A perseguição pelo Exu

Aqueles que partem desta vida nem sempre encontram o perdão de Deus para seguirem seu caminho. Algumas esperas são necessárias até que se cumpra o tempo e até que o espírito tenha realizado todas as suas peregrinações por sobre o mundo. Alguns que morrem são acometidos de escuridões e o lado pesado lhes tentam, lhes perseguem, lhes engolem os caminhos de luz.

Tive uma neta que morreu em circunstâncias muito cruéis pelas mãos de um criminoso. Ela desapareceu deste mundo por um tempo, mas logo passou a assombrar o povo em Canaan, lugar onde nasceu. Seu pescoço foi completamente degolado por um facão e também o seu corpo sofreu muitos ferimentos da arma. Assim que morreu, minha neta não conseguiu fazer sua passagem. Ela foi condenada a vagar pelo mundo em busca do seu arrependimento e em busca de sua luz final.

Tocou que por causa da sua morte, em sua peregrinação pelo mundo ela seria muito perseguida por aquelas entidades que se abrigam na escuridão. Um Exu se acostou de seu espírito e seria uma sina em seu caminho. Mas nós rezamos muito por sua alma. Ela morreu uma mulher muito jovem, apenas com 24 anos. Mal tinha conhecido as coisas do mundo. E agora as conheceria da pior forma, pois a escuridão tratava de lhe tirar a paz pelas estradas do além.

Ela mesma me contou estas coisas em dois sonhos que tive. No primeiro deles, ela me encontrou e pedia rezas para que aquele bicho se afastasse dela. No segundo foi algo mais ou menos do mesmo jeito, só que ela chorava copiosamente, lamentando não ter ficado viva para criar seu filho. Quem pode prever os saltos da vida?

Bem, aconteceu assim...

***

Estava caminhando numa antiga estrada que vai dá no Esteveus, uma pequena comunidade de Canaan. Meu sonho tinha uma magia bonita, que deixava todas as plantas esverdeadas, na beirada do caminho. O verdume enchia o canto dos passarinhos e até meu coração se lembrava dos tempos nos quais eu e minha irmã vencíamos aquelas distâncias para fazer compras na rua da Canaan. Que coisa mais bonita é a juventude das árvores! Reconhece-se uma árvore jovem pelo seu verdume. Assim como um caminho se torna mais belo quando esverdeado, também uma árvore se enche de juventude quando coloca folhas verdes em seu corpo.

O caminho se encompridava quanto mais eu caminhava por ele. Mais numa certa distância reparei numa antiga casinha de taipa. Ao lado dela havia um coqueiro d’água e um barreiro de barro amarelo. Tudo muito iluminado pelos suspiros da tarde. A casinha tinha um terreiro muito branquinho em sua frente e nele vi uma mulher de longos cabelos. Ela tinha uma vassourinha na mão e lentamente lhe esfregava os cipós nos chão para tirar os ciscos que restavam.

Reconheci minha neta e sua casinha. Suas mãos fortes varriam com delicadeza, amaciando a areia. Seu cabelo bonito era abençoado pelo vento. No entanto não havia sorriso em seu olhar. Pelo contrario, as lágrimas molhavam as areias. E de longe ela me acenou com tristeza. Dirigi-me a ela, sentindo certo contentamento por vê-la depois de tanto tempo.

Ao chegar lá, ela me olhou com tristeza e veio para os meus braços de avó. Por quantas vezes estes braços tinham lhe embalado os sonhos! E agora eles procuravam lhe dar algum conforto. Notei a tragédia em seu pescoço. As feridas cicatrizavam. O medo estava ainda em seus olhos, mas ela ainda me disse:

– Minha avó por quanto tempo que espero este encontro contigo. Lamento tanto tudo o que me aconteceu e também a aqueles que eu deixei na terra. Estou triste e nada posso fazer senão penar e caminhar por sobre este mundo entardecido. Deram-me uma vassoura para que eu limpe meu terreiro, para que eu afague suavemente a terra enquanto ainda cumpro a minha sina. Mas tudo é tão difícil.

Vovó, ele não cessa de me perseguir e disse que vai me levar para o outro lado, onde as coisas sangram em escuridão. Ele disse que quer meu coração. Sinto tanto medo dele. Pelo amor de Deus, me ajude a desterrar esta coisa para longe, assim poderei vagar meu caminho até cumprir minha sentença e ir para onde Deus for servido. Cuidado. Ele se aproxima. Ajude-me, minha avó.

Quis lhe falar, quis lhe perguntar quem era esse “ele”, mas não deu tempo. Uma força escureceu o terreiro e espalhou todos os ciscos outra vez. O encantamento se turvou e o medo encompridou nossas distâncias. Algo pesou sobre a casa e quase lhe derrubou, depois pulou em cima de nós, caindo em nosso meio e nos separando. Um monte mais escuro que a noite e com mãos gélidas, que me agarraram. Ele me segurou pelos pulsos e riu com seus dentes de fogo me apavorando. Perdi minha neta da vista e quase morri em sonho. Apavorada.

Lembrei-me da antiga mística a qual pertenço e reconheci aquele ente. Novamente um Exu tentava se apoderar de mim. Por entre os dentes terríveis, ele me disse:

– Agora eu vou te levar e teu espírito será meu e do diabo. Vamos brincar e esvaziar a luz de teu coração.

Enquanto falava, suas garras se aprofundavam em meus pulsos. Eu gritei e chamei por Nossa Senhora Aparecida. Rezei para os anjos e pedi ajuda aos céus. Ele tentava me tirar os bons pensamentos com suas ameaças de trevas e a dor que me gerava com as garras fincadas me fazia esquecer a quem chamar...

De repente, uma luz rompeu sua escuridão e alguém se interpôs em nós dois arrancando violentamente suas garras dos meus pulsos. Estava quase desfalecendo ali, mas ouvi a voz dizer ao Exu:

– Tu sabes que este espírito não te pertence nem você tem autorização para persegui-la. Afasta-te coisa ruim e segue teu caminho errante, que a minha filha vai comigo para a Luz. Oxalá dê-me força para mandá-lo pras encruzas do mar.

Ouvi seu sopro e sua ventania. O Exu foi empurrado por aquela força. Suspirei pensando: graças a Deus. Então o homem me falou:

– Abre os olhos minha filha, que aquele errante já foi.

E eu abri meus olhos a tempo de reconhecer meu salvador. Ele estava iluminado por uma luz esverdeada que deixava seu penacho azul esverdeado ainda mais bonito. O Capacete de Pena, meu Guia, estava ali me sorrindo, satisfeito por ter me salvado uma vez mais da escuridão. Agradeci em pensamento que suas mãos fortes tenham rompido as amarras do Exu em meus pulsos, desafazendo suas intenções de me levar.

Procurei lhe falar:

– Deus te salve meu pai, que sorte maravilhosa que tenha chegado aqui.

E sua resposta foi esta:

– Minha filha, os caminhos que eu trilho nos mundos em que Oxalá me permite andar sempre haverão de encontrar os teus caminhos. Minha missão também é te proteger da escuridão, pois esta tem raiva do encantamento que torna luz o céu escuro. Olha para o céu de noite e veja como as estrelas rompem toda a escuridão e diminuem as distâncias. Elas são como você é no mundo dos vivos: uma estrela que rompe distâncias com sua luz e diminui a escuridão do mundo. É por isso que querem lhe apagar. Mas não tenha medo, que eu haverei de te velar para que afastar as escuridões com a força de nosso Pai Oxalá. Mas agora vamos que é hora de ir. Desperta.

Dizendo isso ele me soprou e me acordei neste mundo. Arrudiada de netos que estavam preocupados com meu adormecimento.

Contaram-me que eu levantei e fiquei entoada com um Exu e que depois minha neta assumiu meu corpo chorando muito, mas sem dizer palavra alguma. Por fim, o meu Guia entrou no meu corpo e disse que eu despertaria. E assim foi.

Contei a eles o sonho. Choramos a minha neta. Rezamos para que sua perseguição pelo Exu fosse terminada, para que ela pudesse respirar a luz de Deus. Nisto o dia se acabou.

***

Todas as coisas são mistérios que não terminam jamais, apenas se transformam em outros mistérios. Uma alma nunca deixa de caminhar, apenas o mundo no qual ela caminha é que se transforma. As dimensões de encantamento se alteram, mas não o sentido maravilhoso de caminhar. Quisera que todas as almas pudessem caminhar em luz, tanto nesta vida quanto na outra existência. Mas nem sempre a morte é branda. Nem sempre as coisas são como nós queremos.

A morte nos restitui às nossas insignificâncias. Os caminhos nos restituem à luz. A minha prece de concentração me ensinou que meu destino consistia em buscar a luz, em ser estrela, como dissera o meu Guia. Nisto há muita dificuldade, pois as trevas teimam em querer consumir a luz do mundo e matar as estrelas. Já somos tão poucas. A verdade é que não podemos viver apenas com a luz, que as trevas são precisas e merecem seu lugar nos mundos. Mas que a luz é uma estrela que brinca de gerar vida no infinito escuro.

A luz se transforma muito mais e com muito mais disposição que as trevas. Tomara que as trevas de minha neta um dia se convertam em luz. Já faz tanto tempo e muitas lágrimas já se derramaram. Como diz a oração:

Luz para os que sofrem,

Luz para os que precisam...