O espelho do dia

Senti uma vez a noite dentro de mim. Com todas as suas estrelas e toda a sua escuridão, a noite se abrigou dentro de mim. Aquele foi o mistério mais impressionante que vivi. Nenhum sonho poderia ser comparado com a noite se abrigando dentro de minhas entranhas e se nutrindo de meu coração. Aquilo consistia numa experiência de engravidamento. Quem engravida da noite pare o dia. Então, me preparei para o parto tão logo senti toda a noite dentro de mim. Como seria belo contemplar a luz nascendo e se derramando sobre o mundo... como era lindo ser eu a divina mãe do dia.

Isto me aconteceu numa volta do tempo. Foi numa brecha que se abriu e me tragou que vivi estas coisas. Bem no meio das dunas, quando as luzes da terra clarearam a lua, o fino espelho do dia. Nunca tive notícias do tempo comendo gente, mas foi justamente nesse acontecimento que fui sequestrado deste mundo. Eu estava deitado à sombra de um coqueiral quando de repente o tempo se rasgou e cai de cabeça dentro de uma fresta fininha na realidade. O vento me empurrou ali, não pude escapar. Eu cai por pouco tempo. Olhando para cima ouvia meus coqueiros se balançarem, como me desejando uma boa viagem. Eles certamente me aguardariam para terminar-lhes a história que lhes contava enquanto me confortavam com suas palhas. Assim eu fui sabendo que não podia escolher ficar.

Do outro lado me aprumei em cima da areia branquinha em uma grande nuvem. Sim, até ali achei que as nuvens daquela parte eram feitas de areia. Meus pés afundavam na maciez. Nus como a noite, eles tentavam encontrar sentido naquele mistério. Eles viam por meus olhos. Estava escuro e minha vista não era tão boa para ver naquele lugar misterioso. Somente a areia era visível por causa de sua brancura. Aquela terra parecia ter sido feita para quem não possui olhos que veem somente. Nela era preciso enxergar. Para encontrar os caminhos, eu teria de enxergar com mais sentidos do que somente com aquele que se pertence aos olhos.

Caminhei na esperança que a nuvem nunca me deixasse cair no chão. A medida que me distanciava de meu ponto inicial, as estrelas uma a uma foram se acendendo. Gostei muito da presença daquela luz. Ela facilitaria meu traçado dentro da noite interminável. Aquela noite era tão grande que eu a sentia entrando dentro de mim. A noite inundava meu vazio. Ela me engravidava. E eu sabia qual seria o fruto daquele encontro.

Ao seu turno, um vento macio vez por outra me atingia delicadamente com a areia. Aquele gesto era como um oferecimento. Uma promessa de doçura. Essa doçura manifestava-se na areia, que não maltratava meus pés, senão me levava até aquilo que havia me chamado. A luz emanada pelas estrelas me fez ver mais claramente aquele destino: o tempo tinha se rasgado e me engoliu para os morros. E eu sei o que existe acima dos morros.

Portanto, não caminhava sobre nuvens, mas sobre dunas de areia macia. Senti um sopro do mar e ouvi tambores tocando há certa distância. A música do Congá chamava para si o mistério das ondas. E nelas se ajuntavam aquele clarão das estrelas. Aquilo se fazia em magia para minha percepção. O destino que havia me chamado foi a Magia.

De repente, uma figura surgiu acima das dunas. Uma aparição a qual conheço bem, pois faz parte da minha memória de criança, nas músicas cantadas para me embalar. Uma música que significava partida, uma bela despedida feita por um Ser Encantado que não se demora jamais. Sua presença era para mim um doce alento, mas era tão fugidia quanto um passarinho. Eles chegam, se aprumam sobre as árvores, entoam melodias encantadas e vão se embora antes que possamos pedi-los para ficar. A canção de um pássaro é como uma continuidade para nossos desejos e seu voo é aquilo que desejamos tanto: a liberdade. Seu canto é um mistério que só acontece em plena liberdade. E seu voo é o exercício de ser tão somente vento.

Talvez seja por isso que os invejamos tanto e inventamos asas. Talvez seja por isso que sua singela presença – oh! Um pássaro não requer luxo, além da maciez de seu cântico – seja capaz de nos restituir às demoras pelas quais esperamos tanto. Existem esperas que fazemos pelas demoras. E existem demoras que não esperam por nós. Elas vão embora antes que nos demos conta de sua importância. Oh! Existem demoras nas quais gostaríamos de nos demorar para sempre, porquê elas nos descomeçam em mistérios que só a noite pode abraçar.

A noite é um mistério que nos interroga sobre nossos mistérios. Ela se ausenta do mundo para morar dentro de nós durante o dia. E quando chega a hora de nascer, sua grandeza corrompe o dia até que ela possa reinar outra vez, enquanto ele agoniza em beleza. Aquele pássaro que chegava era um filho da noite e um começo do dia. Ele sempre se distanciava na madrugada, quando a luz encantava o horizonte, desfazendo a escuridão. Ele trazia o cheiro das árvores e quando partia, elas choravam copiosas borboletas – as estrelas do amanhecer. Assim dizia seu cântico de partida:

O dia já vem raiando,

Os pássaros cantam

E os arvoredos choram

Adeus filhos de umbanda

Pássaro verde já vai embora.

Estava, portanto diante de um Rei, um valoroso Guerreiro, o Chefe de um povo que sobrevive nas memórias e nos Encantamentos do Antigamente. Pássaro Verde chegava voando, como o pássaro que alegrava meu horizonte ao anoitecer, mas que sempre me deixara triste partindo no raiar do dia. Seu olhar penetrou minha alma, me parando os caminhos. Fiquei de pé admirando a profundidade de seus olhos, um Rio corria dentro deles. No alto de sua cabeça, exibia-se um lindo penacho esverdeado como as Sete Matas, símbolo de sua nação.

Ele parou na minha frente e me disse por entre um sorriso florido: Vivemos uns nos outros. Esse é um exercício contra o tempo. Um acerto feito pela memória. Um meio de continuar depois de partirmos.

Sua voz me recordava os campos. Soava como os espreguiçamentos do dia ao se levantar. É que o dia se espreguiça inspirando a cantoria nos corações dos pássaros. Quando a mágica acontece: os músicos originais entoam a canção que é o dia se espreguiçando, ordenando que todas as coisas comecem a dançar. A voz do índio era o som destes pássaros, era a música que anunciava o final da escuridão e o nascimento da luz.

Por isso eu via que ele não falava em palavras, eram outras coisas que flutuavam a partir de sua boca. Essas coisas eu tentei traduzir para uma linguagem mais próxima do seu perfume. Eram macias ao tocar minha pele e não se perdiam no escuro da noite. Elas adentravam a escuridão e acendiam-se como vagalumes, trilhando um caminho. Senti em meu coração que deveria segui-lo. As flores vagalumes de sua boca iluminavam minha escuridão...

Aquelas flores eram como palavras doces. Não haviam, entretanto palavras. Eram flores que voavam e que perfumavam o ar entre nós. Sua boca era cheirosa como o prado que perfumava minha infância. E eu via o prado dentro dela, era dele que as flores voavam em direção a mim abrindo o caminho a minha frente. O prado estava iluminado por uma lua azulada. No alto do céu de sua boca pairava ali o espelho do dia, embelezando o prado.

Aquele índio possuía as qualidades do Antigamente, quando os seres que habitavam esse mundo conduziam em si as Coisas Sem Valor. Quis me demorar muito ali. Mas um clarão no céu me chamou a atenção. Retirei o olhar de sua boca. Subi a vista em direção ao céu que nos cobria. Nele faiscavam estrelas. Aquelas formosas criações estendiam seus brilhos desde escuridão até nós – disputando com as flores vagalumes daquele índio. Dançarinas da escuridão. Artesãs da luz. Deusas do fogo vivo. Suas faíscas inundavam as areias das dunas, cristalizando ainda mais grãos. No meio delas o espelho do dia se acendia como em nenhum outro mundo. Que significava aquilo? Era da terra que subiam as correntes de luz.

Distante, na terminação das dunas e começo de uma baixa banhada por uma lagoa, os sons que ouvi anteriormente elevavam-se. Já estive naquele lugar e conheço o caminho para lá. O caminho era por entre as dunas. De um lado e de outro, a areia branquinha se amontoava. Por causa da altura daqueles morros, nada se via além de sua alvura. Me perdi do índio. Ele trouxera flores para iluminar minha direção. Era esse seu propósito, então eu seguia, gravando suas flores em meu coração.

Me afundei nas areias. Olhei para trás por um breve momento, reconhecendo o lugar onde me encontrava. Estava em cima dos morros que terminam em Magia, bem no terreiro dos Encantados. Era assim o local: entre o Rio, o Mar, a Lagoa, a Baixa e os Morros foi construída a casa na qual todos os Cavaleiros se ajuntavam para Curar. Aquela casa bebias das origens do Mar, dos segredos dos Astros, das forças do Rio, da natureza das Matas, dos caminhos das areias dos Morros. Uma casa realmente especial, onde o Antigamente tinha escolhido desaguar.

Fui em sua direção. Também nela me desaguaria. Deixava atrás de mim uma pequena floresta de arbustos, que poderia ser melhor vista do firmamento pelas estrelas. Somente as estrelas me faziam companhia neste horário profundo. Quanto mais me aproximava da baixa, mas eu podia sentir o que estava se passando. A casa que havia ali estava cheia de gente que não existe e eles cantavam uma melodia, que ao subir pelas frestas do telhado enveredavam-se em correntes de luz que subiam aos céus. Eram aquelas correntes que iluminavam a lua.

Aquela visão era como nenhuma outra, por isso é tão difícil explica-la. Essas coisas só podem acontecer quando não se espera. O tambor soando baixo para acompanhar misticamente a maravilha. Desde o início deste acontecimento as palavras assumiram outras formas que não aquelas conhecidas por nossa linguagem. Elas insistiam em se transformar em outras coisas. Cada palavra daquela gente se transformava numa faísca luminosa que ao se juntar umas com as outras subiam em labaredas na direção do céu. Correntes de luz se enroscavam, acendiam o firmamento e cortavam as nuvens. Indo se ajuntar na lua, clareando-a, como somente o sol ousa fazer.

O fumo das orações acendia a lua no alto céu.

Do alto da duna contemplava silencioso aquele fenômeno. Não pude descer mais, meus pés estacionaram dentro da areia, como que impedidos de prosseguir. O vento me empurrava em direção contrária. Por causa dele entendi que não poderia continuar. Aquele lugar não poderia ser tocado por meus pés. Eu só poderia vê-lo à distância. Sei que aquela gente que reza não é como eu. É uma gente antiga que se abriga nas brechas do tempo e só aparecem por Magia. Sei que elas me chamaram de algum modo através de suas forças. Queriam, pressinto, me mostrar aquele prodígio. E quão grato me fazem por ser o escolhido.

Os escolhidos não podem nunca recusar um convite. Me acostumei com a rudeza dessa constatação ao ouvir o relato de minha avó sobre como sua vida para Os Encantamentos havia começado. Assim não me restava a oportunidade de recusa. Eu mesmo teria de ver para poder deixar registrado as coisas que acontecem, porém que não são enxergadas por todos nós. Aprendi que enxergamos também com os pés, pois foram eles que me guiaram através das dunas...

E a noite caiu outra vez dentro de mim.

[...]

Fortes dores me acometem. É hora. Ouço o cântico dele. Aquela melodia suave inebria meu coração. Meus esforços se convertem em lágrimas e elas são agora como as belas borboletas choradas pelos arvoredos. Tudo lhe chama para fora. Tudo se prepara para lhe receber. Não quero gritar: o que está nascendo é um sorriso. É o mais gentil de todos os sorrisos do tempo. Eu sou um acidente. Uma escolha do eterno contra o passageiro. Com este gesto, partilharemos a eternidade.

Quando caminhei por sobre as dunas senti que assim seria – de meu ventre brotaria o desconhecido mais uma vez. Menino! Mais precisamente o senhor de todas as histórias. Começava a me rasgar. Desde o ventre, ele saía delicadamente de dentro de mim. Ah! Como era grande minha felicidade! E como era maravilhoso o meu tormento! Em breve tudo mudaria. Desde que a noite se abrigou dentro de mim caímos num vazio! Mas agora ele ganharia o mundo para preenchê-lo mais uma vez com as danças e as brincadeiras. E eu me tornaria seu caminhante. Retornaria aos meus coqueiros para lhes contar como pari novamente o dia.

E assim foi. Embalado pela melodia do pássaro antigo o dia nasceu. E inundou o mundo com sua beleza. Retomei meus desejos. Os coqueiros me chamaram outra vez para sua sombra. E eu fui... depois de tudo isso teria muito mais para lhes contar.