A Sociedade da Lança - Parte 13: Presente espiritual

Gurin despertou e estava num ambiente totalmente escuro. Apesar de sua boa visão nesse tipo de ambiente, aquela escuridão era estranha, pois não enxergava um palmo a frente dos olhos. Sentia o chão e tentava inutilmente, esticando as mãos e tateando o ar, tocar em algum objeto ou alguma parede mas sem sucesso algum. Para compensar a falta de visão, aguçou ainda mais a audição.

Que lugar era aquele? Que sensação era aquela?

Mesmo naquele estranho local, Gurin percebia uma leveza, algo estranhamente acolhedor. Não havia dor nem pensamentos conflituosos, apenas uma sensação de paz e tranquilidade. Mas havia algo mais, como se alguma coisa, algum pensamento ou lembrança, quisesse brotar da memória.

Mas por que não lembrava? Esse pensamento surgiu e sumiu rapidamente, engolido por aquela sensação reconfortante de estar…..em casa. Era isso, era essa a imagem. E de repente o ambiente foi invadido por ruídos e aromas familiares.

Com alegria crescente no coração, Gurin ouvia os tambores tocarem e o cheiro de carne fresca assando ao fogo, carne de caça. Procurou desesperadamente de onde vinha essa percepção tão familiar, até que no meio da escuridão avistou um pequeno ponto de luz longínquo. Saiu correndo com uma imagem na mente, torcendo para que tudo fosse verdade. Lágrimas encheram seus olhos.

O ponto de luz foi crescendo até se transformar numa passagem, uma porta para uma outra realidade, algo que Gurin conhecia muito bem. O que viu trouxe lembranças marcantes de uma época feliz, onde não havia dor, onde não se sentia perdido. Tinha voltado para casa.

“Irmãos?”, pensou. Por um momento se perguntou se aquilo era possível, se aquela imagem era real. Seu coração dizia que sim.

Gurin, ao passar pela porta de luz, se viu no alto de uma trilha de pedra, daquelas que costumava percorrer nas montanhas durante toda a vida. Logo abaixo, numa base na rocha, no meio das elevações montanhosas, enxergava um conjunto de cabanas com teto feito de pele de cabra. Algumas delas exalavam, de pequenas chaminés, filetes de fumaça branca. E no meio das rústicas construções um grupo de goblins estava reunido em volta de uma fogueira. Estranhou um pouco a cena, já que os mais velhos costumavam realizar as reuniões somente a noite, para contar as belas histórias do passado, mas tratou de esquecer aquilo. Seu coração estava em festa. Lágrimas rolavam em sua face.

Estava em casa. Finalmente havia reencontrado sua querida aldeia, seus irmãos e irmãs de tribo.

Desceu a trilha de pedra correndo. Queria falar da alegria de estar entre seus iguais, compartilhar novamente, como sempre fazia, das experiências ao redor da fogueira, falar da saudade que sentia de todos e todas.

Quando estava a poucos metros de chegar na aldeia, viu o velho xamã levantar a cabeça, sorrir e vir em sua direção. Nesta hora todos e todas perceberam a presença de Gurin e ficaram observando de longe, sem sair do lugar, permanecendo sentados.

Ao chegar mais perto, Gurin reconheceu os rostos, dos quais tinha se separado naquela noite sombria. Que maravilha saber que todos estavam bem. Mas a um passo da aldeia, algo estranho aconteceu e ele se sentiu travado em seus movimentos. Seu corpo não obedecia os comandos para avançar, não conseguia atravessar para a área interna da aldeia. Uma parede invisível o impedia.

“Mais Velho, por que não consigo me mexer?” disse Gurin. O velho xamã também ficou parado a uma certa distância. Ao encará-lo, Gurin percebeu algo diferente em seu semblante. Era o mesmo xamã que conhecia, mas seu rosto estava mais jovial, seu olhar mais profundo.

“Você ainda não pode estar conosco, Pequeno Caçador. Os espíritos do vento me sussurraram que sua jornada ainda é longa, e que fará a maior de todas as caças”

“Mas por tanto tempo quis estar com minha tribo, com meus irmãos de caça e de pesca. O mundo além das montanhas é muito cruel, Mais Velho, cheio de dor e desprezo. Por que não me deixam passar?”

“Eu sei, minha criança, que o mundo sempre foi muito difícil para nossa raça. Mas os Grandes Senhores do Céu Infinito sabem para onde levam todos os seus filhos e filhas. Como disse, a você foi dada a oportunidade de realizar a maior de todas as caças. Portanto, não perca a esperança”

“Mas aqui é tão bom, tem tanta paz, Mais Velho. Não entendo porque não posso estar com minha tribo”

“Você continua no mundo e nós já saímos dele. Não há motivo para sofrimentos, pois um dia estaremos todos juntos ao lado dos espíritos e todas as tribos se unirão. Mas até lá sua jornada no mundo continua e, juntos aos seus novos irmãos e irmãs, farão muito, inclusive para nossa raça. No final tudo será diferente. E esse nosso contato foi para lembrá-lo disso e te fortalecer. Agora precisa voltar”

“Não, Mais Velho, por favor não vá. Não conseguirei sem vocês” Gurin suplicava chorando.

“A força está dentro de você, Pequeno Caçador. Mas a ajuda nunca lhe faltará. E esse é o principal motivo pelo qual estamos aqui. Passaremos nossa força para você, para que a leve consigo por todo o tempo que estiver no mundo”

Todos os goblins que estavam ao redor da fogueira se levantaram e vieram na direção do xamã. Gurin reconheceu todos eles, seus irmãos e irmãs de tribo. Estavam sorridentes, seus semblantes com uma indescritível leveza.

“Agora ajoelhe-se e receba o presente que lhe foi concedido pelos espíritos do vento e da terra”

Nesta hora Gurin foi cercado pela tribo e todos esticaram os braços em sua direção. Cada um deles e delas emitiu uma intensa luz azulada da palma das mãos, encobrindo Gurin numa grande esfera iluminada. O goblin sentiu uma grande força percorrer cada parte do seu ser, aquecendo, fortalecendo...curando. Não conseguia mais ver os membros da tribo.

“O que está acontecendo?” perguntou

“Esse é o seu presente. Você será o primeiro a se beneficiar. Mas é seu para dar a quem quiser. E será bom se o fizer. Agora, adeus Pequeno Caçador. Lembre-se: estaremos sempre com você. A distância não desfez nossa tribo”

Logo após as palavras do xamã, Gurin sentiu um forte solavanco, como se uma imensa força o arrastasse para longe da aldeia, e tudo foi muito rápido. Não só a aldeia, mas as próprias montanhas se afastarem depressa, até que se viu caindo entre algumas árvores.

Aiori se esforçava para apoiar Kiha. A kitsune estava ferida mas conseguia caminhar. As duas andavam aflitas na direção do corpo de Gurin, que estava caído em meio os detritos de terra oriundos da técnica do samurai na luta anterior. Assim que chegou ao seu lado, Kiha tratou de checar os batimentos do coração encostando o ouvido no peito do amigo. Os olhos da kitsune se encheram de lágrimas.

- Não escuto nada, Aiori. Ele se foi – disse Kiha.

- Não...não pode ser – a garota também começou a chorar – Pobre Gurin.

Irritada, Kiha se afastou para gritar aos ventos. Um grito de frustração. Aiori foi até ela para acalmá-la.

- Se eu não tivesse falhado como guerreira, ele estaria vivo.

- Você não falhou, lutou bravamente. Lutamos bravamente – Aiori lembrava da cena com a espada. Ainda não sabia como tinha reunido coragem para fazer o que fez.

Enquanto ambas se consolavam, acontecia algo com Gurin. Seu corpo foi envolto numa aura azulada cada vez mais intensa. Chamadas a atenção pelo clarão da luz, Kiha e Aiori olharam para trás surpresas.

O corpo do goblin flutuava em meio a rajadas de vento que balançavam as árvores próximas e levantavam galhos, folhas e terra no ar. Até que de repente toda a luz que o cobria pareceu entrar em seu corpo e logo em depois um estampido, seguido de um forte deslocamento de vento, afastou tudo em volta. Kiha e Aiori se protegeram cobrindo os olhos da forte ventania e de tudo que ela arrastava.

O corpo de Gurin desceu suavemente no chão e ficou de pé. Quando abriu os olhos, uma intensa luz azul os encobria, mas logo em seguida se dissipou.

- Gurin? - Kiha e Aiori falaram ao mesmo tempo.

- Aiori? Kiha? - disse Gurin e depois olhou para si mesmo. Não tinha mais nenhuma escoriação ou ferimento. Pelo contrário, nunca havia se sentido tão bem. - Então estou de volta?

- Siimmmmm – Kiha respondeu alegre, correndo para abraçá-lo.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 31/07/2019
Código do texto: T6708736
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