A Sociedade da Lança - Parte 11: Empatia de almas

Aiori abriu os olhos e não reconheceu onde estava. O lugar era escuro, apenas iluminado por uma leve luz amarelada e bruxuleante. O ar estava frio e ela mexe a cabeça e tenta se levantar, mas seu corpo responde automaticamente com dores por toda parte. Parecia que tinha sido atropelada por uma carruagem.

“Mas espere, carruagem?” pensou, e logo em seguida as lembranças vieram à tona.

- Você está bem? - perguntou Gurin, que estava sentado ao lado de uma fogueira.

Aiori percebeu que estava numa espécie de caverna, e quando olhou na direção de Gurin tomou um susto com aquela pequena criatura de pele verde iluminada pela luz do fogo, projetando sua sombra na parede logo atrás.

- Oh, pelos Kami….é um bakemono – a garota se esforçou para se arrastar para longe de Gurin.

- Não, por favor, não tenha medo – Gurin saiu na direção de Aiori enquanto gesticulava com as mãos tentando transmitir calma – Não vou te machucar.

- Não se aproxime – gritou Aiori. Se afastou ainda mais até sentir suas costas tocarem a parede. Suas articulações doíam bastante, e por toda parte sentia sua pele dolorida pelas escoriações.

- Tudo bem, tudo bem, não vou me aproximar. Por favor, acalme-se. Nós salvamos você hoje mais cedo. Estava numa situação bem complicada, presa nos destroços de uma carruagem em alta velocidade. Graças aos espíritos protetores, conseguimos chegar a tempo de evitar o pior.

- Nós? Tem mais alguém com você?

- Sim, uma amiga saiu em busca de algo para comer e eu fiquei encarregado de preparar a fogueira. Deve estar com fome não é? - Gurin tentava transmitir o máximo de simpatia possível.

Diante do silêncio de Aiori, continuou a puxar conversa.

- Ah, desculpe, esqueci de me apresentar. Meu nome é Gurin, e o seu?

- Ah…é...A..Aiori – a garota não acreditava que estava conversando com um bakemono. Ele parecia realmente não ser agressivo nem querer lhe fazer mal. Mesmo assim era melhor manter uma distância segura, pensou.

- Pode dizer o que aconteceu? - perguntou o goblin.

Aiori ainda sentia frio, apesar da fogueira acesa, e abraçou as pernas para se aquecer melhor. Pensar no ocorrido trouxe angústia ao seu coração. O que teria acontecido com todos da caravana? A imagem dos anciões caindo para a morte na estrada não saía da sua mente.

- Não sei muito bem o que aconteceu. Minha caravana foi atacada por bandidos. Houve muito barulho de bombas e uma delas explodiu perto da minha carruagem. Os anciões que me acompanhavam morreram.

Aiori resolveu falar. Precisava falar, desabafar sobre o ocorrido. Mesmo atenta aos movimentos do bakemono, o olhar dele lhe transmitia confiança. Ao contrário do que ouvira nas histórias, aquela pequena criatura não queria te fazer mal, não parecia nenhum ser selvagem e agressivo. Pelo contrário, estava tentando o tempo todo tranquilizá-la.

- Sinto muito. Então vocês foram emboscados.

- Havia uma escolta de samurais, mas não sei o que ocorreu com eles. Só lembro dos cavalos dispararem e correrem por muito tempo. A carruagem foi destruída e eu vi Noritama-sama e Sanchi-sama morrerem na minha frente. Depois disso, não lembro mais de nada.

- Quando encontramos você, estava desmaiada, presa nos destroços da carruagem. Os cavalos iam em direção a um barranco. Se não fosse a velocidade de Kiha, não teríamos chegado a tempo de salvá-la.

- Kiha? Quem é Kiha?

- Eu sou Kiha.

Aiori e Gurin foram surpreendidos quando Kiha entrou na pequena caverna em sua forma ancestral, carregando na boca duas grandes lebres. O goblin suspirou de alívio por ver a amiga de volta e a garota ficou tensa quando a grande raposa branca se aproximou da fogueira e colocou as lebres delicadamente no chão. Logo depois sentou sobre as patas traseiras e chacoalhou o corpo, espalhando gotículas de água no ar.

- Caçar essas corajosas lebres na chuva é ainda mais difícil do que pensei – enquanto falava, Kiha ia voltando a sua forma normal – Quase que perdia o cheiro. Eu as honro pelo sacrifício.

- Uma kitsune? - perguntou Aiori, ainda surpresa.

- Eu sei que você não deve ter visto muitas de nós por aí, afinal não costumamos sair do nosso lar. Mas eu tive meus motivos – respondeu Kiha, olhando para Gurin – E você, como se chama?

- Me chamo Aiori, Momoke Aiori.

- Você é do clã Momoke? - durante muito tempo em sua vida, Kiha sempre ouviu falar das antigas desavenças entre os Momoke e os Kitsune, o que gerou até uma guerra no passado. O nome Momoke nunca foi bem-visto no Bosque das Cerejeiras.

- Quando te encontramos, estava bem distante das terras do seu clã – continuou Kiha, encarando a garota nos olhos.

- Eu….eu estava indo ser apresentada ao meu futuro marido, no território do clã Jihu – disse Aiori. Seu coração sempre pesava ao lembrar do destino forçado, uma punição pelo amor proibido. Inevitável não pensar em Haizo nesses momentos. Mas por uma estranha manobra, também do destino, o ataque dos bandidos tinha interrompido sua viagem, o encontro com quem não amava. Seria uma mensagem dos Kami?

- Não me parece contente com esse casamento – disse Kiha – Quer nos falar alguma coisa?

As duas se entreolharam e Aiori resolveu contar toda a história recente de sua vida

.

Falou do romance com seu sensei, que posteriormente se transformou em seu alvo de amor, o samurai Haizo. Falou do desejo de se tornar uma samurai, algo proibido para as mulheres em seu clã, e da descoberta do seu romance. E com lágrimas na face falou da punição de morte de Haizo e do casamento forçado em outra terra. Não havia volta na decisão que seu pai tomou, o líder do clã. Entre os Momoke as mulheres obedecem o que os líderes e anciões homens determinam. Estava cansada de tudo aquilo, mas não sabia como se desvencilhar dos grilhões de uma tradição sem sentido, não tinha forças para isso.

Menosprezada por ser uma mulher, forçada a seguir antigas e inexplicáveis tradições, impedida de seguir seu próprio caminho, considerada incapaz de demonstrar suas capacidades. Ao ouvir a história de Aiori, Kiha percebeu o quanto suas vidas tinham pontos de conexão, dores parecidas. Assim como ela, aquela garota humana só queria mostrar que era capaz.

Tomados por aquele momento de abertura de coração, embalados pela chama acolhedora da fogueira e da chuva lá fora, Kiha e Gurin, num movimento de empatia, também contaram sobre suas vidas. Queriam apaziguar a tristeza de Aiori, ao mesmo tempo que compartilhavam as suas.

Aiori tinha perdido a possibilidade de ter uma vida feliz quando Haizo morreu e não desejava de forma nenhuma casar-se com outro homem por imposição do pai. As histórias de Gurin e Kiha a fizeram enxergar que sempre há uma saída, mesmo que a decisão seja difícil, mesmo que o momento seja curto, mas ele pode ser vivido, deve ser vivido.

E Aiori resolveu agarrar aquele momento. Costumava escutar histórias de sua avó dizendo que o destino traçado pelos Kami para uma pessoa não é apenas um fio, mas vários entrelaçados. Ou seja, sempre existem possibilidades, sempre existem escolhas. E naquela escura caverna, com os estranhos novos amigos que o destino lhe arranjou, tomou uma decisão. Não sabia de que forma poderia ajudá-los em sua missão, ou se seria um fardo a pesar em suas costas, mas resolveu partir com eles.

Os três adormeceram ao som da chuva.

Kiha foi a primeira a despertar e tratou de logo acordar os outros dois. Precisavam partir o quanto antes e recomeçar a jornada. Ainda faltava muito para chegar às grandes montanhas ao sul.

Enquanto Kiha terminava de arrumar algumas coisas e desfazer os restos da fogueira, Gurin e Aiori saíram da caverna e avistaram um dia nublado com sol fraco. Muito provavelmente choveria de novo durante o dia.

- É, parece que estas nuvens pesadas vão nos acompanhar o dia inteiro hoje – Gurin olhava para o céu enquanto esticava os braços para se espreguiçar.

- Não quero ser um fardo para vocês. Mas preciso de um tempo para pensar em minha vida e decidir o que fazer.

- Não se preocupe, Aiori, eu e Kiha podemos proteg…….

De repente os sentidos do goblin percebem algo em volta. Seus olhos se arregalam quando percebe um vulto aparecer ao seu lado em grande velocidade. Sem ter tempo algum de reação, Gurin sente alguém agarrando-o pelo pescoço. Tentou desesperadamente agarrar um de seus punhais na cintura mas foi inútil.

- Afaste-se da princesa, monstro – disse o samurai. O mesmo segurava sua katana e já fazia o movimento mortal para empalar o goblin com a lâmina. Seu fim seria rápido.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 27/07/2019
Reeditado em 27/07/2019
Código do texto: T6705967
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