim de duas semanas nem as novelas eram lembradas. Não saia de casa nem para ver os pais ou irmãos e estes se a quisessem ver e com ela falar um pouco, teriam de aproveitar o horário da missa e aquele bocadinho de tempo até que o padre se desparamentasse. Todo o tempo sobrante era para a casa, para o padre e para a Glória. Esta, já pouca actividade caseira desenvolvia e apenas orientava segundo os seus métodos arcaicos de governo de casa. Estavam-lhe cometidas algumas tarefas elementares que a sua saúde e energia recomendava, entre estas, dar de comer aos galináceos, dobrar e pontear meias, pregar algum botão, limpar o pó do quarto do padre e limpar-lhe os sapatos e pouco mais. Todas as outras tarefas era a Doroteia que as executava e diga-se, o fazia sem esforço dado o vigor que a sua idade transmitia.
Os domingos, eram os dias que Doroteia menos gostava desde que veio para criada do padre, ao contrário de antes que os aproveitava para dar umas saídas com as amigas, passar os olhos por algum rapaz ou rapazes que ela gostasse, ir a festas, a bares ou dançar, enfim … tudo mudou e os domingos eram passados à janela a ver quem passava ou por trás da cortina, sempre que a sua privacidade se sentisse beliscada pelo passar de pessoas que a constrangiam, particularmente as ex. Amigas ou rapazes do seu tempo. Nesta particularidade, sentia dor e arrependimento mas no final do dia já tudo estava esquecido e esta “revolta” só voltaria no domingo seguinte.
Muito naturalmente, tinha horas difíceis, sobretudo quando via passar amigas com namorados e que ela ao aceitar este emprego e as condições subjacentes a impediam de materializar, mas ainda assim, pensou que nada ainda estava definitivamente perdido, porque segundo ela, o padre vai para velho e depois ele não a irá poder controlar e possivelmente iria poder namorar como qualquer outra moça. Doroteia vivia alimentando esta esperança e por isso não se despediu de empregada. Ela não era muito de missas e só ao domingo é que ia, não sendo por isso muito vista, mas numa dessas missas, quando foi receber a comunhão e ao fazer o regresso ao lugar, um jovem fixou o olhar nela, tendo-se ela apercebido. Tratava-se do Germano, rapaz da sua idade e tempo de escola. Até aqui tudo normal, só que ele fez questão de a esperar no final da missa, para a cumprimentar e perguntar-lhe se estava satisfeita com a nova vida, não tendo ela dado parte fraca e tendo-lhe dito até que estava a gostar.
De parte a parte, sentiu-se plena satisfação pelo encontro que há mais de três meses não acontecia. Foi breve e apenas durou todo o tempo da desparamentação do padre. Despediram-se, com promessa de se voltarem a encontrar no próximo domingo, no mesmo sítio e hora.
Cada um irá guardar à sua maneira a saudade deste encontro e potenciar uma ansiedade cada vez maior, pelo domingo que há-de vir. Na verdade, cada um dos jovens já fizeram chegar ao outro que os encontros não eram fortuitos, antes consequência de ditames do coração. A advertência do padre Dinis de que os namoricos não eram aceites, fazia refrear os desejos de Doroteia, que ainda assim, achava poder levar por diante o seu desejo, desde que feito às escondidas, sobretudo na ausência do padre ou na hora em que a Glória do padre estivesse a dormir a sesta ou até mesmo em surtidas nocturnas, feitas na calada da noite.
Estas estratégias estavam a ocupar-lhe a mente, mas para isso era preciso que Germano manifestasse vontade de a pedir em namoro e ela essa certeza ainda não a tinha, mas também não estava demorada a resposta que ela ansiava e que no domingo seguinte Germano confirmaria com pedido de namoro efectivo, ao que ela aceitou, lembrando-lhe apenas algumas “estratégias” defensivas, para salvaguardar a sua conduta diante do compromisso aceite na primeira conversa havida com o padre Dinis. Este por sua vez e face a ligeiras alterações no comportamento emocional da Doroteia, que entoava cantigas com letras românticas, levou-o a criar algumas leves suspeições e a perguntar a si mesmo, se ela não andaria perdida de amores com algum rapaz. Estes sinais eram só no comportamento porque na prática ele nunca se apercebeu de nada, o que o levava a supor ser apenas um gosto particular pelo canto.
Os primeiros encontros estavam para acontecer e a satisfação dela reproduzia o contentamento do namoro que agora iria tomar corpo.
O passal ficava próximo da igreja e de uma capelinha meio abandonada, que intermediava as distâncias e era na retaguarda dessa pequena ermida cavada num fundo e cercada de muros altos que aconteceram os primeiros encontros e os que se seguiriam.
Acontece porém, que num desses encontros, o pequeno Cristóvão ao passar fortuitamente, espreitou de cima do muro para ver se ali haveria algum ninho e viu-os aos beijos. Como tivesse feito algum barulho ao pisar folhas secas, os namorados olharam para cima e viram-no, tendo-o Doroteia advertido e Cristóvão aproveitou para fugir a correr, com medo.
Estava dado primeiro passo para que o mistério do namoro pudesse ruir, pensou ela, para mais tendo sido uma criança a ver, acrescentaria.
Lembro que Doroteia duas semanas antes deste facto, havia iniciado o ensino da catequese e o pequeno Cristóvão pertencia ao seu grupo.
O garoto nunca foi muito bom na catequese, não se sabe bem porquê, mas o que é certo ele não ligava patavina e confundia as orações, principalmente a Ave-maria e o Pai-nosso. Doroteia esforçava-se para que ele aprendesse bem, sem confundir as duas orações, mas uma vez perdeu a cabeça e deu-lhe um puxão de orelhas por não saber. Cristóvão não gostou e ameaçou dizer o que tinha visto atrás da capela. Doroteia ficou brava porque ele representaria um perigo para a confidencialidade e mistério do namoro. Por alguns momentos serenou, acarinhou o rapazinho e pediu-lhe desculpa.
Doroteia era muito exigente com a aprendizagem das mais elementares orações e marcou a Cristóvão que as estudasse atentamente e que as lesse no mínimo vinte vezes cada uma, porque no dia seguinte, queria tudo na ponta da língua…
Cristóvão como não se sentisse seguro da aprendizagem, manifestou vontade de não ir à catequese nesse dia, mas a mãe, refinada beata, não consentiu e ameaçou-o de porrada caso ele faltasse. Cristóvão, que a cada passo era açoitado pela mãe, preferiu levar supostamente algum puxão de orelhas do que levar com o chinelo.
A catequese parecia decorrer muito bem, até ao momento em que Cristóvão foi questionado e lhe foi pedido para dizer a Ave-maria e o Pai-nosso.
- Cristóvão, estudaste como eu te disse, vinte vezes as orações?
Embora sabendo que iria mentir, acenou com a cabeça dizendo sim.
- Está bem. Então diz-me primeiramente a Ave-maria.
Cristóvão balbuciou palavras inaudíveis e Doroteia advertiu-o para que falasse alto, porque todos queriam ouvir.
Cristóvão ganhou confiança e começou:
Ave-maria cheia de graça,
Santificado seja o nosso nome,
Bendito sejais vós entre as colheres
Bendito o fruto do nosso ventre,
Seja feita a nossa vontade,
Assim na terra como no inferno,
O pai nosso nos dai hoje,
E rogai por nós pescadores,
Para que não nos deixeis cair em tentação,
Agora e na hora da nossa morte,
Livrai-nos do mal.
Amén.
No fim da oração, Doroteia perdeu definitivamente a cabeça e deu-lhe uma bofetada, tendo-lhe deixado escritos na cara os cincos dedos da mão.
Cristóvão, desatou a chorar convulsivamente e fugiu pela igreja fora, com destino a casa.
- Que foi que aconteceu rapaz? Perguntou a mãe, com preocupação que lhe vinha da violência com que o filho terá recebido a bofetada.
- Foi a catequista?
- Foi.
- Anda cá. Vamos falar com o padre, que isto não se admite…se fosse uma bofetadita ou um puxão de orelhas…agora um estaladão deste feitio…
A mãe, pegou no filho pela mão e foi falar com o padre para que este ponha moderação na Doroteia e não castigue daquele jeito, as crianças.
Tocou a sineta do passal e a velha criada Glória, apareceu no pátio da cozinha.
- Sr.ª Glória, o padre Dinis está?
- Quem lhe quer falar?
- Sou eu, a Zulmira do Bernardo.
- Está bem. Vou chamar por ele.
Padre Dinis estava a ler o jornal paroquial, sentado numa poltrona junto da janela a receber sol de Outono que lhe entrava pela vidraça, desceu e mandou entrar para o terreiro a Zulmira, com o filho pela mão e ainda as marcas da bofetada lá gravadas.
- Então que há, Zulmira?
- Sr. Padre, olhe para a cara do meu filho. Só porque se enganou numa palavra ao dizer a ave-maria, levou um estaladão deste jeito….e mostrava a cara na face direita, ao padre.
Quero ouvir a versão do Cristóvão.
- Como é que foi isso, Cristóvão?
- Estava a dizer a ave-maria e a sua filha bateu-me.
Gargalhada geral de padre e mãe, pela inocência da criança e que momentaneamente fez esquecer o motivo da visita.
Na verdade, das crianças pode-se esperar o inesperado, que faz delas simples e inofensivas.
Por tudo o que elas têm de bem e de bom, a minha homenagem.