A Lenda de Fulssir
A história que conto aqui não é apenas uma simples lenda de faz de contas, ela aconteceu. Não de forma real, não em nosso mundo, mas em uma mente criativa e sonhadora, pois quando uma história é criada e contada, lida e relida, ela toma vida, mesmo que apenas dentro das mentes daqueles que a criam, contam, leem e releem. Sem mais delongas...
No princípio das eras havia, em meio ao Nada, apenas uma pequena semente. Um ponto mínimo de energia pura, energia essa provida de uma adormecida força de vontade e esperança que remanescia por séculos abandonada, esperando. Deixada por quem? Abandonada para que? Esperando o que?
Em um momento qualquer e sem exatidão, momento sem importância alguma para a vida das demais pessoas - como o meu ou seu nascimento - essa semente germinou sem motivos. Assim surgiu a Terra, mais velha dos quatro elementos. Não pense nela como nosso amável planeta é hoje, pense numa grande crosta de pedra rochosa, com diversas cavidades e protuberâncias, porém oca por dentro, guardando eu seu leito apenas aquela pequena e desconhecida semente que a gerou. Foi assim que tudo começou, mas ainda faltava muito para esse começo terminar.
Aquela pequena semente rochosa possuía enorme vontade de viver, de ser algo que nem ela compreendia, e esse seu desejo a consumiu tão intensamente e de tal forma que ela queimou por completo tornando-se uma chama poderosa que apenas aumentava, de modo que em alguns pontos as chamas e a Terra se misturavam e brotavam para a superfície como magma. Assim nasceu o Fogo.
Das dores que a Terra sentiu por conter seu filho-irmão em seu colossal leito rochoso (por mais impossível que possa parecer aos seus pensamentos) uma gotícula de sofrimento brotou da secura crua das rochas da superfície. Essa gotícula se multiplicou tremendamente em volume preenchendo os locais mais profundos da crosta terrestre. Assim nasceu a Água.
Presenciando magnífico espetáculo, o Nada percebeu a fúria e intensidade do Fogo, sentiu a força de vontade e amor da Terra, a compaixão e solidariedade extrema da Água, mas ainda assim os julgou frágeis e, em seu zelo por eles, os envolveu o máximo que conseguiu tentando com suas forças tornar-se Algo que pudesse sempre vigiá-los e ajudá-los, sempre presente em todos os lugares, mesmo que não pudesse ser visível. Assim nasceu o Ar.
A Terra formou o leito de conservação de todos os elementos, uma grossa e enorme crosta que sustentaria seus irmãos; o Fogo em sua voracidade incontrolável procurou refúgio no centro amplo da Terra, única que conseguia agüentar tamanha ira, e assim poderia eclodir sem causar danos severos para seus irmãos elementais; a Água, como por agradecimento para a Terra, preencheu os declives mais profundos de sua irmã com sua própria essência enquanto trazia vida ao Grande Mundo; por fim o Ar envolveu os céus com a finalidade de sempre olhar por seus três irmãos, nunca os deixando sozinhos, controlando as ondas das marés, a direção das queimadas, soprando as sementes das árvores para serem plantadas, entre outras muitas coisas.
Uma vez que o Grande Mundo estava finalmente completo e em pleno desenvolvimento constante todos os elementos poderiam por fim descansar. Entretanto, não foi isso que aconteceu, pois quando finalmente suas emanações elementais se tornaram estáveis eles passaram a dar maior espaço para seus sentimentos e começaram a sentir em grandes proporções.
O Fogo, como de esperado, alimentou com toda sua massa quente o ódio por tudo e qualquer coisa viva, puro ódio sem motivo. A Terra, por estar acostumada a suportar a ira de seu irmão Fogo, gerou um amor imenso pelo mesmo, mas não o amor lascivo da paixão e sim o amor fraternal de um irmão para outro, tomada por uma enorme ternura, sentia pena dele possuir tanto ódio sem motivos. A Água, ao contrário do esperado, ficou possuída por uma incrível tristeza ao ver sua irmã sempre judiada pelos maus tratos do Fogo e tentava sempre consolá-la com as carícias das ondas que deslizam carinhosamente pela areia fofa. O Ar, diferente de seus irmãos por toda sua inconstância, não se apegou apenas a um único sentimento, mas de certa forma não conseguia ter mais de dois sentimentos ao mesmo tempo. Sua sede em sorver novas sensações era tão grande que quando se apegava a qualquer sentimento ele o soprava forte apenas pela curiosidade no sentimento em questão, absorvia o máximo dele e depois que o sentia ao extremo largava mão deste para sentir mais profundamente outros, esquecendo por completo tudo que aprendeu com os sentimentos anteriores.
Foi assim que começou uma espécie de rápido relacionamento entre o Ar e a Água, quando ele aprendia mais sobre o amor puro e verdadeiro se apaixonando assim por sua irmã. Ambos pela primeira vez fizeram sua eterna dança de amores, o Ar soprava e a Água caia. A primeira de muitas chuvas onde o Ar e a Água consumiam por completo seu amor, se encontrando e reencontrando em cada gota. A mais bela dança existente desse e qualquer outro mundo. Após essa primeira chuva, infelizmente, o Ar mais uma vez esqueceu seu atual sentimento enquanto o amor apenas crescia mais e mais na eterna essência da Água. Apenas séculos mais tarde o Ar aprenderia a aproveitar os sentimentos aos poucos e não esbanjá-los para depois esquecê-los, retomando, dessa vez para sempre, o amor pela Água... Mas até lá ainda haveria muito para acontecer.
Voltando para o real foco de nossa lenda, aqui nasce Fulssir, onde nos últimos momentos antes que o amor entre aqueles dois majestosos elementos sumisse por completo, o Ar soltou um suspiro, ou melhor, um Sopro de vida. Talvez devido ao intenso amor de seus pais, ou por conta de um pouco de energia da semente da criação que teria sobrado nos elementos, algo deu vida a esse Sopro que tinha tanto desejo em descobrir sobre sentir quanto seu pai elemental. Logo que nasceu decidiu procurar saber mais com seus parentes próximos, tentou a princípio com seu pai, mas o Ar abandonava um sentimento tão rapidamente que nada podia ensinar ao filho. Procurou com o Fogo, mas a ira dele era tamanha que não se podia socializar com este. Observou a Terra e aprendeu a ser sereno como ela, indo assim por último de encontro à Água e sentindo toda a tristeza que o Ar havia lhe causado por abandonar-lhe, assim também sentindo certa lasca de raiva de seu próprio progenitor. Sopro, filho do Ar, por séculos analisou a ternura, tristeza e raiva que aprendera, compreendendo com o tempo tais sentimentos enquanto procurava por novos.
Quando a vida começou a prosperar sobre a superfície do Grande Mundo o filho do Ar observou e estudou cada característica dos seres mortais que conhecia acompanhando incontáveis passos da evolução em suas mais diversificadas formas e adquirindo enorme conhecimento sobre muitas coisas. Assim aprendeu que quase todos os seres vivos com alguma inteligência animal mínima possuem um vestígio de sentimentos, estes tão confusos e amplos quanto os de sua existência eterna. Presenciou o amor que animais têm entre si, tanto fraternal, quanto paternal, além de ter visto a tocante cena de alguns deles lamentando pela perda de seus semelhantes, sendo estes sem laços sanguíneos diretos. Entretanto, uma espécie chamava mais sua atenção que as outras: o bicho homem.
Havia encontrado um ser que poderia talvez se assemelhar a si mesmo devido à grande curiosidade de ambos. Acompanhou desde as primeiras tentativas dessas criaturas de uma comunicação verbal até o ponto em que se dividiram em vários povos, cada um com suas culturas e línguas – das quais ele conhecia todas por presenciar a criação de cada uma delas –, uma espécie dividida em subespécies. Foi nesse ponto em que descobriu um único bicho homem que ele teve real interesse em não apenas estudar, mas conhecer pessoalmente. Esse homem desconhecido era o primeiro que ele havia descoberto possuir uma indiferença descomunal em relação aos outros de sua espécie, parecia quase completamente isento de sentimentos...
Para sua infelicidade não teve muito tempo para tentar decifrar o enigma desse homem, pois poucos dias após tê-lo encontrado ele morrera. Coisas do acaso, confundido com um ladrão enquanto tentava entrar na própria casa por ter perdido a chave. Sentiu-se desamparado, deprimido. Finalmente havia encontrado um enigma e este se fora repentinamente. Enquanto buscava uma possível solução, Sopro teve algo que talvez possamos chamar de idéia, sabia que não possuía poderes (muito menos direito) de devolver a vida de um mortal, então resolveu fundir sua essência com as reminiscências da alma daquele mortal enquanto esta não havia saído completamente do corpo.
Não pensou nas conseqüências, apenas agiu impulsivamente, precisava descobrir a fonte daquela indiferença, mas logo depois que finalmente penetrou no corpo e parte da alma daquele homem começou a se questionar se havia feito a coisa certa. Tinha plena consciência que não haveria volta. Uma vez tomada uma forma mortal sabia que sua essência viveria nela eternamente. Continuaria um espírito elemental imortal, porém com limitações humanas.
Logo após levantar e abrir os olhos, agora em seu novo corpo, sentiu uma leve tontura. Não compreendeu aquilo, mas ignorou. Depois que a tontura passou percebeu que estava num buraco, era sua cova, ou pelo menos a do mortal que antes habitava aquele corpo. Em seguida uma grande massa de terra fora jogada contra ele que proferiu suas primeiras palavras numa exclamação de susto por ter sido pego de surpresa. Alguns metros acima uma figura de olhos arregalados e pele pálida que segurava uma pá, observava atônita o que poderia ser um milagre, porém a figura curiosa não interpretou como tal e apenas desapareceu de imediato bradando nomes de deuses atualmente considerados pagãos.
O filho do Ar riu com vontade pela primeira e última vez por anos, achou graça da situação. Não entendeu exatamente como, mas achou aquilo tudo realmente cômico. Ergueu-se, estava vestindo um longo manto branco, sujo, velho e fedorento. Sua primeira ação foi obviamente sair daquele túmulo – coisa que achou um tanto trabalhosa demais. Uma vez na superfície, uma leve brisa passou pelo cemitério onde se encontrava e era a primeira vez que sentia a mais deliciosa manifestação do Ar. Suspirou doces palavras saudosas ao vento e recebeu em resposta o som do mesmo percorrendo por entre as árvores e arbustos. Fechou os olhos e sentiu a música oculta naquele momento, quando tornou a abri-los disse para si mesmo: - Fulssir... o nome com que meu pai me abençoou...
Saiu do cemitério, viu pessoas, sentiu pela primeira vez vergonha e roubou roupas do varal de uma casa que encontrara vazia por pura sorte. Percebeu que fazia algo errado, seu bom senso reagiu pela primeira vez, mas sua necessidade de roupas melhores era maior. Teve fome e sede, mas não possuía bens para comprar alimentos, teve de trabalhar. Descobriu que era diferente e não sofria efeitos de inanição ou desidratação como humanos comuns. Da mesma forma sentia calor e frio, mas parecia ser bem mais resistente que qualquer outro em todos os aspectos.
Finalmente teve a certeza de que sua imortalidade estava intacta quando um dia caiu num poço. Após terem-no resgatado estava morto, mas minutos depois cuspira toda a água fora de seus pulmões e voltara a respirar.
Sua última descoberta sobre sua forma humana era algo não relativo a ele mesmo, mas ao espírito do mortal que antes habitava aquele corpo. Finalmente entendeu o motivo da indiferença daquele homem, no fundo ele não era totalmente indiferente e tinha de fato emoções, mas devido a uma vida solitária sua necessidade em reprimi-las era deveras grande e assim quase não expressava ou sentia. Fulssir inevitavelmente estava fazendo o mesmo, havia adotado sem perceber essa característica daquele fragmento de espírito mortal.
Com o tempo se acostumou com essa repressão de sentimentos e achou isso favorável para seu aprendizado sobre os mesmos. Decidiu que seria melhor estuda-los sem ter que senti-los. Depois que aprendeu o que considerou suficiente sobre esse tema, pulou para outros e sua sede de conhecimento foi aumentando cada vez mais. Estudava sobre culturas, religiões, lendas e até filosofia... Até se entediar de tudo. Estava cansado das limitações mortais e tinha saudades de ser uma emanação elemental, mas não havia volta. Vagou pelo mundo por anos em busca de uma resposta ou um novo motivo e todas as procuras foram em vão.
Não se tornou um depressivo, mas estava cansado... E até hoje vaga, ainda em possíveis buscas, ainda todas em vão, ainda solitário. Preso num mundo muito conhecido, mas um mundo que não é o seu. Sempre na esperança de que sua próxima morte possa ser definitiva...