Catedral Cinzenta

Caminhando pelo cenário desolado do que já fora uma próspera cidade, levantando poeira a cada passo cansado, me pergunto pela milésima vez o porquê de tanta ganância na humanidade. Questões retóricas, bem sei. O ser humano com uma migalha de poder invariavelmente procurará por mais, mesmo que lhe leve à ruína.

Abandonei esses devaneios para focar na tarefa que me foi ordenada. Meu contratante, um mercador metido a besta de uma vila a três dias de viagem daqui, desejava as lendárias relíquias que ainda repousavam na catedral arruinada à minha frente. Décadas haviam se passado do desaparecimento de toda a população de Virimir, após uma luz cegante ser vista encobrindo a cidade inteira. Eu era um menino franzino e catarrento na época. Lá do meu vilarejo, não tão longe de Virimir, a noite iluminou-se por completo, e um forte vento sacudiu as árvores e casas. Todos os vendedores de hortaliças do vilarejo, que dependiam da feira da cidade para seu sustento, retornaram de mãos abanando na manhã seguinte.

“A cidade não existe mais”, diziam, com a desesperança estampada nos rostos curados de sol, “Pó e solidão foi tudo que encontramos após as muralhas.” Se recusaram a mencionar qualquer outra coisa sobre o que viram.

Mas claro que a cidade ainda estava lá. Vazia, cinza como as pedras usadas para construí-la e desprovida de qualquer forma de vida, mas ainda estava lá. Cavalheiros nobres, soldados, mercadores e ladrões começaram a jorrar nas estradas pelos dias que seguiram o grande clarão. Da mais nobre estirpe até a pior ralé, de todos os cantos do reino. Meu cérebro infantil não conseguia conceber os motivos que levariam alguém atrás de um amontoado de pó e pedras. Minha mãe, que Deus a tenha, tentava me explicar pacientemente que Virimir era uma cidade muito rica, e que os viajantes queriam essa riqueza. Somente quando ela disse duas palavras mágicas, “tesouros escondidos”, finalmente compreendi a ânsia dos viajantes. Mais tarde, com alguns anos nas costas, vi que a ganância era a verdadeira razão.

Eu me encarapitava no muro de pedra da minha casa, que dava direto na estrada, observando as idas e vindas deste séquito que se dirigia à Virimir. Nas primeiras semanas, risadas altas acompanhavam os grupos, bem-humorados, com rostos de semblante altivo e determinado, até mesmo os dos ladrões. Perdia-os de vista ao adentrarem a cerrada floresta que separava a grande cidade da minha vila. Às vezes demoravam dias para retornar, quando retornavam. E, sem exceções, pareciam desejar nunca terem saído de suas casas. Voltavam encurvados, de olhar vidrado, magros. Uma vez um ladrão, conhecido na região pelos seus cabelos laranja, apareceu completamente grisalho, andando pela estrada. Mais de uma vez persegui-os, corri atrás de seus cavalos, puxei suas capas, gritando perguntas, irritante como só uma criança pequena consegue ser, apenas para ser completamente ignorado e barrado na porta da taverna local. O máximo que consegui foi uma encarada de um soldado. Suas faces descarnadas e olhos assombrados, repletos de arrependimento, me paralisaram na terra da estrada.

Não demorou muito para que cessassem tais excursões. Rumores surgiam, primeiro nas tavernas, sem receber crédito de ninguém além dos bêbados, até que se espalharam pelos mercadores, propagando de vila em vila todas as fofocas, chegando nos funcionários oficiais dos governos, nos nobres, e, diz-se, no próprio Rei.

Fantasmas, exclamavam os boatos, maldições que recaíam em quem quer que profanasse a quietude decrépita da Virimir arruinada. Deveras, muitos dos viajantes que regressavam, morriam pouco tempo depois. Na maior parte das vezes, por mão própria. Um decreto real foi baixado, proibindo terminantemente qualquer um de pisar dentro das muralhas descomunais. Dentro.

Não preciso nem dizer que levei esta pequena brecha ao seu limite. Quando tive idade para me aventurar sozinho pela estrada, levando os repolhos e abóboras, cultivados na nossa minúscula fazenda, para vendê-los nas feiras das vilas vizinhas, quase não pude resistir à curiosidade que me fazia desviar constantemente o olhar para a enorme barreira cinza que despontava acima dos topos das árvores, léguas distante. O que levara todos aqueles homens, tão corajosos e ousados a voltarem destroçados? Ao invés de me afastar, o mistério parecia me puxar para a cidade abandonada.

Um belo dia a sorte me sorriu, quando uma roliça dona de estalagem comprou toda a carroça de legumes, tagarelando sobre um destacamento do exército real que chegaria dali a poucos dias. O dinheiro afastaria minha mãe e irmãs da fome por semanas.

Entardecia enquanto eu e a mula que aguentava a carroça, muito mais leve, atolávamos nos sulcos escavados na relva, tão pretensiosamente chamados de estrada. O céu alaranjado e as sombras que se arrastavam no chão me faziam soltar grunhidos de insatisfação. Se não conseguisse soltar a carroça da maldita lama, teria que acampar na floresta. A noite é repleta de foras-da-lei por esses lados.

E então, uma centelha de luz do sol poente brilhou por entre as árvores, e lá estava ela, Virimir, mais perto que jamais estive. Sem pensar, abandonei a pobre mula e a carroça às próprias sortes, e desbravei a floresta cerrada, ignorando a escuridão que crescia a cada minuto.

Lembro-me de como me senti minúsculo aos pés daquelas maravilhas arquitetônicas. Erguiam-se tão altas que seu topo me parecia embaçado. Entalhes geométricos intricados, entrelaçavam-se por toda a parede, desafiando minha compreensão e deixando-me vesgo. Nunca tinha posto meus olhos caipiras em algo tão rico e bonito. A mansão do governador, na qual trabalhei anos antes, parecia um casebre de pescador em comparação. Lá no topo, espigões negros despontavam, setas ameaçadoras em direção ao céu.

Caminhei seguindo a pedra cinza, passando a mão pelos padrões em relevo, envolto pela sombra que crescia cada vez mais, até que cheguei num portão. Talvez chamá-lo de portão seja um grande eufemismo. No mínimo quinze carroças poderiam passar lado a lado pela abertura, confortavelmente e sem bater umas nas outras. Porém nada mais passaria por ali. Um rastrilho gigantesco descia por dentro da muralha, para se enfincar no chão, também de pedra. A grade de ferro, com suas estacas decoradas de espinhos, não era exatamente convidativa. No entanto, o que estava por trás dela sim. Virimir, a cidade fantasma, dos tesouros escondidos. Virimir, que encantou minha infância e assombrou-a na mesma medida.

O crepúsculo obscurecia grande parte do esplendor decadente, mas as grandes construções ainda eram visíveis. Mansões, igrejas, obeliscos,e no centro, umatorre solitária gigantesca, encimada por uma cruz. Silhuetas opulentas recortadas pelo sol que descia à suas costas. Fascinado, me aproximei do rastrilho, ponderando me esgueirar entre as barras negras, quebrando o decreto real e arriscando a pena severa, caso descoberto. Uma vez os guardas da vila açoitaram um garoto, pego tentando escalar a muralha. Trinta chibatadas. Rei incidentes eram enforcados. O povo aprendeu a obedecer, depois de alguns homens irem para a ponta da corda.

Cheguei a agarrar duas das barras, sentindo o metal gelado, levantando um pé para passar por cima de uma terceira, horizontal, quando o som do vento fez-me parar. Digo do vento pois foi o que tentei me convencer enquanto tremia na cama horas depois. O som que veio da cidade naquele momento era tudo, menos vento. Os uivos que me atingiram pareciam os lamentos de agonia de mil almas, ao mesmo tempo. Todos os pelos do meu corpo se eriçaram. Estava ficando mais alto, vindo a mim, e eu ainda não podia me mover. Sequer piscava. Os lamentos tomaram meus ouvidos, preenchendo meu crânio, mas minhas mãos não soltavam as barras de ferro.

E então, a rajada de vento me atingiu, e tombei para trás, expulso do portão por uma entidade desconhecida. Creio que em toda minha vida nunca corri tão rápido quanto naquela tarde. Em minutos, atravessei a floresta de encontro para a minha carroça e mula, que pastava tranquilamente. Arrisquei meu retorno por entre as trevas, para colocar o máximo de distância entre mim e aquelas muralhas. Como lembrança, tenho as cicatrizes dos buracos que os espinhos deixaram nas minhas mãos, ao apertar aquelas barras perversas.

E quem diria, cá estou eu de novo, trinta anos depois. A vida toma caminhos engraçados, e a fome leva um pobre mercenário a fazer coisas que ele não aconselharia para alguém que tivesse opção, coisa que eu não tinha. O decreto real fora levantado quando o velho Rei morreu, e seu filho não era balançado por histórias de fantasmas e crendices tolas. Mesmo assim, ninguém ia em Virimir. Mas pelo menos eu não estava arriscando a prisão entrando nesse fim de mundo.

O destino quis que eu desse de frente com o mesmo portão que encontrei tanto tempo atrás. Minhas cicatrizes arderam em resposta. Sem pensar tanto no passado, retorci o corpo para adentrar as muralhas, tomando cuidado com os espinhos dessa vez. Elas eram muito mais espessas que as informações passadas a mim. Trinta metros, no mínimo. O maior dos aríetes falharia de forma miserável contra tal poder.

Quando o sol do meio-dia despontou do fim do túnel, cegando-me momentaneamente, soltei um suspiro de alívio por não estar no lugar pela noite. Meus olhos se acostumaram à claridade, e uma grande praça se estendia na minha frente. Fontes secas e bancos de pedra estavam dispostos simetricamente de cada lado do lugar, por entre canteiros vazios. Parecia que eu tinha penetrado um mundo sem cor, tudo era do mais mortiço cinza. Precisei voltar os olhos para o céu para me assegurar que não tinha um problema nas vistas. Olhando em volta, percebi as mesmas construções que me hipnotizaram quando era um jovem vendedor de repolhos.

A riqueza da cidade era impressionante. Até mesmo a menor das casas era uma grande mansão. Vidraças em mosaico, com desenhos de flores, animais, ou simples motivos geométricos. Lojas ladeavam ruas, placas balançando ao vento, seus nomes apagados, vitrines intactas. Pelo menos à primeira vista. Afinando o olhar, vi vidro quebrado no chão. Os saqueadores do passado, talvez. Pequenas igrejas, misturadas ao meio do comércio, com pequenos torreões de sinos e fachadas lisas, simplistas num mar de ricos detalhes. E no centro, a mesma torre grandiosa, com a cruz no topo. A catedral.

Meu empregador, um homenzinho avarento, gordo, com manias de grandeza que denunciavam seu baixo nascimento, mesmo que fosse fabulosamente rico, desejava desesperadamente quaisquer artefatos que estivessem dentro da catedral, para vender à sua clientela mais fiel: o clero. Pagou-me uma quantia exorbitante para saquear o local sagrado, matraqueando sobre a falta de bons profissionais que aceitassem o trabalho. Eu, no alto de meu desespero faminto, ao ver a sacola recheada de moedas de prata, concordei imediatamente.

Isso não quer dizer que não estremeci ao andar por aquele caminho de pedra, onde todos os meus passos retumbavam com ecos. A total ausência de vida e cor era extremamente perturbadora. Sacudi a cabeça diversas vezes para me forçar a continuar. Deserdar um contrato era o mesmo que assinar uma sentença de morte na guilda dos mercenários. Podemos ser criminosos glorificados, mas ainda temos um código de honra.

A catedral assomava à minha frente, crescendo com cada passo. Sua torre única parecia uma lança querendo perfurar o céu. No pôr do sol, com o firmamento tomado de rubro, quem estivesse na praça poderia pensar que era o sangue da ferida causada pela torre, vitoriosa.

A fachada de pedra do templo era decorada com o mesmo estilo geométrico das muralhas, porém entremeada aqui e ali com figuras santas, anjos e profetas. Ao me aproximar, notei que rente ao chão estavam esculpidos demônios e almas condenadas ao inferno, queimando eternamente no fogo petrificado. Suas expressões de agonia absoluta eram tão realistas que quase acreditei estar diante de humanos. Precisei tocar nas estátuas para me assegurar que era um pensamento tolo.

Portais de madeira escura maciça eram a única coisa que destoava do padrão cinzento que me cercava. Portas duplas grandiosas, de pelo menos dez metros de altura, com baixos-relevos retratando passagens do livro sagrado. Seriam necessários vários homens fortes para-a abri-las. No centro de cada uma, uma porta de tamanho humano. Fiz uma prece silenciosa torcendo que não estivessem trancadas, enquanto encostava o ombro numa delas para empurrar. Minhas botas escorregaram pelo chão, e meus dentes rangeram com a quantidade de força que desprendi. Não consegui mover um centímetro sequer. Arregacei as mangas, encostei novamente o ombro e forcei a porta imaginando o saco repleto de moedas de ouro que me esperava quando voltasse com o saque.

Um rangido grave saiu das dobradiças ressecadas, e a porta cedeu, e uma abertura fina surgiu. Encorajado, continuei empurrando, aumentando a abertura gradativamente. O rangido continuava, um protesto contra minha empreitada, ou seria um grito de aviso? Mais uma sacudida de cabeça para afastar tais pensamentos imbecis. Até que enfim a fresta era grande o bastante para que eu me apertasse por ela. Lá dentro, puxei a porta até que abrisse completamente, uma garantia que aprendi ser necessária da pior maneira nestes muitos anos de mercenarismo.

O interior da catedral era amplo, com uma nave cercada de bancos de madeira acinzentada, dezenas e mais dezenas de bancos, até chegar no altar principal. Janelas de vidro translúcido, gradeadas com metal derramavam a claridade do dia pelo local. Pequenas capelas laterais pontuavam as paredes do templo, ostentando estátuas em tamanho natural de santos e mártires. Nenhum artefato à vista em nenhuma delas. Enquanto adentrava os corredores, cruzando colunas grossas como árvores milenares, sentia como se os olhos vazios das estátuas me seguissem.

Foco, meu velho, pense que com aquele ouro finalmente vai poder dar adeus a esse reino maldito. Pagar algumas dívidas, fugir de outras. Dar um jeito na vida. Um trabalho honesto.

Segui a nave central, finalmente ficando de frente com o grande altar, uma construção maciça de mármore, construída em degraus que se afunilavam para o topo, onde culminava uma cruz prateada, com flores do mesmo metal esculpidas à sua volta. As mesmas flores derramavam-se pelos degraus, cercando estátuas de cordeiros e pombas, olhando com devoção para o alto. Castiçais altos, desprovidos de velas, ladeavam cada degrau, um à direita, um à esquerda. Um esplendor prateado, estendia raios por trás da cruz, como se fosse uma luz divina. O metal precioso fulgurava com a luz solar, cintilante. Era de se imaginar que não havia passado nem um segundo desde a antiga glória de Virimir.

Percebi que estava boquiaberto, encarando o imenso tesouro que se derramava à minha frente. Tratei de cerrar as mandíbulas, atravessei a grande mesa de pedra à frente do altar e comecei a ensacar os belos castiçais. Escalei a torre de degraus para alcançar todos eles, e quando desci, dei de cara com uma portinhola prateada. Um sorriso se alargou pelo meu rosto. O armário de sacramento. A chave ainda estava presa à fechadura, que cedeu sem qualquer protesto. Lá dentro, um grande cálice, cravejado de pérolas, e um ostensório igualmente decorado. Meu empregador daria pulinhos de alegria quando lhe mostrasse o achado.

O sacrilégio realmente não me incomodava. Se Deus existisse, ele com certeza estaria preocupado com coisas mais importantes que um mercenário qualquer invadindo um de seus templos. Um padre uma vez me disse que grandes templos, ricamente decorados, eram idolatria. Riquezas eram coisas terrenas, não divinas.

Ainda sorrindo, fechei o cordão do saco, e joguei-o por cima do ombro. Comecei o caminho de volta pela nave central quando notei que estava extremamente cansado. Eu não era exatamente um velhote mas meus músculos estavam enrijecidos pela idade e minha energia não era a mesma. Decidi descansar num dos bancos, depositando o saco ao meu lado. Suspirei, fechando os olhos, e me inclinei no encosto. Permaneci assim, recostado, por longos minutos. O brilho do sol penetrava minhas pálpebras, avermelhado.

De repente, uma sombra encobriu o brilho, e abri os olhos, sobressaltado. Tudo estava completamente idêntico. Talvez tenha sido um pássaro, quis me enganar, sabendo da aridez da cidade silenciosa. Ainda um pouco inquieto, peguei o saco, e me preparava para levantar, quando a luz do sol sumiu completamente.

Afundei no banco, incrédulo, encarando o negrume ao meu redor, quebrado apenas por uma fraca luz vinda das janelas. Sussurros começaram a despontar das capelas laterais nas paredes da catedral. Puxei meu punhal da bainha na minha cintura, mas minha mão tremia tanto que duvidava que conseguisse usá-lo. Ainda estava grudado ao banco, cercado de vozes sussurrantes. O vento de décadas atrás despontou na minha memória, assim como minha negação em aceitar o que ouvi. Creio que a negação era muito mais confortável que ser confrontado com a realidade. Não havia como questionar que sim, eram vozes que ecoavam na pedra fria.

A parca luminosidade estava desvanecendo, para meu desespero, e não consegui conter um ridículo lamento que mais parecia um ganido de um cão acuado. Em meio ao negrume completo, cerrei com força os olhos, lágrimas rolando pelas faces. Para minha extrema felicidade, todavia, o brilho voltava. Sumia e retornava, gradativamente, como uma vela apagando e reacendendo. Os murmúrios haviam cessado.

Levei um tempo para notar os espectros que surgiam nos bancos. Passei um longo tempo com os olhos fechados, fazendo todas as promessas que conseguia pensar para o mesmo Deus que reneguei tantas vezes. Quando finalmente os abri, me dei conta que estava rodeado. Aparições sentadas, de costas retas, viradas para frente, rostos cobertos por véus, ou encimados por chapéus elegantes. Nenhuma feição podia ser distinguida. Com cada ciclo da luz, mais e mais se faziam visíveis, quase transparentes, e os anteriores cada vez mais opacos. Minhas pernas pareciam vigas de madeira endurecidas por anos de fumaça. O punhal ainda estava fortemente preso na minha mão, os nós dos dedos brancos com a força que o apertava. Me senti sufocado, como se a minha garganta bloqueasse o ar que sorvia. Estava completamente dominado pelo pavor. Meu corpo não me obedecia.

Observei longamente os bancos da catedral cinzenta serem tomados por estes fantasmas brancos, que nada faziam a não ser sentar eretos, olhando para o altar. Sequer passou em minha cabeça arriscar uma fuga desenfreada pela porta que deixara aberta, por medo do que podia encontrar lá fora.

A luz continuou oscilando, em intervalos exatos, até que os bancos estavam repletos. À frente, aos meus lados, atrás de mim, espectros imóveis. Endureci, de frente para o altar assim como eles, desfiando um terço imaginário, respirando ruidosamente.

Para meu horror a fase escura perdurou mais tempo que o normal. Abri meus olhos temendo ter ficado cego de pavor, e lá estava ela, retornando, iluminando a nave central.

O que vi como benção transfigurou-se rapidamente em maldição. Todos os espectros agora estavam vidrados para mim, seus olhos mortos fixados, vidrados com o mais puro ódio, mas ainda completamente imóveis. Desejei fervorosamente a salvação, mais do que nunca. Mas minhas preces não eram ouvidas.

A escuridão derramou-se sobre mim novamente, encobrindo o olhar maléfico que me atingia por todo lado. Escutei rangidos de bancos sendo arrastados, por corpos que se erguiam. Escutei passos num piso de pedra, cada vez mais perto. Senti mãos agarrando meus ombros, gélidas, segurando-me no lugar.

A luz não retornou.

Laíce Cardoso
Enviado por Laíce Cardoso em 28/11/2019
Reeditado em 19/02/2020
Código do texto: T6805917
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