Orinsuke e Os Sete Trovões - Cap 23: Visita Inesperada
Orinsuke agradeceu o fato de poder descansar um pouco depois de dias intensos de treinamento, incluindo as lutas no kumite. Os ferimentos causados na luta contra Sarabi ainda estavam doloridos, embora os hematomas tenham regredido bastante.
O sensei Azura deu dois dias de intervalo, com exercícios físicos apenas na parte da manhã. Pela tarde os alunos estavam livres para circular por Jinkai.
Embora as lutas tenham sido duras e disputadas, o sensei fez questão de deixar claro que não admitiria qualquer tipo de desavença fora do tatame, e que o kumite tinha o objetivo de testar o nível de taijutsu entre eles, alunos de mesmo grau.
Enquanto estava arrumando uns objetos em seu quarto, Orinsuke foi surpreendido por uma visita inesperada que bateu à sua porta.
- Kiha! - falou ao ver a samurai. A alegria estampada em seu rosto era fruto do tempo em que não a via.
- Olá, Orinsuke, como vai o mais novo gakusho do clã Wanabi? Pela aparência do rosto, o sensei Azura vem treinando pesado, não é? - Kiha estava com um leve sorriso no rosto.
- Ah, não foi nada – Orinsuke alisou o rosto – A luta não foi fácil, mas consegui passar para a fase seguinte do kumite.
- O sensei Azura e seus torneiros. Eu lembro que em meu tempo, tive que me esforçar bastante para ser a primeira nesse negócio.
- Então você foi a melhor em taijutsu da sua turma, Kiha sensei?
- Sim, fui.
- Que legal. Dessa vez acho que a Shimitsu será a vencedora. Ela com certeza é a melhor lutadora.
- Nunca subestime as garotas – falou Kiha.
- Verdade. Vocês são bem fortes mesmo – disse Orinsuke, um pouco constrangido em se dirigir a Kiha de forma tão informal. Mas sentia por ela uma proximidade confortável. Desde a primeira vez que se viram, no assalto ao comboio de Kimoto, percebeu que via nela uma espécie de irmã mais velha.
- Faz algum tempo que não a vejo em Jinkai. Estava ocupada esse tempo todo? - perguntou Orinsuke.
- De fato estava – respondeu Kiha – Fui destacada numa missão importante pelo clã.
- Nossa, não vejo a hora de trabalhar em missões assim como um samurai, defendendo a paz e protegendo as pessoas.
Kiha ficou por alguns segundos observando-o e Orinsuke percebeu que queria dizer alguma coisa, mas preferiu o silêncio.
- Quer falar alguma coisa, sensei Kiha?
- Nada demais. É que faz tempo que não nos vemos e pensei em convidá-lo para um almoço.
- Mas será que sensei Azura deixaria eu sair de Jinkai?
- Nada que uma das melhores alunas dele não possa tentar, não é? - falou Kiha, sorridente.
Kiha não revelou o que teria conversado com o sensei Azura, mas o fato é que ela obteve permissão para sair com Orinsuke de Jinkai e circular pela aldeia. A samurai o levou para uma confortável casa de chá onde almoçaram uma deliciosa bandeja de frutos do mar, acompanhada de um suave e revigorante chá verde.
Logo depois, os dois caminharam pelas ruas e Kiha mostrou os lugares que havia prometido visitar num momento propício a Orinsuke desde o primeiro dia que o garoto entrou em Hikuran. De todos os lugares visitados, o que mais Orinsuke gostou foi o bosque Naka, uma área verde localizada no meio da aldeia onde muitas pessoas caminhavam sossegadamente às sombras das belas cerejeiras.
Os descontraídos parceiros de passeio pararam para descansar e sentaram na relva, apreciando a paisagem ao redor.
- Espero que tenha gostado do nosso passeio – falou Kiha.
- Sim, claro, gostei muito. Obrigado pelo almoço pelo passeio. Não imaginava que a aldeia fosse grande assim. Em comparação com minha pequena Kimoto, a capital é enorme.
- Eu também tive essa impressão quando cheguei aqui pela primeira vez.
- Achei que tivesse nascido aqui em Hikuran – falou Orinsuke
- Não, eu nasci, assim como você, numa pequena aldeia, às margens da Grande Floresta, chamada Sinchiyo.
- Quem sabe um dia você possa me levar para conhecer, não é, Kiha sensei?
- Para falar a verdade, isso não será possível.
- Por que? - perguntou Orinsuke
- Minha aldeia não existe mais. Foi destruída há alguns anos, quando eu tinha acabado de terminar meu treinamento em Jinkai.
Orinsuke ficou perplexo com a informação de Kiha e com toda a história que ela contou em seguida.
Kiha contou que seus pais foram samurais responsáveis pela patrulha da região que compreendia a orla da Grande Floresta, desde o ponto mais ao norte do território Wanabi até o Rio da Serpente ao sul. Durante muito tempo viveu num ambiente de paz e tranquilidade, brincando e ajudando nos afazeres da aldeia.
Até que a guerra estourou ao sul, uma guerra que envolveu a maioria dos clãs de Endo. Na época ficou sabendo apenas que se tratava de um conflito que envolvia um grande templo no meio das montanhas, em terras distantes ao sul.
Só depois, quando a guerra já estava em curso, é que soube a respeito do Templo do Sol e da Lua, o lugar em que vivia grandes mestres das artes samurai, cujos conhecimentos estavam sendo disputados pelos clãs.
Kiha disse que até hoje lembra do momento da partida dos pais com as forças do clã Wanabi. Aquela foi a última vez que os viu, já que dias depois receberia a notícia de que haviam morrido em batalha. Mas essa tragédia seria apenas a primeira, pois logo em seguida uma outra cairia sobre o clã e sobre sua vida.
Desde tempos antigos, os clãs Wanabi e Iuchi, com seus territórios fazendo fronteira, nutriram desavenças que sempre terminavam em conflitos abertos. Mas durante certo tempo os clãs viveram em relativa paz, chegando até a unirem-se na Batalha do Templo do Sol e da Lua, graças a diplomacia de seus líderes.
A morte do velho shidosha dos Iuchi, dando lugar ao seu filho inconsequente, reacendeu as antigas rixas. E o novo jovem shidosha, aproveitando o momento de fraqueza dos Wanabi, que perderam muitas vidas na grande batalha no sul, invadiu o território vizinho no intuito de acabar de vez com os antigos adversários.
E as primeiras vítimas da guerra Wanabi/Iuchi foram os habitantes de sua aldeia natal, contou Kiha.
O evento conhecido como Massacre de Sinchiyo ficou gravado para sempre na memória do clã, e se não fosse a força e a resistência de seus samurais, outras aldeias teriam sofrido o mesmo destino, quem sabe até Hikuran. A própria shidosha liderou as forças Wanabi e conseguiu a muito custo expulsar os invasores.
Sinchiyo foi reconstruída, mas, para tristeza de Kiha, ninguém voltou a morar lá por pura superstição. Muitos dos mais velhos passaram a dizer que o lugar estava amaldiçoado, com os espíritos de homens, mulheres e crianças ainda vagando por lá, atormentados em busca de paz.
No final, o Tratado da Torre de Pedra, conhecida como Baikai, foi assinado e o conflito se encerrou.
- Nossa, Kiha sensei, que acontecimento triste. Tomara que essas coisas do passado nunca voltem. Ainda bem vivemos um tempo de paz.
Kiha o encarou com um olhar circunspecto, meio triste. Parecia perdida em pensamentos.
- No mundo samurai, Orinsuke, paz e guerra mudam constantemente. Gostamos da paz, mas sempre nos preparamos para a guerra, muitas vezes ansiando por ela. A vingança sendo seu principal alimento.
- Meu pai, o Sr. Onoke, viveu aqui em Hikuran há muito tempo como artesão. Acho que foi na época dessas guerras que você falou. Ele sempre dizia que a vida de um samurai é regada a dor, sangue e escolhas difíceis. Mesmo assim eles escolhiam esse destino para defender as pessoas, por isso eram guerreiros valorosos. E essa é minha escolha, a paz no lugar da guerra, defender as pessoas no lugar de machucá-las.
Kiha ficou encarando Orinsuke por um tempo sem dizer nada. As palavras do garoto a tinham feito refletir sobre algumas coisas que ouvira no passado e pareciam perdidas no tempo.
- O que houve, Kiha-sensei?
- Nada. É que você me lembrou uma pessoa, só isso.