O ESPELHO DA BRUXA: Uma releitura da história de Rapunzel.

     Muito se ouve sobre a história da bela Rapunzel, aprisionada no alto de uma torre por uma bruxa má que a havia criado como se sua fosse, entregue por seu pai, amedrontado, quando a feiticeira o surpreendeu a apanhar rabanetes para a mãe de Rapunzel, ainda por nascer. Os rabanetes que a mulher havia insistido para que o marido pegasse no quintal da bruxa, teriam o gosto amargo e metálico, como uma mistura de lágrimas e sangue. Um sabor que acompanharia para sempre o paladar da mulher que havia perdido a filha, quando seu marido fora confrontado pela iminência da fúria a ser libertada pela feiticeira conhecida por suas magias e poções poderosas, aquela cujo nome não devia ser dito, como se tal fato pudesse, por si só, apresentar-se como uma palavra cabalística para o mau agouro. Decerto, o que não se conhece por completo, é o destino terrível da pequena infante deixada aos cuidados da megera alquimista. Nos contos de fadas clássicos, como se fosse uma espécie de regra velada, inconsciente, cuja legitimidade era incontestável, presumia-se um final feliz, sempre aguardado e idealizado. A realidade, todavia, nem sempre é o que se projeta nos recônditos da mente do ser sensível.

     A menina aprendeu a andar, falar e brincar; a lenda estava certa em parte quando descreve Rapunzel como a mais bela de todas as meninas, uma criança originalmente de traços angelicais, depois uma jovem com uma mente aguçada, maliciosa, vivaz, e acima de tudo, dotada de uma luxúria e voluptuosidade inatas que amalgamavam-se perfeitamente aos seus poderes místicos, transmitidos pela sua imposta preceptora. O corpo majestoso parecia brilhar, um irradiar de aura maquiavélica que atraía os homens e até mesmo as mulheres, como as sereias com seu canto, seduzindo os marujos para seu fim horrendo de encontro às pedras. Ela havia sido posta no alto da torre, não para ser ceifada do convívio dos homens, como uma joia por demais perfeita para ser contaminada por mãos indignas, mas ambas as necromantes tinham um propósito, atrair vítimas indispensáveis à sua sobrevivência. A bruxa velha, utilizando-se de sua mais forte e secreta mágica, havia sugado a fonte vital de Rapunzel quando esta lhe fora entregue, ou melhor, exigida de seus pais verdadeiros, e foi a fonte mais forte de sua existência desde então. O resultado, era que sua pupila havia transformado-se em uma criatura como ela, uma verdadeira vampira de almas, insone e sedenta por essência vital, sendo a mais poderosa e prazerosa, aquela das pessoas boas, como ela descobriria no decorrer de suas herméticas incursões alimentares.

     Sorver o fluido de uma pessoa pura de coração satisfazia aqueles seres condenados, por longo período de tempo, mas a fome era constante, animalesca, tal como o próprio instinto de matar. No entanto, diferente dos animais, as duas bruxas alimentavam-se mais do que sua necessidade clamava, mas com uma voracidade que aumentava a cada refeição, a cada vítima, cuja alma enfraquecida ficaria presa por toda a eternidade no espelho guardado por Rapunzel em sua torre inacessível, cujos seletos para lá adentrarem, somente cruzariam a janela dependurados em suas longas tranças flutuantes. Como tentáculos de um polvo, as tranças tomariam vidas para que os hipnotizados pela beleza da bruxa jovem pudessem nelas se acomodar e iniciar a subida, como num tronco de árvore, rumo ao que parecia a promessa de regozijo e amor plenos, sem falhas. Não é essa a busca quando se está apaixonado?

     Todavia, os rompantes amoriscados não eram indeléveis, pois o encanto desaparecia no momento em que a presa sentia o expirar de seus pulmões e ficava frente a frente com a criatura, que levantaria o véu da ilusão para descortinar as feições do mau, usurpador, como uma mirada derradeira na face da medusa. Os aldeãos não se arriscavam a andar perto dos domínios das bruxas, e enquanto os desaparecimentos se tornavam notórios, o mistério que cercava a torre chegava aos ouvidos de mais e mais pessoas, algumas, fortes o suficiente para tentar uma arremetida ao bosque sombrio; outras, tremiam apenas com a ideia de se depararem com aquela chamada apenas de "a criatura". Em sua constante busca por conquistas, amores e fama, cavaleiros andantes já haviam tentado decepar a cabeça da bruxa jovem, a que mais aterrorizava aquela parte do mundo. Cientes de que detinham a força suficiente para a tarefa, inúmeros perderam suas vidas quando imobilizados pela face sedutora, antes da real fisionomia devorar sua força e espírito.

     Cansado de ver jovens e integrantes de seu rebanho perdidos nas mãos maléficas da família de estrigas, um padre que guiava o ministério local resolveu que algo devia ser feito, e somente o poder da igreja seria o bastante para inabilitar a bruma de medo e miséria que assolava o bosque e seus derredores. O jovem religioso, confiante no poder de Deus e em sua fé, recebeu a autorização de seu bispo, como era a praxe em casos mais sensíveis da igreja, como exorcismos, por exemplo – ora, não estava a lidar com forças demoníacas? – e dirigiu-se confiante até a temida torre. O padre guerreiro vestia-se com roupas comuns, queria fazer-se passar por um caçador de recompensa ou aventureiro, até mesmo carregava um arco e flecha às suas costas. Chegando nas terras das bruxas, ele pode sentir que o ar era pesado e recendia a podridão, como aquela que exala dos corpos putrefatos, mas que emanava da terra condenada, maldita apenas por coexistir com tamanha maldade. O bosque parecia ter vida própria, com árvores que na escuridão desenhavam silhuetas de monstros, e os ruídos das corujas e demais habitantes voadores, emprestavam um tom lúgubre à trilha que deveria ser percorrida até o encontro da besta sedutora.

     Após uma caminhada que lhe parecera durar horas, o religioso avista uma jovem à janela, com madeixas que pareciam asas clamando por libertação. Por um momento, o clérigo chega a duvidar que tamanha beleza pudesse acobertar maldade e maldição. Dirigindo-se para perto da torre, ainda encarnando seu papel, ele grita para Rapunzel:

     - Jovem que se põe ao alto, o que faz sozinha? tem você um cavalheiro ou posso ofertar meus préstimos e devoção a tão bela dama, caso esteja solitária? Confesso que de longe encantou meu coração errante. Ofereço proteção e amor eternos, pois tua face lançou sentimento nunca antes por mim experimentado!

     - Corajoso cavaleiro, fui aqui aprisionada por uma bruxa que me sequestrou de meus pais, e por toda a minha infância e juventude, tenho sido privada da companhia de meus pares. Se é valente e nobre de espírito e coração, suba por minhas traças, cultivadas por toda uma existência reclusa e venha me salvar. Irei contigo para uma vida de devoção, pois saberei recompensar aquele que me ajudar a evadir-me de tal martírio – entoa em tom macio, coroado por olhos marejados, daqueles que veem a iminência da salvação.

     O padre disfarçado inicia sua subida, a qual ultrapassa facilmente em razão da sua juventude e força, instigado pelo propósito nobre de expurgar a vila daquele mal, e ainda, mesmo que ingenuamente, tentar livrar a pobre alma do estigma em ser um receptáculo das forças das trevas. Ao atingir o limiar da janela, alcançando os últimos centímetros da construção erigida sobre dor e decepção, encarara um olhar que o faz questionar sua missão. "Impossível, Deus não deixaria que uma serva fosse capaz de infligir tamanha parcela de dor. Ela é por demais linda e apaixonante", é seu pensamento enquanto sente-se atraído para cada vez mais perto, num misto de antecipação e um medo seco que lhe subia pelas costas e concentrava-se no estômago. Ele podia sentir a respiração dela, como se estivesse em seu pescoço, suas mãos invisíveis por entre suas vestes, enquanto era hipnotizado pelo olhar perfurante de Rapunzel e por seus seios alvos que pareciam implorar ainda que o mais contido toque lascivo. O rapaz recém-ordenado como guerreiro de Deus sente crescer sua ereção, de forma harmoniosa à progressão de sua impotência aos encantos e desencantos que, macabramente, desnudavam-se diante de si.

     - Você não pode me salvar Andrew... - diz a bruxa, que agora revela sua verdadeira face, tanto a física quanto a etérea, surpreendendo o religioso com o fato de ela saber seu nome - surpreso? eu sei de muitas coisas, coisas que nem você, que se acha protegido pelo seu Deus, nunca sonharia em descobrir. Mas tenho um segredo para lhe contar, meu doce Andy. Ele não existe...

     Foram as últimas palavras da maga, ditas aos ouvidos da vítima paralisada, antes de sua máscara de mulher dar lugar ao corpo gris e decomposto, como uma figura intermediária entre um cadáver mumificado e um espectro. As até então belas madeixas transformam-se em eras venenosas que imobilizam-no como uma serpente gigante e perfuram o corpo do padre, que agora conhecemos como Andrew. - Não por Deus...- forma-se uma frase interrompida enquanto um dos caules malditos se introduzia em sua boca ceifando sua vida terrena e sugava seu poder vital, até que ele transmudasse a algo parecido com um cacho de uvas secas, ou uma árvore consumida pelo fogo do inferno. Após o processo que duraria alguns segundos, o corpo transformar-se-ia em cinzas, numa espécie de finda pira funérea, que seriam levadas pelo vento e se tornariam parte da floresta. Revelava-se o motivo do odor acre que perneava as já enegrecidas vegetações; elas erigiam um mausoléu aberto, como uma ode funesta a todas as vidas ali consumidas.

     Quanto ao padre, pretenso cavaleiro, derradeiro guerreiro, sua alma, assim como as demais, permaneceria aprisionada no espelho milenar, único adorno contido na torre em forma de cripta na qual Rapunzel se alimentava e seduzia. Em uma eternidade de vácuo, solidão, e acima de tudo, tristeza, o espírito enfraquecido do fatídico libertador vagaria sem sair do lugar, relegado a um esquecimento, como o de alguém emparedado vivo.
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 13/12/2019
Código do texto: T6817936
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