A culpa é da Roda Viva.

O suor secara na testa e seus olhos pararam de arder. Ela, cansada de esperar pelo irmão, sentou-se na calçada e ficou a observar, a sua volta, as pessoas que voltavam do trabalho e os transeuntes gerais que tinham compromissos na noite que já se fazia presente. No outro lado da rua, um homem a olhava fixamente.

Fazia alguns dias que ele observava imóvel do outro lado da rua. Todos os dias na hora da saída lá estava ele a observar sem ao menos tentar falar alguma coisa. Não se assustava porque do contrário, se ele ousasse atingi-la, não sairia dali incólume.

O homem vestia uma jaqueta jeans desbotada e uma calça de brim vermelha também desbotada. Os cabelos pretos ligeiramente grisalhos ficavam prateados em algumas mechas mais iluminadas pela luz do poste, no qual ele ficava encostado. Os braços cruzados e o corpo ligeiramente inclinado. Seria capaz de jurar que suas mãos eram calejadas, embora não pudesse ver àquela distância. Tinha a tez bronzeada, sinal de trabalho ao sol. Os pés desnudos sobre um par de chinelos havaianas gastos, mostravam as unhas grandes e sujas.

Os colegas de trabalho afirmavam que ele estava gamado nela.

_Cruzes! Deus me livre! E riam muito tentando saber quem seria o tal homem.

Os palpites eram muitos. Chegaram a apostar.

Nilza apostou que ele era um fã dela que não a via ha muito tempo e estava sem graça de chegar nela pois era pobre. Gina descartou essa possibilidade pois seu semblante não lhe dizia nada.

Pedroca, afirmou que ele era um tarado esperando um momento oportuno para dar o bote. Isto assustou Gina mas o tempo foi passando e já fazem dois meses que o homem vem até ali, e não chegou perto dela nem quando teve oportunidade.

Rebeca disse que ele estaria interessado nela e não na Gina. Todos riram dela mas deixaram claro que essa possibilisade não existia pois ele só chegava no horário de Gina sair e Rebeca saia bem cedo, devido as aulas da faculdade.

Hudson quiz falar com o homem mas ele correu quando tentou. Resolveu chamar a polícia mas Gina não deixou. Afinal ele não fizera mal a ninguém.

Teco deu seu palpite no dia em que o homem trouxe uma boneca com ele. Olhava pra boneca com muito carinho e suspirava. A posição no poste sempre a mesma. Só não cruzou os braços depois que passou a vir com a boneca. Teco afirmoou que ele era doido e estava confundindo Gina com alguma criança. Era preciso tomar cuidado e talvez até chamar a saúde mental. Mas Gina não deixou.

O gerente da lanchonete disse que iria chamar a polícia pois aquele homem poderia espantar os clientes. Mais uma vez Gina não deixou. Ele estava do outro lado da rua e ninguém sabia que ele ficava ali todos os dias.

Naquele dia, quando Tomy chegou, o homem olhou pra boneca e para Tomy com um jeito estranho. Parecida compará-lo com ela. Desencostou do poste e ameaçou atravessar a rua finalmente. Mas veio um onibus e os dois irmãos entraram rumo a seu destino.

Em casa, Tomy encheu Gina de perguntas e resolveu que no dia seguinte iria interpelá-lo para saber quem era e o que queria com Gina. Mas ela pediu tanto para que não fizesse isso. Deixasse o pobre homem ali. Não a incomodava em nada.

Mas Tomy não queria ouvir a irmã. Desde que a mãe morrera ha cinco anos , ele era seu protetor. Seu pai e irmão. Não iria permitir que ninguém machucasse sua irmãzinha. Gina só tinha dezenove anos e era muito ingênua ainda. Mas ele não era bobo e apesar de ser um ano mais novo, sabia que havia alguma coisa errada com o observador.

Discutiram muito a respeito e Gina começou a chorar com saudades da mãe. Tomy

era superprotetor demais. Pra matar a saudade da mãe, pegou um velho álbum de fotos. Tempos bons quando a mãe era viva e maldito carro que a atropelou.

O álbum estava se deteriorando e ela pensou triste no momento que não teria recordações da mãe. As fotos diversas a distrairam e o rosto da mãe aliviava sua vida dura.

Acordar as 5 horas da matina todos os dias pra ir pra lanchonete preparar as delícias que seriam servidas aos clientes não era fácil. Ser a ajudante da senhora Fostair era pior ainda. Andava cansada.

Quase no final das páginas do álbum notou que uma das fotos era mais volumosa e retirou com cuidado o plástico que a cobria para ver o que havia atrás dela. E qual não foi sua surpresa quando detrás da foto estava a foto de um belo e jovem rapaz moreno. Ela não o conhecia mas parecia-lhe familiar. Foi olhando a foto com cuidado e para sua surpresa ele era muito parecido com Tomy. Começou a gritar pelo irmão.

Tomy já havia se deitado quando começou a ouvir os gritos de Gina. Levantou se apressado e correu pro quarto dela. Lá estava Gina com a foto na mão, aos gritos, estendendo-a pra ele.

_Veja Tomy, é ele, é você! Meu Deus, quem é ele?

_Calma, Gina! Deixe-me ver!

_É igual a você!

_Parece um pouco. Quem será ele?

_Estava atrás da foto da mamãe.

_Deve ser algum parente.

_Você não entende, é ele!

_Como assim? Ele quem?

_O homem da outra calçada!

Não tinham pai e sabiam disso. A mãe sempre dissera que ele havia morrido quando ela estava grávida dele. Ja visitaram o túmulo do pai inúmeras vezes. Tinha fotos do pai no álbum, inclusive. Mas a semelhança entre o Tomy e aquele homem deixava dúvidas quanto a isto. Mas o homem era jovem apesar da tez cansada e sofrida.

Tomy ficou ali observando aquela foto e não conseguiu dizer nada. Imaginava um mar de coisas. Seria um tio, um irmão da mãe ou do pai? Seria um parente distante? Mas como ele parecia tanto com ele? Sempre questionara a mãe da razão pela qual seu pai não se parecia em nada com ele e nem com Gina. Seria esse estranho afinal, seu pai? Ou seria ele um maluco que achara Gina parecida com ele? No dia seguinte chegaria até o homem estranho e tiraria a limpo essa história de uma vez por todas. Mas por hora a noite seria longa e era melhor deitar pra tentar dormir, muito embora ele soubesse, que isso seria quase impossível.

A manhã estava com perfume de verde. A prefeitura havia podado os canteiros de grama perto da sua casa. Enquanto esperava o irmão para sairem rumo ao trabalho Gina observava ao redor. O hidrante de água vazava pequenas quantidades de água e um gato bebia devagar com linguadas ritmadas. Bob corria atrás de outro gato que se alojou num muro azul com uma mensagem religiosa. Gina nunca pensara naquela mensagem e não sei porque resolveu reler. A mensagem escrita em preto com sombreados dizia:

"Não julgueis para não serdes julgados". Essa era uma das poucas mensagens do poeta e filósofo Gentileza, que ainda não tinha sido coberta de tinta cinza. Talvez sobrasse pra que Gina tomasse pra si e ajudasse a decidir seu destino. Mas nunca tinha pensado nisto. Hoje porém ela estava com a alma cheia de pensamentos malucos e confusos. A mensagem do Gentileza veio pra lhe futucar.

Tomy deixou Gina no trabalho e partiu pro centro da cidade. Disse que voltaria antes do horário pra tentar falar com o homem quase estranho. Trabalhou o dia inteiro em desassossego. Ao final do dia pediu pra sair mais cedo da portaria do hotel. Depois de levar um pito do gerente conseguiu sair e pegou carona com o chefe imediato que ia pra sua parte da cidade. Quando chegou era cedo e o homem não havia chegado ainda. Esperou em vão. Ele não veio. Pela primeira vez não apareceu. Tomy sentou na calçada e esperou. Logo que anoiteceu, e antes que Gina viesse se juntar a ele, o guarda de trânsito que trabalhava ali perto veio ter com ele e entregou a ele uma carta. Para introduzir-la, contou-lhe a seguinte história:

Se estivesse esperando o rapaz que fica sempre do outro lado da rua, não adiantava. Ele não teria nada pra lhe contar. É mudo. Nasceu assim e foi dezprezado pela mãe e deixado num orfanato aos dois dias de nascido. Acredita que depois de algum médico lhe dar o diagnóstico de sua mudez. Tinha um defeito de nascença e não havia cura para seu defeito. Descobriu no hospital onde nasceu que tinha um irmão gêmeo. E veio tentar conseguir vê_lo. Consegui essas informações com ele pois sei falar a lingua dos sinais. Ele nunca aprendeu libras mas sabia ler os lábios e falava por gestos. A carta, quem escreveu pra ele foi a madre do orfanato, onde ele viveu até os dezoito anos. Ao sair de lá ela lhe contou sua história. Sempre voltava e ajudava a madre em pequenas tarefas e ela lhe dava alimento. Pediu pra entregar a carta a você e não a sua irmã. AH, sabia que são irmãos.

Depois de dizer essas palavras, o guarda voltou pro seu posto de onde sairia dali a alguns minutos pra voltar pra casa.

Tomy ficou muito assustado com a história que o guarda contou. Tinha nas mãos a resposta pra suas dúvidas sobre o rapaz. Se a carta era pra ele, então leria em particular. Guardou-a no bolso do casaco e disfarçou pois a irmã já chegava.

Em casa, Gina foi logo tomar seu banho. Como sabia que ela demorava-se demais no banho, Tomy foi pra seu quarto e abriu a carta. Num texto bem escrito em letra antiga e bem torneada, a madre disse em poucas palavras:

"Sete Céus, 20 de outubro de 2025.

Saudações,

Prezado senhor,

Pego na pena para escrever essas mal traçadas linhas e com elas lhe informar quem é o portador desta carta. Ele se chama Anísio e foi criado aqui no convento. Não oferece risco a ninguém pois tem a natureza calma. Foi deixado aqui com poucos dias de nascido. Logo descobrimos que ele é mudo e surdo de nascença. Cresceu muito sabido e não nos deu nenhum desgosto. Muito trabalhador e dedicado a atender as pessoas que lhe solicitam ajuda, tem sido de grande valia pra nós do convento das carmelitas. As vezes dorme aqui mas, na maioria das vezes, volta pra dormir numa casa que ele mesmo construiu atrás da oficina em que trabalha, mexendo com carros no bairro de Fátima. Anísio sempre nos indagou a respeito de seus pais mas nunca pudemos lhe revelar nada, pois a única coisa que sabíamos era que a mãe teve gêmeos e o deixou aqui ainda bebê . Ela havia sido abandonada pelo esposo e assim não conseguiria cuidar de gêmeos e de uma menina pequena. Prometemos cuidar bem do menino e ela sempre voltava pra saber notícias dele. Nunca se conformou por tê-lo deixado. Quando vinha vê-lo brincavam juntos e sorriam muito sem porém, revelar-lhe que era sua mãe. Mas ha uns cinco anos ela deixou de vir. Ele queria muito saber onde ela morava. As poucas informações que tínhamos, foram passadas a ele que investigou muito até chegar até vocês. Não lhe queiram mal. Quer apenas se aproximar e conhecer sua família. Caso resolva se aprofundar e conhecê-lo melhor, as portas desta instituição estarão abertas.

Abraço afetuoso

Madre superiora Regina de Alféres.

Tomy chorava copiosamente ao término da leitura da carta. Sentia que precisava encontrar seu irmão urgente. Sentiu que sua ausência não parecia coisa boa. Sempre sentira uma pontada no coração como se lhe faltasse um pedaço. Agora sabia o que lhe faltava. E não podia deixar de ir ao encontro dele.

Saiu antes que Gina saisse do banho. Seguiu para o endereço de uma oficina mecânica que existia logo ali na esquina. Precisava ir sem demora. O semáforo não ajudou, demorando-se tanto. Um cachorro atrevido quase o atropelou correndo atrás de um gato.(ainda matava aquele cão inútil, antes que ele o derrubasse. Todo dia se assus- tava com ele. A dona dele que se ferrasse, aquela velha intrometida que ao invés de cuidar do cachorro, ficava a xeretar a vida alheia. Correu e logo chegou ao local. Havia realmente uma casa ali atrás. A lâmpada apagada denunciava algo estranho. A porta estava aberta e ele entrou.

Havia poucos móveis no interiior do imóvel simples e rústico. Uma cama num canto e um fogão de lenha com algumas panelas limpas em cima. A porta dos fundos também estava aberta. Ele não estava ali. Era bom ir até o convento mas era tarde e ele teria que deixar pra ir no outro dia. Voltou pra casa passou na padaria e levou alguns pães pra disfarçar.

Gina saíra do banho e perguntou desconfiada onde ele estava. Mostrou-lhe os pães e não disse mais nada. Foi para o banho e depois dormir visto que os dois comiam sempre no trabalho e nunca cozinhavam em casa. No dia seguinte eles se encontrariam.

O dia amanheceu chuvoso. Aquela chuvinha fina de doer os ossos. Gina dormiria até mais trarde. Era domingo e não ia trabalhar. Era seu dia de folga. Tomy partiu pro convento e para não se atrazar pediu um carro de aluguel. Chegaram logo pois havia pouco trânsito devido ao final de semana de chuva. No convento, encontrou as portas abertas. Ouviu reza na capela e foi entrando. As freiras rezavam e choravam. No centro da capela um ataúde aberto e dentro dele uma tez morena denunciava aquilo que Tomy não queria ver. Tantos talvez lhe passaram pela cabeça. Se não tivessem desconfiado dele, se, se e mais outros se. Talvez ele estivesse ali conversando na sua língua dos sinais com ele. Aproximou-se do corpo e percebeu as marcas em seu pescosso. Foi muito triste e doloroso. Gritou um "porquê?" Bem alto e ajoelhou-se ao lado do ataúde.

A Madre levantou-se e veio ter com ele. Os olhos molhados, entregou-lhe um pequeno bilhete escrito por ele mesmo quase ilegível:

_Discupa eu. Num quiz asustá oceis.

Adeniso.

Ao ler as palavras Tomy deixou sair um grunhido da garganta:

_Nãoooooo! Porque você fez isso? Eu queria tanto te conhecer! _ E desmaiou.

Quando acordou estava num catre do convento. Ao lado da pequena cama de lona havia uma foto de Gina sentada na calçada em frente a lanchonete. Estava suja e amassada como se fosse acarinhada todos os dias. Junto com ela havia um lenço de seda florado azul com um cheiro de jasmin misturado ao de sujeira. Conhecia esse cheiro ao fundo. Era o cheiro de sua mãe. Ela adorava jasmin e as vezes, por falta de dinheiro para comprar perfumes, lavava as roupas com desinfetante de jasmin pra ficarem cheirosas. Aquele lenço também lhe era familiar.

A madre veio encontrar com ele, e a freira que ali estava, saiu e os deixou a sós.

Senhor, desculpe o mal jeito. Aqui não temos conforto. Sei que o senhor deve estar muito sentido mas tem que decidir onde ficará seu irmão. Este era seu catre. Aí tem tudo o que ele usava aqui. Se quiser levar pode levar.

_Muito agradecido Madre. Sei que a senhora fez o que pode. Como aconteceu?

_Encontramos ele de manhã pendurado no pé de jaca que ele plantou no pátio do convento. Tinha acabado de fazer. Ainda ouvi seus últimos suspiros. Era como um filho pra todas nós. Na sua mão estava esse pequeno bilhete que lhe entreguei. Não fique tão culpado. Não tinha como saber. Adenisio era muito medroso. Tinha medo de vocês o desprezarem por ser como era. Deus o perdoará por esse pecado. Era inocente como uma criança.

Tomy tinha que ir, mas antes passaria no cemitério pra resolver as burocracias para que ele ficasse junto a mãe. Saiu do convento arrasado. Tinha que buscar Gina pra contar tudo a ela e juntos iriam ao funeral de seu irmão mais tarde. Seria o dia mais triste da sua vida.

Porque as pessoas não são como crianças que confiam nas pessoas antes de mais nada. Se assim fossem, seriam amigos agora e ele ainda estaria vivo. Agora só lhe cabia esperar que Deus fosse misericordioso com ele.

FIM

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 19/08/2019
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