O QUARTO
 
É um quarto bastante estranho – em nosso meio seria proibido. Muitos diriam um dormitório. Mas ele não tem janelas; apenas a única porta que dá acesso a ele. Nenhum outro móvel além de confortável poltrona de espaldar alto, a um canto, com uma almofada de gobelina, e, a seu lado, uma elegante mesinha em madeira laqueada, encimada por um abajur apagado, mas daqueles que a gente acharia ideal para leituras. Isso mesmo, tangendo a borda da mesa há um livro, capa mole e bem ilustrada, com um marca-páginas, colocado talvez no penúltimo capítulo do impresso.
Ao centro do quarto, uma generosa pilha de livros com aspecto de sebo – lidos, relidos e encostados. Por certo, são despojos, em tempos de e-book e de pós-modernidade, em que nada é para sempre. O conjunto assume a forma de uma mesa, de porte habitual ou algo mais alta – os livros ali passam de milhar e meio. Os gêneros desses? Variadíssimos – quase caberia um para cada exemplar. Mas, grosso modo, cultura; desde Filosofia até Biologia; História a Cosmologia; gramáticas de grego e de latim. Arte e literatura “cult”, muita literatura, ficção a perder de vista.
Aqui, de fato, o estranho. Sobre a pilha-mesa, um esquife lacrado. A urna é feita em chapa zincada, duas peças, corpo e tampa, e que foram soldadas a estanho, de modo a garantir a hermeticidade do conteúdo. Difícil dizer-lhe a idade, mas a chapa está um tanto oxidada, fazendo supor décadas. Décadas da era da morte. Nenhuma inscrição; nem nome, nem nada.
Alguns, poucos e tolos, sustentam que, quando a porta esteja fechada e que seja noite no mundo do aquém, o esquife se abre e o seu “habitante” vai sentar-se na poltrona, acende o abajur, toma o livro a seu lado e faz aquilo que é o maior prazer na vida: ler!
Muitos contestam; nenhum fato comprova nada, exceto que, aberta a porta, na manhã seguinte, o marca-páginas avançou ou o livro já não é o mesmo, ante o imutável do esquife ou a obscuridade do quarto.