Orinsuke e Os Sete Trovões - Cap 3: Sonho de um camponês

Aldeia de Kimoto – tempo atual

Orinsuke acorda para mais um dia de trabalho, repleto das mesmas rotinas conhecidas. Até a natureza repete seus gestos diários com o galo cantando no alto da cerca, o mugido das vacas e o relincho da mula. O único fato diferente nesses dias foi a rigorosa estiagem que se abateu sobre a região, trazendo um frio bem maior do que nos outros anos.

Morando apenas com seu pai adotivo, o velho e rabugento Sr. Onoke, numa pequena propriedade rural, na distante aldeia de Kimoto, Orinsuke desde cedo aprendeu a valorizar o trabalho no campo e a lidar com as atividades domésticas. Em locais como Kimoto, é comum garotos e garotas trabalharem duro no dia a dia para ajudarem seus pais e mães.

A aldeia é um pequeno aglomerado, de não mais de trinta casas, onde moram pessoas, em sua maioria mais velhas, que vivem unicamente da agricultura e da pecuária, com parte da produção transportada para as aldeias maiores da região para ser vendida. Claro que esse trabalho cabia em sua maior parte aos jovens do lugar. Localizada nas terras do clã Wanabi, próxima do rio da serpente, um dos principais cursos de água em Endo, é um lugar silencioso e com quase nenhuma diversão.

Orinsuke levanta-se depressa quando percebe os passos do Sr. Onoke em direção à cozinha. O velho tinha mania de ficar irritado quando não via ninguém preparando seu café da manhã. E nesta manhã não foi diferente. Assim que Orinsuke chegou correndo na cozinha, lá estava ele sentado em sua cadeira de estimação, mordiscando um pedaço de pão com a cara amarrada. O garoto tratou logo de preparar a refeição para ver se, de estômago cheio, o velho se acalmava.

Como sempre fazia, o Sr. Onoke geralmente reclamava de algo no início do dia. Desta vez foi do frio, do pão endurecido que lhe foi servido e da falta de dinheiro para comprar artigos de necessidade. Orinsuke não tinha resposta para o frio intenso, mas em relação ao pão rígido e da falta de recursos relembrou o velho pai que a colheita escassa gerou pouca venda e outros empecilhos surgiram e precisaram ser resolvidos, como a quebra da roda da carroça, uma parte da cerca que caiu completamente e a compra de algumas ferramentas. Tudo isso acabou com os recursos arrecadados.

Orinsuke sabia que o Sr. Onoke tinha conhecimento de tudo isso, mas sempre fazia questão de trazer a realidade dos fatos, para descontentamento do velho, que detestava viver no fio da navalha em relação a racionar a dispensa. Por sorte, Orinsuke tinha boa cabeça para esse tipo de coisa e sabia organizar o consumo de comida durante a semana. O garoto era bem disciplinado nessa questão.

A despeito das dificuldades trazidas pela estiagem demorada, alguns legumes e verduras resistentes ao frio estavam quase prontos para a colheita. E toda semana, geralmente aos domingos, tinha o dia das feiras livres, realizadas em aldeias diferentes, onde os agricultores da região se reunião para vender seus produtos.

Desta vez o local escolhido para esta semana foi Damari, uma simpática aldeia de pescadores às margens do rio da serpente. Mas antes de pensar na viagem daqui a três dias, Orinsuke tinha muitas atividades a realizar na propriedade no dia de hoje. Sem perder tempo, após limpar a cozinha depois do café da manhã, tratou primeiramente de regar as verduras e legumes.

Os afazeres continuaram com a verificação de possíveis defeitos na cerca, no que infelizmente encontrou outras partes danificadas, limpeza do local onde ficam as duas vacas e o boi de tração, além de ordenhá-las, tirar água do poço, escovar o pelo da mula e forrar sua baia com feno novo, recolher ovos do galinheiro e pendurar algumas roupas no varal.

Perto do meio dia, Orinsuke lembrou que não tinha pregos o suficiente para o concerto da cerca. O Sr. Ikuma, o marceneiro da região, tinha utilizado todos nos reparos do dia anterior. Por sua vez, o Sr. Onoke não gostou nada de saber disso.

- Como? - perguntou indignado o velho Onoke - Como alguém que se diz marceneiro não leva consigo os instrumentos de trabalho? Que droga de profissional é esse? Quer dizer que usou meus pregos? E agora, como vamos consertar a maldita cerca?

- Mas, Sr. Onoke, utilizamos a última porção carne foi o pagamento pelo serviço, lembra? O dinheiro acabou faz um tempinho. E podemos dar um jeitinho amarrando a cerca com corda.

- Ah, cale a boca, Orinsuke. Acha que não procurei corda também? E sabe porque não achei? Por que também não temos a maldita corda. E Lá vem você de novo me lembrando da minha penúria. Pare de me dizer que estou sem dinheiro. Eu sei muito bem disso.

- Me desculpe Sr. Onoke. Não queria irritá-lo.

- Você só sabe pedir desculpas! - Onoke aumentou mais ainda o tom de voz e olhou para as mãos - Acha que é fácil não fazer mais meu ofício? Acha que foi minha escolha cuidar de lavoura esse tempo todo? Acha que eu gosto de ficar boa parte do tempo sem dinheiro? Acha que gosto de morar nessa aldeia no fim do mundo cheia de aproveitadores? Acha que é fácil alimentar mais uma boca?

O silêncio se instalou, cortado apenas pelo vento balançando as folhas das árvores. Onoke sentiu o peso e a acidez de suas palavras. Olhava para o chão pois percebeu que tinha passado dos limites, foi duro demais. Quando olhou de volta para Orinsuke, o garoto enxugava as lágrimas. O remorso invadiu seu coração.

- Olha, garoto, não ligue para mim. Sou apenas um velho rançoso que fala demais as vezes. E em relação aos pregos eu pensei em levar metade de nossas garrafas de leite e vê o que Miaki tem a nos ofertar em troca lá no armazém. O que acha?

- Acho uma boa ideia, Sr. Onoke.

O ar tinha ficado mais gelado e a caminhada era lenta pela estradinha de terra. Orinsuke andava pensativo enquanto segurava com cuidado o cesto contendo as garrafas de leite e olhava as pequenas propriedades a margem do caminho. Não sabia se o Sr. Miaki aceitaria a troca do leite pela caixa de pregos, mas naquela hora não se importava tanto.

Orinsuke estava acostumado com o lado rabugento do Sr. Onoke, com sua falta de paciência. Mas sempre tinha aquelas horas em que se sentia um fardo indesejado. Será que o velho só o aceitava porque ajudava na lavoura? Se não estivesse doente das mãos, ainda estaria com ele ou o abandonaria, como fizeram seus pais?

Mas agora era melhor esquecer esse assunto, sua preocupação era tentar trocar as garrafas de leite pelos pregos na loja do Sr. Miaki.

Mesmo as pequenas aldeias, como Kimoto, possuem suas figuras conhecidas. E sem dúvida alguma Utaka Miaki é essa figura na aldeia. Por muitos anos ele lidera o conselho de aldeões e é dono da principal loja de mantimentos. Como todo mercador, realizava constantes viagens até a aldeia-capital no intuito de comprar mercadorias, e na volta não trazia apenas produtos como também notícias do que andava acontecendo no centro do território. O velho Miaki era uma verdadeira fonte de informações para todos os sedentos por novidades.

Orinsuke entrou na loja do Sr. Miaki e tratou logo de ofertar as garrafas de leite em troca da caixa de pregos. Atrás do balcão de madeira lá estava o dono, com seu sorriso costumeiro, atendendo os clientes. De fato não precisava do leite, mas pela antiga amizade com o Sr. Onoke aceitou a troca, contanto que o velho amigo o visitasse da próxima vez para tomar um chá e falar dos velhos tempos. Orinsuke prometeu que daria o recado.

Ao sair da loja, Orinsuke avistou com bastante alegria os amigos que não via já a algum tempo, afinal os jovens da aldeia geralmente estão muito atarefados no plantio, na colheita e nas outras inúmeras atividades que realizam ao lado de suas famílias, principalmente em desafios climáticos mais difíceis como a estiagem que atingiu a região.

Quando eram mais novos, na época em que as responsabilidades não tinham chegado, o quarteto Orinsuke, Godi, Han e Yume, a garota do grupo, sempre se reunia para as brincadeiras quando seus pais os levavam para as reuniões do conselho, festividades e feiras livres em outras aldeias. Adoravam aproveitar o tempo explorando os bosques, fingindo ser uma patrulha samurai numa missão. Orinsuke sempre admirou a figura desses guerreiros, com suas habilidades especiais e coragem, portando sempre suas famosas espadas katanas.

Desta vez o grupo estava apenas com três membros, já que Yume não estava entre eles. Quando Orinsuke perguntou sobre a amiga, Godi e Han disseram que tinha viajado com o pai para a aldeia-capital há três semanas e não tinham retornado. Sua família até tinha colocado outra pessoa para cuidar da propriedade. Suspeitavam que não retornariam mais para Kimoto. Orinsuke gostava muito da amiga e entristeceu-se com a possibilidade de não vê-la mais.

- Vocês ainda possuem aquelas espadas de madeira que usávamos? - perguntou Godi, interrompendo o silêncio que se instalou, enquanto mastigava uma banana que tinha tirado do bolso.

- Eu não - respondeu Han. O mesmo tinha retirado o avental da cintura e colocado sobre o ombro - Acho que foi no ano passado que meu pai usou minha espada para consertar uma parte da cerca que faltava. Lembro que na hora não gostei muito, mas depois deixei pra lá.

- A minha ainda está guardada embaixo da cama - falou Orinsuke - Sempre que olho para ela, penso nas nossas explorações. Lembram daquela vez em que o Godi ficou preso num monte de arbusto e demoramos quase uma hora para tirá-lo?

- E quem não lembra - gargalhou Han - Ficou chorando dizendo que nunca mais ia voltar para casa.

- Idiotas. Falam isso porque não foram vocês que ficaram presos e espetados no corpo por todos os lados - Godi puxou rapidamente outra banana do saco que carregava - Se não fosse a faquinha da Yume, estaria preso até hoje - falou enquanto mastigava.

- Ela sempre dizia que aquela faca era sua verdadeira katana. Uma faca minúscula diga-se de passagem. Não dava medo nem em passarinhos - falou Han sorrindo.

- Um verdadeiro samurai nunca despreza sua espada - disse Orinsuke levantando o dedo indicador para chamar a atenção - Ela é a alma do guerreiro.

- Você sempre levou muito a sério essas aventuras, Orinsuke. Essa coisa de samurai é só para brincar mesmo - falou Han.

- É que ele acha que pode se tornar um deles. Sempre teve esse sonho impossível – Godi debochou do amigo.

- É, acho que tem razão - disse Orinsuke - Mas não custa nada sonhar, não é?

- Sim, claro, eu também tenho muitos sonhos – continuou Godi - Um deles é ter muito dinheiro para montar um restaurante e comer os melhores pratos o dia todo. Mas posso ter isso? Claro que não. É só um sonho. E como diz meu pai, sonhos só são feitos para sonhar.

O trio conversou mais um pouco e depois se despediu, cada um voltando às suas atividades rotineiras, prometendo voltar a se ver no domingo durante a feira em Damari.

Orinsuke apressou o passo no caminho de volta e quando chegou em casa avistou o Sr. Onoke averiguando as partes danificadas da cerca. Os dois colocaram a mão na massa para terminar os reparos antes de anoitecer. Ao final, enquanto o sol começava a se esconder no horizonte por trás das montanhas, pintando o céu de lilás e laranja, pai e filho ficaram apoiados na cerca contemplando o espetáculo da natureza que sempre ocorria nesse horário.

- Olha, garoto - falou Sr. Onoke, quebrando o silêncio, olhando fixo para o horizonte - Quanto ao que aconteceu hoje mais cedo, peço desculpas pelas minhas palavras.

Orinsuke ficou surpreso com aquelas palavras. Não lembrava da última vez que tinha ouvido um pedido de desculpas do velho. Resolveu respeitar o silêncio do mesmo, pois sabia como tinha sido difícil para ele dizer aquilo. Mesmo assim não conseguiu evitar o sorriso que se formou em seus lábios.

No dia seguinte, aproveitando um momento de cochilo do pai, e já com os afazeres domésticos terminados, Orinsuke se dirigiu ao fundo da propriedade onde havia uma bela cerejeira de folhas amarelas. Desse lugar, sentado na grama aconchegante, dava para ver um declive no terreno que terminava num pequeno bosque. O contato com esse tipo de ambiente sempre o acalmava. Adorava o verde da natureza, especialmente as árvores, pelas quais sentia uma estranha atração.

Ao som do vento balançando as folhas, fechou os olhos e saiu um pouco da realidade, livre por um momento das rotinas constantes e estranhamente sem sentido. Por mais que tentasse afastar esse tipo de pensamento, ele sempre o visitava, incomodando-o com sensações que não entendia, dando-lhe um aperto no coração.

Nesta hora recorria à sua katana de madeira, que sempre levava consigo. Ao tocá-la, sentia como se uma voz o chamasse, fraca, quase imperceptível. Ela estava sempre ali, presente, constante, sutil e poderosa.

Orinsuke se levantou e iniciou uma luta imaginária com sua espada de mentira. Imaginando a cerejeira como um inimigo, desferia golpes no caule da árvore ao sabor do vento e sob o sol que lentamente se escondia por trás das montanhas. Nesta hora só existia apenas ele e sua espada. Só ele e sua imaginação. Ele e seu sonho. Seria possível?

- Orinsuke! Onde você está, garoto? Esqueceu de colocar os animais para dentro do cercado. Quer que eles morram de frio? - a voz do Sr. Onoke, gritando pelo seu nome, desperta o garoto de sua viagem imaginária.

“Sonhos são feitos para sonhar” Orinsuke relembrou as palavras do amigo enquanto corria de volta para casa. Segurava firme sua espada de madeira.

- Estou indo, Sr. Onoke.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 27/11/2019
Reeditado em 01/12/2019
Código do texto: T6804666
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