A Sociedade da Lança - Parte 08: Partida

“Eu sabia, sabia que tinha razão”

Kiha pensava contente ao ver a flecha disparada por Gurin atingir o alvo na árvore a metros de distância. Tá certo que era o quinto acerto de dez tentativas, mas acertar metade dos disparos na primeira vez que usava o arco depois de tanto tempo era um sinal de que o goblin havia encontrado a sua arma perfeita, a que lhe daria a chance de mostrar sua verdadeira destreza.

Tinha valido a pena se arriscar e entrar no salão de armas do velho Kurama e pegar emprestado, para sempre talvez, um dos arcos de sua coleção. O ancião certamente não daria falta de um simples arco curto.

“Nossa, não imaginava que ainda tinha boa mira”

Gurin também estava contente com o resultado. Por um tempo ficou olhando as flechas espetadas no tronco. Kiha tinha razão, combate à distância talvez fosse seu ponto forte. Esperava que quando a amiga precisasse dele, sua perícia não falhasse.

- O que houve? - Kiha havia notado um semblante de desânimo ou tristeza no goblin, não sabia ao certo.

- Olha, Kiha, eu agradeço tudo que vem fazendo por mim estes dias, mas por favor, não se sinta obrigada a fazer mais. Não quero que se arrisque por mim, essa jornada é minha, sinto que preciso fazê-la.

- Está enganado se acha que faço isso somente por você. Também sinto que tenho uma jornada a fazer, e se não der esse passo agora, talvez nunca faça. Acho que estamos fadados a fazer juntos essa jornada, não é?

- Sim, acho que sim.

- Acho que mais algum pouco de treino e estará bem melhor no arco. E lembre-se: partiremos na próxima noite sem lua.

Os dois se encararam e acenaram positivamente com as cabeças, confirmando que não desistiriam da empreitada.

Nos dois dias seguintes Gurin se dedicou mais do que nunca a aprimorar seu manejo no arco. Para ter maior tempo de treino, acordou mais cedo para fazer suas obrigações na aldeia, e também para não despertar muita suspeita nas suas ausências, e antes de terminar a tarde já estava no esconderijo do bosque disparando flechas.

E passou praticamente a noite inteira desses dois dias antes da partida se dedicando em aprimorar suas habilidades como arqueiro, só parando para comer alguma coisa. Tendo apenas a luz da lua para iluminar o ambiente, o desafio de acertar o alvo era maior, mas não totalmente um obstáculo já que os goblins possuem boa visão no escuro.

E finalmente no terceiro dia, eles estavam prontos para partir.

Ambos suspiraram e saíram de suas casas. Kiha, com olhos e ouvidos bem atentos, saiu por uma passagem no telhado do seu quarto. Tinha vestido seu melhor manto, como se colocasse uma armadura para um combate, e transportava consigo uma grande mochila nas costas.

Do outro lado da aldeia, Gurin saía de sua pequena cabana, munido de seus dois punhais, guardados nas bainhas, e seu precioso arco, carregando nas costas uma aljava e algumas flechas. O ponto de encontro seria numa das trilhas que saem da aldeia kitsune.

A noite estava fria e a lua não era vista no céu. Mas antes de alcançarem de vez a saída do bosque, teriam um último obstáculo. Espalhados pelo Bosque das Cerejeiras existiam muitas duplas ou trios de guerreiros encarregados da vigilância de perímetro. Esses grupos eram os olhos e ouvidos da aldeia para qualquer intruso que ousasse entrar no território do povo-raposa.

Kiha tinha decorado alguns pontos onde geralmente esses vigilantes percorriam e procurou evitá-los. E caso fosse vista em algum momento, planejou algo que a princípio parecia estúpido por ser simples demais. Durante toda a travessia do bosque até a fronteira com as terras de fora, ela carregou Gurin dentro da mochila. Apesar do peso extra, ela suportou bravamente a travessia.

Caso fosse descoberta, teria uma desculpa em mente.

Mais alguns passos e o que imaginava realmente aconteceu. Alguém a tinha visto e a seguido, mas para sua surpresa era um kitsune que não imaginava ver ali. Ao ouvir aquela voz, arregalou os olhos e olhou para trás.

- Kiha? - chamou a voz.

- Maku? O que está fazendo aqui? - de todos que pudessem aparecer, não imaginava que logo seu irmão estaria ali.

- É que a vi sair de casa rápido e pensei que estivesse com algum problema – a voz de Maku trazia um tom de preocupação. O mesmo estava tenso, como se estivesse pronto para agir a qualquer momento.

- Não há nada para se preocupar, irmão. Não estava conseguindo dormir e resolvi dar uma volta no bosque para acalmar a mente. Ainda não esqueci o que ouvi do nosso pai naquele dia.

- Eu sei, irmã, eu estava lá. Ele agiu mal e nossa mãe já tratou desse assunto. Não precisa tomar nenhuma atitude precipitada em relação a isso. Se não estiver com sono, eu acompanho você a noite toda se necessário. Mas prefiro que façamos isso em casa, não aqui ao relento. Venha comigo, irmã.

“Ela já sabe o que pretendo fazer. Não vai me deixar seguir” pensou Kiha. Dentro da mochila, Gurin escutava tudo e permanecia imóvel.

- Não posso voltar, Maku – Kiha resolveu falar a verdade que lhe veio ao coração – Tenho uma missão a cumprir, algo que prometi a um amigo.

- Você está falando do bakemono….melhor dizendo, do goblin. Onde ele está? Foi embora da aldeia?

- Sim, e preferiu enfrentar o destino lá fora para salvar os seus irmãos do que ficar aqui sendo alvo de preconceitos e desprezo. Também me sinto assim em minha própria casa. Por isso mesmo resolvi ajudá-lo, pois eu sei como ele se sente.

Kiha sentiu seus olhos marejarem e lutou para que as lágrimas não caíssem. Amava os irmãos, mas por Maku sempre sentiu uma maior afinidade. Percebeu que ele também tinha lágrimas nos olhos.

- Eu sinto muito pelo que vem passando na relação com nosso pai, sinto mesmo. E de minha parte prometo ser mais ativo em sua defesa a partir de agora. Mas, por favor, volte comigo, não me force a levá-la à força – lágrimas romperam em sua face.

- Desculpe, meu irmão, mas já decidi. Se quiser pode levar minhas coisas de volta – Kiha resolveu tentar uma última cartada e jogou a mochila, que caiu bem ao lado do irmão – Mas aviso, cuidado que pode sair um sapo pulando daí – disse, abrindo um sorriso.

- Ora, não sou mais criança, Kiha. Não tenho mais medo de…..

A fala de Maku foi interrompida quando ele percebeu pela visão periférica que a mochila se abriu e saiu um pequeno vulto de dentro em sua direção. Virou-se com as garras preparadas para o combate.

Kiha sabia que mesmo jovem, Maku já era um guerreiro mortal. Se aquelas garras afiadas atingissem Gurin, os ferimentos seriam bem sérios. Teria que agir o mais rápido que pudesse. E assim o fez, saltando na direção do irmão.

Gurin, seguindo seus extintos, deu um salto para fora da mochila enquanto ao mesmo tempo tentava sacar seus punhais da cintura. Antes que pudesse esboçar o mínimo movimento de ataque, foi surpreendido quando a mão de Maku o agarrou pelo pescoço, cravando as garras e apertando, lhe tirando todo o ar. Em pânico, imaginando que morreria ali, sem ar, viu quando um vulto branco se aproximou por trás do guerreiro kitsune, golpeando-o com força na nuca.

O corpo de Maku caiu inerte no chão, desmaiado. Gurin rolou para o lado quando se desvencilhou da mão do kitsune. Enquanto recuperava o ar, sentia sua garganta doer intensamente. Colocou a mão no local e viu que estava sangrando.

- Me desculpe, Maku. Talvez você tenha razão e isso seja uma loucura, mas sinto que não posso voltar atrás – Kiha cochichava as palavras e logo em seguida deu um beijo na testa do irmão.

- Você está bem? - perguntou Kiha, virando para Gurin.

- S..sim. O..obrigado por me s..salvar – Gurin tossia a cada palavra dita – M..mais um pouco e ele ia me matar.

- Provavelmente sim. Maku é mais rápido e forte do que eu. Se não fosse sua distração, não o teria surpreendido. Agora vamos sair daqui. Ele não ficará desacordado por muito tempo.

- Sim, vamos – Gurin arrumou a aljava nas costas e pegou o arco.

- Ainda bem que entendeu aquela deixa do sapo – disse Kiha.

- Verdade, ainda bem mesmo, pois não sou muito veloz nos pensamentos.

- Isso mostra que estamos afinando nosso raciocínio. Sensei Ugama diz que isso é ótimo para as estratégias de qualquer equipe.

- Que bom – falou Gurin – Então acho que começamos bem nossa equipe de dois.

E assim, Kiha e Gurin retomaram a trilha e saíram do Bosque das Cerejeiras rumo a uma temerária e incerta missão de resgate.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 21/07/2019
Reeditado em 21/07/2019
Código do texto: T6701164
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