A Cachorrinha Mariana

A beleza arrumou uma companheira de viagem chamada Mariana. Esta doce amiga era uma cachorrinha muito bonita, toda lavradinha de vermelho com branco. Todas as vezes que a Beleza botava a bacia de Colorau na cabeça, a Mariana corria e ficava esperando na porta para acompanhar a amiga na andança.

O povo da Lavagem ficava impressionado com a disposição da cachorrinha para fazer os caminhos mais a "dona". E ninguém acreditava quando a Beleza se virava para eles e dizia:

– Na verdade, a Mariana é minha amiga. Não posso ser dona de outro destino que não o meu.

Estas palavras só podem ser entendidas por gente que ver mais do que a superfície das coisas, das relações do ser humano. Desde muito tempo, que os homens deixaram de serem amigos dos outros seres na natureza e até mesmo entre si.

Acabou que muita gente não conseguia enxergar a profundidade da afetação entre a Mariana e a Beleza, por que isso demandaria deles um desaprendimento de tudo que lhes eram preciso para ser vazios. Mas para as pessoas desimportantes isso era algo possível, por causa de sua mística antiga.

A Felicidade, que era amiga da Beleza, não tinha cachorrinha, no entanto conversava com as Caraúbeiras e diziam que ela mesma dava flores amarelas em seu sorriso. E sempre que recebia a Beleza, a Felicidade falava assim para a Mariana:

– Eu sei que seu nascimento foi por causa de uma memória. Eu sei de seu acometimento de memórias. Eu sei de seu falamento.

Porém, a Mariana só olhava para a Felicidade com aqueles olhinhos arregalados, como se tivesse entendimento de tudo. Outra resposta não havia, ainda assim o pensamento da Felicidade não se despedia. Então ela olhava para a Beleza, que sorria e nada confirmava da suspeita da amiga.

Quando voltavam para casa, no caminho das Caraúbas, a revelação aconteceu e tudo o que a Felicidade falava sobre a Mariana se realizava. A cachorrinha fazia um espreguiçamento no meio do caminho até que parava de uma vez, se voltava para a Beleza e tinha um acometimento de fala:

– Gosto da sua amiga árvore, Beleza. Ela parece que entende de memórias, pelo menos sabe arriscar dizer de onde eu venho e pertenço. Mas será que ela sabe mesmo que nós duas conversamos? Será que ela descobriu nosso segredo? Sabe, minha amiga, enquanto ela estava falando me lembrei do meu próprio nascimento. Você sabe que eu venho das bandas do Reino de Pedra Azul, lá onde mora aquele que canta assim: “morei no segundo andar do Reino de Pedra Azul / Sou morador lá das varandas, por nome Castelo Azul”… Foi ele mesmo que descobriu a chave pra que eu voltasse aqui. Era a Memória. A memória é uma força impressionante. É através dela que nos conhecemos desde as mais profundas arestas. Suas linhas invisíveis nos alcançam e nos recuperam por meio de chamados. A memória sabe cantar o passado de um jeito que valide a experiência do presente. A memória traz os fragmentos da Beleza para que com ela aprendamos a olhar a vida por outras óticas. A memória é o acerto dos desimportantes pela continuidade da vida.

Depois de dizer suas palavras, a Mariana teve de se calar. Embora quisesse continuar a conversação com sua amiga, pois também a Beleza esperava falar suas impressões e as imagens que tinha da vida, alguém apareceu no beco. A Beleza, ainda arriscava umas poucas palavras, mas para não serem descobertas a Mariana se espreguiçou mais uma vez e retornou ao estado de cachorro que não tem o escutamento tão bom quanto o falamento. Nem toda passagem do passado é perfeita. Às vezes só uma coisa escorre, a outra espera em silêncio. O mistério deve ser preservado de quem não compreende.

Dizem que quando a Beleza foi morar nas nuvens, a Mariana ficou sem companhia na terra e de tanto ficar em casa, engordou tanto que quase não podia se mexer. Depois de perder a amiga de andanças e de escutamentos, a Mariana nunca mais quis sair. A única coisa que fazia era se deitar na boca da noite no terreiro. Olhando para o alto, ela esperava que a amiga lhe sorrisse das alturas e abrisse ainda os ouvidos para lhe escutar sobre seu transportamento para o presente.