A Sociedade da Lança - Parte 04: Um nome para ser chamado
Despertado por um pesadelo de perseguição, onde se via sendo capturado e levado para a escuridão de uma mina sem fim, o goblin abriu os olhos e olhou em volta. Estava deitado, envolto num cobertor quente e macio. O ambiente cheirava a ervas aromáticas. Um incenso queimava lentamente em cima de uma pequena mesa redonda num canto.
O lugar era um pequeno quarto com paredes e assoalho de madeira. Ao lado da esteira em que estava deitado havia uma bacia com água e alguns panos úmidos manchados de vermelho. Vermelho do seu sangue, notou.
Assim que viu os panos, sentou-se e tratou de averiguar melhor sua condição. Estava com o corpo todo dolorido, mas era uma dor suportável. Sentia seu rosto um pouco inchado e em suas costas haviam sido aplicados curativos. Também percebeu que estava vestido com uma roupa nova, bem diferente dos trapos imundos que usava.
Onde estava? Quem teria feito isso tudo por ele? Pensou. De repente sua mente foi inundada pelas lembranças da perseguição dos humanos no bosque e do surgimento da criatura de pelos brancos como a neve. Sua última memória foi de vê-la lutando com os guerreiros bravamente.
Então se estava ali, são e salvo, significava que a criatura tinha derrotado os humanos. Onde estaria agora? Precisava agradecer por ter salvo sua vida, uma dívida que jamais teria como pagar.
Assim que teve a intenção de levantar, a porta do quarto abriu e duas criaturas entraram. O goblin ficou tenso e puxou o cobertor para junto de si como se fosse uma espécie de escudo protetor.
As criaturas eram da mesma espécie da que tinha visto no bosque, só que mais altas e de pelo alaranjado. Vestiam mantos coloridos e uma delas usava um grande e belo chapéu de palha. Mas o que chamava mais a atenção eram suas caudas. Tinham três delas em vez de uma. Uma visão realmente estranha para o goblin.
- Não tenha medo, pequenino, está seguro na aldeia do povo-raposa, sob a proteção dos kitsune – disse a que usava chapéu.
- E..eu não estou preso? - depois de muito tempo, o goblin se sentiu confiante para falar.
- Preso? Não, de forma nenhuma. Só está aqui porque precisou de cuidados especiais por causa de seus ferimentos. Assim que se sentir melhor, é livre para partir de volta para casa.
- N..não tenho mais casa – o goblin baixou a cabeça entristecido.
- Então esse é o motivo de estar ferido e tão distante do seu lar no sul.
- Conhece meu lar?
- As únicas tribos goblins que se tem notícia vivem ao sul nos escudos rochosos. Então sim, conheço de onde você vem.
- Mas não tenho mais casa. Os guerreiros de espada chegaram na luz da lua e queimaram, mataram e levaram o restante para a escuridão das minas. E numa noite em que a terra desceu da montanha, eu consegui fugir. Fui perseguido e ferido, mas um guerreiro-raposa me salvou.
- Na verdade uma guerreira – disse o kitsune – E viemos aqui para levá-lo até ela.
O encontro entre o goblin e a kitsune se deu na enfermaria da aldeia, uma bela estrutura de madeira com grandes janelões que deixavam a luz do sol e a brisa suave entrar. O ar do local também estava impregnado de um aroma de ervas.
O goblin ficou surpreso ao ver o estado da guerreira-raposa, com um grande curativo no ombro esquerdo e escoriações no rosto. A mesma estava em pé em frente a um dos janelões, olhando a calmante paisagem lá fora.
De fato a aldeia kitsune era o lugar mais lindo que o goblin já tinha visto na vida. Lindas cerejeiras de folhas rosadas tomavam conta da paisagem, balançando suavemente ao sabor do vento. A harmonia entre as construções de madeira e a natureza ao redor era de impressionar.
- Tenho uma dívida de vida com você, nobre guerreira. Serei sempre grato – o goblin curvou-se ao dizer as palavras.
- Por favor, levante-se. Não fui eu que salvei você. Na verdade nós dois fomos salvos. Se não fosse a chegada de uma patrulha que estava próxima do local, estaríamos mortos.
- É…...mesmo assim, pelo pouco que lembro, a vi lutar bravamente. É uma grande guerreira.
- Não preciso dos seus elogios. Eu sei exatamente sobre minhas capacidades.
- Peço perdão – o goblin se curvou ainda mais.
- Deixa pra lá, tudo bem. O importante é que estamos vivos.
- Sim, verdade.
- Como se chama? - perguntou a kitsune.
- Como assim? Eu sou um goblin.
- Eu sei o que você é. Mas não tem um nome? Algo pelo qual é chamado?
- Ah..nós éramos chamados de tribo da caverna uivante. Mas agora não existimos mais, só eu escapei.
A kitsune ficou em silêncio, olhando para o pequeno goblin curvado à sua frente. Neste momento tinha aprendido um pouco mais sobre esse povo recluso das montanhas. Eles eram seres essencialmente tribais, não se viam como indivíduos, apenas como um grupo. A perda de sua tribo deve ter deixado marcas profundas. A kitsune sentiu seu coração mais próximo daquela criatura.
- Eu me chamo Kiha
- Senhora Kiha, sim.
- Ora, sou apenas uma aprendiz de guardiã. Me chame apenas de Kiha, combinado? - a kitsune abriu um sorriso e estendeu a mão para cumprimentar o goblin. Ele ergueu o rosto e ficou sem entender o que ela queria.
- Vamos, aperte minha mão, não mordo. É assim que selamos acordos – Kiha continuava sorridente.
- Tá certo – o goblin apertou a mão de Kiha e pela primeira vez, desde que foi capturado, voltou a sorrir.
Logo depois os dois novos amigos foram levados à presença do líder da aldeia.
Tamanuki era o trigésimo Rida, ou grande líder, na história dos kitsune desde a fundação do Bosque das Cerejeiras, lar ancestral do povo-raposa. Descendente da poderosa e honorável Sakusen-sama, a primeira líder, Tamanuki governa com sabedoria e coragem, sendo um líder muito respeitado.
O goblin tinha percebido o quanto aquele guerreiro líder possuía um ar nobre e poderoso, apesar de já demonstrar traços de idade avançada, e o mesmo tempo um olhar sereno e acolhedor. O mesmo estava sentado num banco embaixo de uma bela cerejeira de folhas amarelas, talhando um pedaço de madeira com uma pequena faca, quando a kitsune e o goblin chegaram. Suas sete caudas balançavam suavemente, num balé hipnotizante.
- Olá, pequena Kiha. Fiquei sabendo que sua patrulha solitária ao sul acabou se tornando uma aventura inesperada. Porque foi patrulhar sozinha?
- A..acho que queria provar ao meu pai que posso ser uma boa guardiã. Desculpe pela minha falha.
- Falha? Que falha? Lutou bravamente contra dois samurais adultos e experientes. Mesmo ainda sendo uma aprendiz, tem tudo para se tornar uma grande guardiã.
- Obrigado, Rida-sama – lágrimas marejaram os olhos da kitsune.
- Só me prometa uma coisa daqui por diante. Não faça mais patrulhas sozinha, certo? Não quero que você se arrisque.
- Sim, senhor.
- Então esse ao seu lado é o motivo de todo seu esforço em batalha – o goblin desviou o olhar e baixou a cabeça quando foi encarado pelo líder kitsune – Sabe por que?
- Não sei ao certo. Teve um momento que senti em meu coração que deveria protegê-lo. Foi nessa hora que eu decidi agir – respondeu Kiha.
- Se foi uma decisão tomada com o coração, não há dúvida que estava correta – a kitsune o encarou nos olhos – Mesmo com todos os riscos que correu. Mas quero que saiba que toda decisão traz consequências, implicações e responsabilidades. Portanto, crianças, sentem pois preciso dizer algo a vocês.
Tamanuki sentou na relva com as pernas cruzadas, de frente para Kiha e o goblin, deixando de lado a faca e a escultura de madeira que já tomava uma forma ligeiramente definida.
O líder dos kitsune, dentro da sabedoria adquirida ao longo de anos, falou mais uma vez a respeito de responsabilidades e consequências decorrentes das ações. O fato de Kiha ter tomado a decisão de lutar pela vida do pequeno goblin foi uma atitude nobre, afinal um dos princípios fundamentais do povo-raposa é a proteção da vida, seja ela qual for, mas ela trouxe um problema a ser resolvido, uma escolha a ser tomada.
Essas escolhas dizem respeito ao choque de cultura entre os povos, resistências dos guerreiros mais conservadores das tradições, segredos kitsune que não poderiam sair do bosque e, do lado oposto, adaptação por parte do recém-chegado. Tudo isso deveria ser levado em consideração caso a resposta sobre a permanência do goblin no Bosque das Cerejeiras fosse sim. Caso contrário, o líder concederia um tempo para recuperação total do corpo e da mente e logo em seguida o visitante deveria partir.
As palavras de Tamanuki tocaram nos temas que incomodavam o coração de Kiha. Não havia dúvidas de que sentira uma ligação com o pequeno goblin, como também sabia que a permanência dele entre os kitsune seria um grande desafio para ele, e uma grande responsabilidade para ela, afinal assumiria a introdução do visitante na nova cultura, e mesmo assim com ressalvas.
Mesmo diante do desafio, não era isso que estava gerando o medo que sentia no momento. O que seria afinal? Fechou os olhos por um momento, buscando entender, e a resposta lhe veio cristalina: estava com medo do amigo decidir partir.
- Senhor grande líder, desculpe minha fala, mas não gostaria de trazer nenhum problema para o senhor, para todos na aldeia e, principalmente, para a senhora….para Kiha. Mas se deixar eu ficar, eu posso fazer qualquer coisa, obedecer qualquer lei, dormir em qualquer lugar, caçar, pescar e ficar calado para não incomodar ninguém.
Ao ouvir as sinceras palavras do goblin, os olhos de Kiha, que estava de cabeça baixa, se encheram de lágrimas.
- Então, pequeno, me parece que não teme os desafios à frente. Por que? - a pergunta do líder kitsune traz uma provocação, não uma dúvida.
- Ah...acho que depois da noite em que perdi minha tribo, finalmente encontrei uma amiga.
Kiha toma um susto com a revelação, arregala os olhos e encara o amigo. O goblin também tem lágrimas rolando pela face. O velho líder expressa um leve sorriso de contentamento.
- Então muito bem, decisão tomada – falou Tamanuki – Mas saiba que mesmo que na sua tradição os goblins não precisem de nomes, aqui entre os kitsune ainda precisamos. Já pensou em um?
- Não, senhor, não tenho ideia. Prefiro que Kiha escolha por mim.
- Eu? - perguntou Kiha, sobressaltada.
- E assim começa sua responsabilidade, minha pequena – disse o líder – Como quer que nosso hóspede seja chamado?
Kiha pensou por alguns segundos e respondeu.
- Bom, levando em consideração que a primeira coisa que me chamou a atenção foi a cor de sua pele, acho que Gurin é um bom nome - disse Kiha, sorridente.
- Certo. Gurin. Obrigado, Kiha – o goblin disse contente por ouvir seu primeiro nome.
- Então oficialmente seja bem-vindo, Gurin, ao lar dos kitsune.