Um sonho de mamãe Oxum

Abri os olhos.

Despertei as margens de um rio caudaloso, tão largo que eu não podia avistar a outra margem.

O sol estava nascendo e todas as coisas ganhavam cores na minha visão.

Não sei que lugar era aquele. Só me lembro de ter seguido uma voz que cantava docemente, mas que agora desaparecera no mistério daquele amanhecer.

Fitei o chão – sob os meus pés havia um tapete feito de uma areia alva como o vestido da aurora. Olhei ao redor para constatar sinal de vida humana, no entanto nada vi que lembrasse o meu mundo.

Busquei respostas na areia; a faixa estreita de terra era engolida à esquerda por uma vegetação verdinha, que se estendia acompanhando o Rio até se perder de vista.

Procurei rapidamente com os olhos uma vereda pela qual escapar, porém não havia sinal de caminho por entre a mata. Não poderia voltar por ela.

Mas para onde voltar? Para onde seguir?

Acima de mim voavam pássaros que ora ou outra gritavam melodias incompreensíveis, diferentes daquela que havia me chamado.

De vez em quando, alguns mergulhavam no Rio e saíam sem pingar uma gota d´água, porém com core diferentes das que tinham antes de mergulhar.

Me impressionei com essa visão, mas decidi não me demorar nela.

Senti uma brisa me empurrando na direção do Sol.

Deixei que me levasse. Talvez sua frescura anunciasse o meu destino naquela paragem que parecia inesgotável.

A brisa suave, ainda estava fria como se não tivesse sido banhada pelos raios quentes do Sol.

Caminhei lentamente, decidida a sentir o toque do insondável através daquele vento primaveril. Quanto mais me afastava daquilo que julgava ser o início do caminho, a brisa foi se transformando numa voz doce e melodiosa. Reconheci nela o encante que me trouxera até ali...

Havia me perdido do mundo para me encontrar naquele além-mundo à procura de uma voz desconhecida que espalhava as folhas daquela mata.

A cada passo, meus pés afundavam naquela areinha macia. Não era difícil de caminhar por ela, parece que a areia me empurrava para cima tão logo meu pé afundava. Suspeitei que ela queria beijar meus pés para evitar o cansaço.

Ao meu lado, a água do Rio também se movia. Ele tomava a mesma direção que eu...do mesmo modo, nos seguiam as folhas que caiam da mata.

Não foi preciso caminhar muito, avistei uma figura que se mexia na beira do Rio. Entretida, ela cantava a melodia que me trouxera ali, enquanto varria com uma vassoura de algodão a areia branquinha da praia.

A mulher trajava um vestido azul como o Mar e realmente eu via ondas nele quando a brisa soprava.

Aquela mulher estava vestida de Mar.

Enquanto ela cantava, as ondas quebravam no vestido. Era bonito de ver.

Sua pele negra como a noite, me fez entender que ela vinha do antigamente e tinha viajado muito para me encontrar na beira daquele Rio.

Assim que me aproximei, ela parou de cantar e levantando a cabeça, me disse:

– Deus te Salve, minha filha. Venho de muito longe varrendo os caminhos para te encontrar.

E eu me apressei em lhe responder:

– Deus te Salve, Mamãe Oxum – porque naquela hora lhe reconheci – vim caminhando por essa praia até lhe ver varrendo essas areinhas alvas. Seu encante me trouxera aqui. Mas onde estamos? O que a Senhora faz?

Então, Mamãe Oxum virou-se na direção do Rio, olhou por um longo tempo a água e enquanto eu permanecia em silêncio, respondeu para mim:

– Minha Filha não é tudo que os Orixás podem contar aos seres humanos. Muitas coisas acontecem entre o céu e a terra que não são percebidas pelos olhos do homem. Essas coisas pertencem aos Orixás, pois nós somos as forças que amanhecem o dia e escurecem os mundos. Existem entre um mundo e outro, mais mundos e realidades que você poderia entender. Aqui, onde estamos é um lugar entre o seu lugar e o meu lugar. E neste instante vou te contar o que aconteceu que me trouxera aqui: Eu estava sentada no meio do Rio, quando ouvi meu Pai Oxalá me chamar. Sua voz mansa, tão antiga quanto o meu Rio, soava na mística da brisa, enviando-me uma ordem que me vestiu de Mar. Não percebe que o amarelo de minhas vestes se foi? Ele me mandou vir espanar os teus caminhos com essa vassoura de algodão; jogando em minhas ondas as poeiras do teu coração.

Por causa desse chamado desci do Rio. Quando cheguei na beira d’água chamei um passarinho para me trazer o algodão com qual fiz essa vassoura.

Isso faz uns três dias. Desde então que eu varro os caminhos pelos quais o Rio de sua vida segue, jogando no Mar de meu vestido as poeiras, enquanto te chamo em minha canção.

Que bom que me escutou – agora te ajoelha nessa areia branquinha, que eu quero varrer os terreiros da tua coroa.

Sem hesitar me ajoelhei sobre a areia para receber a sua cura. Enquanto me curava, Mamãe Oxum balbuciava uma velha doutrina de uma Cavaleira sua. Quis acompanhá-la, assim elevamos um pouco nossas vozes, que juntas soavam mais altas que a voz do Rio:

“Espana os terreiros com vassoura de algodão / com os poderes de Jesus Cristo e da Virgem da Conceição...”

Me acordei neste mundo bem a tempo de perceber que não era eu quem estava sonhando com Mamãe Oxum. Era ela que me sonhara.

No seu sonho tocou-me ser uma caminhante, filha dos encantes do antigamente – coroa dos orixás que sonham com o passado negro que circula em nossas veias.

Compreendi que meus passos vêm de muito longe, resgatam essa força que marca a areia, porque aprofundam misticamente os passos de tantos outros que vieram antes de mim e que já foram há muito tempo para o além-mundo...

Esse Rio que corria no sonho de Mamãe Oxum, corria em mim... a areia espanada, saía de minha história para margeá-la.

Mamãe Oxum cantava meu destino, e seu canto era um destino que eu seguiria até me perder totalmente deste mundo sem cor.