Um Dia de Feriado
Acordou da mesma maneira como faz todo dia. Levantou-se também da mesma forma que toda manhã e foi tomar seu café, apenas o movimento atípico da galeria lhe fazia recordar que era feriado. Era dia de finados. Em um lampejo lhe passou pela mente a recordação de algumas pessoas que passaram por sua vida e já se haviam ido. Não por motivos religiosos, apenas uma rápida lembrança, motivada por ser o dia que era. Seu pai, um amigo quase irmão, outras pessoas por quem nutriu respeito e amizade. Lembrou-se também do aniversário do amigo na véspera, que nesta época do ano sempre lhe alcançava a idade, desta vez 59 anos. Mas este dia também tinha outro significado, fazia 16 meses que estava preso.
Dezesseis meses! E por que estava preso mesmo? Sempre se perguntava para ver se melhor entendia. Nesses 16 meses havia cumprido diversos programas de remição de pena que, pelos seus cálculos, lhe adicionavam algo em torno de 5 meses ao tempo de encarceramento. Pensou em pedir um extrato do sistema para confirmar suas contas manuais. Mas, sim, sua aritmética lhe apontava que já tinha 21 meses de pena cumprida. Pena cumprida! Mas que pena mesmo?
Estava sentenciado a 12 anos e 2 meses em primeira instância. O sistema descrevia que com 2 anos (24 meses) e 10 dias em regime fechado ele atingiria o direito a progressão de pena para o regime semiaberto, não era isso? Faltavam, então, 3 meses ou um pouquinho mais talvez. Continuando no mesmo programa de remição de pena que já estava inscrito, em uns 2 meses estaria alcançando a data para sair do regime fechado.
Dois meses! Mas por que estava preso mesmo? Como visto, estava sentenciado em primeira instância. Não iria refletir sobre o mérito do seu julgamento, era outra história. Mas pensava ter direito a recorrer da sentença em liberdade, não tinha? Por que estava preso? Parecia haver algo estranho no ordenamento jurídico? “Pode ter certeza que há”, dizia a um interlocutor imaginário.
Havia sofrido o processo e havia sido sentenciado em um tempo muito menor que o trâmite de habeas corpus que sua defesa impetrara desde início da sua prisão. Neste período todo não havia conseguido ter seu HC julgado no Tribunal Superior. Como era possível? O habeas corpus não era um instrumento para uma decisão rápida? Não parecia ser omissão das autoridades? “Pode apostar que é”, respondia mentalmente. Estava na Constituição, ele tinha lido, ou não mais? Mas por que estava preso mesmo, cumprindo pena em primeira instância?
Recentemente havia sido discutido no Supremo Tribunal, que aprovara por 6x5, o entendimento de que condenados em 2ª instância podiam ser presos para cumprir pena, mesmo com recursos para instâncias superiores até trânsito em julgado. Ele não tinha nenhuma formação na área de Direito mas, apenas na base do bom senso, achou um placar apertado demais, com voto de minerva da presidência do Supremo Tribunal, para uma mudança de interpretação da Constituição. “Não lhes parece?”, interpelou na sua conversa imaginária. Achava que com a votação chegando à presidência do Supremo Tribunal na base do 5x5, deveria ter sido mantido o entendimento vigente. Mas deu-se conta de que era um reles cidadão comum e, ademais, um preso com interesse no cartório.
E, a bem da verdade, vários procuradores, alguns juízes e outros membros do Poder Judiciário defendiam essa tese. Justificavam sua posição para não permitir o que chamavam de recursos protelatórios, que atrasavam sobremaneira o cumprimento das penas. Grande parte da imprensa repercutia essa posição com forte apelo, influenciando fortemente a opinião dos cidadãos. “Ora!”, pensava ele, “a Justiça que dê tratamento aos recursos realmente protelatórios”.
Para ele os seus recursos, assim como os da maioria das pessoas, não seriam protelatórios (sempre só davam o exemplo do ex-senador e seus mais de 30 recursos, sempre). Era o seu direito de apelar a instâncias superiores, previsto no ordenamento jurídico do país, ao considerar que as sentenças não estavam sendo justas pelos autos do processo. Afinal, o ministro não havia dito que 25% das sentenças eram reformadas no Supremo Tribunal e que a Constituição deveria ser mais amada? Ele tinha esse direito aos recursos, não tinha? “Pode ter certeza que tenho”.
Então sua mente deu-se conta de voltar ao fio condutor central, que era investigar pelos seus parâmetros racionais o porquê de estar preso ainda de modo cautelar. Ou, estranhamente, sabe-se lá, em primeira instância, já que cumpria pena – estava no sistema de execução penal. E talvez, quem sabe, poder entender melhor alguma coisa.
Ele havia sido detido em Julho do ano anterior, prisão preventiva. E a razão? Risco à ordem pública. Ele poderia atrapalhar as investigações que estavam em curso em relação a ele. Liberdade estancada, busca e apreensão sofrida em três endereços, documentos, computadores, nada restou que ele pudesse intervir dali para frente. Muito bem. Ficou preso 28 dias até finalmente ser chamado para um depoimento. E teve a certeza pela conversa com o delegado que só lhe ouviam naquele momento porque o prazo da Polícia Federal estava acabando. Estavam com muito trabalho, a operação ocupava muito a todos. Nunca soube que risco realmente representava, o que teria atrapalhado neste período. Não houve investigação real após sua prisão. E até então não havia denúncia. Acabando o prazo de 30 dias a Polícia Federal emite seu relatório ao Ministério Público.
Investigação terminada. Bem que pensou que poderia então sair da prisão, não há mais investigação a atrapalhar. Mais alguns dias o Ministério Público oferece denúncia e o juiz abre o processo. É a ordem natural das coisas. Como imaginou também que seria sair da prisão preventiva e responder o processo em liberdade. Não! Risco à ordem pública. Poderia coagir testemunhas ou interferir de qualquer outra forma estando em liberdade. Ele não achava que era um risco à ordem pública, não mesmo! Estaria tudo isso a parecer um uso de força excessiva por parte do juízo? Um pouco de exagero? “Certamente que está”, ouviu do seu amigo imaginário.
Sentiu-se então condenado desde o momento da prisão. O próprio decreto prisional trazia juízos de valor. Como o julgador iria contra o prendedor se eram a mesma pessoa? Lembrou-se das palavras de Graciliano Ramos (ele mesmo um preso sem julgamento) em Memórias do Cárcere. “Condenaram-no antes do julgamento, e nada compensa o terrível dano, talvez as coisas devam ser feitas assim, não haja outro meio de realizá-las. De qualquer modo isso é uma iniquidade – e a custo admitiremos que uma iniquidade seja indispensável”.
E a presunção de inocência? Está na Constituição, não está? À questão da prisão, sua defesa continuara a dar tratamento por habeas corpus. Era um instrumento do Direito e ele tinha a prerrogativa dele fazer uso, não tinha? Manter o direito de ir e vir a salvo do arbítrio. Risco à ordem pública, ora...
Mas o que ocorreu em seguida foi que em pouco mais de 04 meses todo processo correu e se encerrou. Alegações, diligências, testemunhas, interrogatórios, tudo. Célere. Instrução do processo finalizada. Só faltava a sentença. Achou mais uma vez agora que poderia ser libertado e aguardar as próximas etapas em liberdade. Não, risco à ordem pública. Afinal, ele poderia fugir, não se submeter à decisão judicial. Caramba! Ele não se via esse fugitivo. Por que não pediam seu passaporte, por exemplo?
Lembrou-se de uma notícia recente, não tinha a ver com seu caso, mas um juiz havia proferido uma decisão de manter a prisão preventiva de um réu, considerando que mesmo com passaporte apreendido o risco de fuga era presente porque nossas fronteiras eram extensas e pouco cuidadas. Ora, manter o indivíduo preso preventivamente porque o Estado não faz direito o seu trabalho de guarnecer nossas fronteiras? Para ele não fazia muito sentido. O que estaria acontecendo, perguntou-se, procurando entender o ambiente e a nova atmosfera.
Chegou ao ponto, então, em que se via preso cautelarmente, presunção de inocência desconsiderada e cumprindo pena na mão pesada do Juiz de primeira instância. “Parece abuso de poder?” Perguntou seu amigo mentalizado. “Já tenho a certeza. Do meu ponto de vista, claro”, respondeu.
E o caminho do HC, como havia ficado? Depois que chegou ao Tribunal Superior, no ano anterior ainda, congelou inexplicavelmente. Aguardou o julgamento do mérito, que nunca ocorreu. Passados 08 meses, mudança de relatoria, o imenso foco midiático em cima do tribunal, há a decisão do relator de que havia passado muito tempo e havia perdido o objeto. Deveria retornar e começar de novo seu processo no Tribunal Regional. Era isso mesmo? Eles deixaram passar muito tempo e depois decidiram que muito tempo havia passado? Calma! Não quis perder o raciocínio. Estava a tratar de habeas corpus, um procedimento mais expedito, não do processo criminal. Sentiu-se impotente diante da situação surreal e imaginou que Kafka assinaria este roteiro. Neste momento seu HC já repetira o caminho e estava novamente no Tribunal Superior, exatos 16 meses após sua prisão preventiva. Dezesseis meses!
E a sua sentença já proferida há tempos, o taxímetro da execução penal rodando e quase podendo progredir de pena. Ficou confuso. Estava recorrendo da sentença em segunda instância e não podia responder em liberdade, mesmo com a nova interpretação da Constituição. Nessa rubrica de “risco à ordem pública” cabia qualquer coisa. Era a quintessência da subjetividade do Judiciário.
Nunca pensara que a justiça fosse tão subjetiva. A prisão era um ato muito grave e que estigmatizava as pessoas. Tudo o que ele havia feito de bom na vida seria apagado e ele seria visto para sempre como um errado. Era com sua liberdade que estavam a lidar, não era um bem qualquer que estava a defender. Sofrera as principais restrições da sua vida, o convívio com família e amigos, o direito ao trabalho, o impacto em suas finanças, tudo sem o tal trânsito em julgado.
Um novo tempo, era o que alguns apregoavam e a grande mídia repercutia, com efeito na sociedade em geral. Ficou imaginando se com esse novo tempo não havia chegado um novo processo de tortura, instrumentalizado com as ferramentas do arbítrio. Sentiu a resposta positiva dentro de si. Parecia que queriam algo dele. Queriam?
O cidadão comum, claro, não se aprofunda nos processos para analisar o contraditório e formar uma opinião independente. E jamais irá fazê-lo. Contenta-se com as aparências do noticiário, e a imprensa faz sua escolha a quem dar voz, como aos atuais paladinos do judiciário. Enfim, curvou-se à evidência de que a narrativa da corrupção desempenhava um papel decisivo. Sim, era compreensível. Quem não é contra a corrupção? Mas o desrespeito à Constituição e o açodamento dos processos para ele também eram evidentes e só agora começaram a aparecer, em meio à névoa, artigos na imprensa sobre arbitrariedade e abusos fundamentalistas.
Mas dezesseis meses haviam se passado.
“Olha o fecha!”, ouviu gritar no corredor. Voltou a si, recompôs-se, e foi tomar seu posto. Era a hora de servir a refeição aos internos. Não podia perder esse emprego.