A Sociedade da Lança - Parte 01: A fuga
A única coisa que o goblin pensava era em correr, correr sem parar, se afastando cada vez mais do horrível lugar onde viveu nos últimos meses, um lugar de dor e sofrimento. Não sabia o que aconteceria com os outros membros de sua espécie, mas esses pensamentos vinham e logo desapareciam.
O extinto de sobrevivência gritava em sua mente a cada passo, a cada árvore, arbusto ou pedra em que se escondia, olhando para trás para ver se não estava sendo perseguido. Agora que sentia o sabor da liberdade, mesmo sem saber para onde estava indo, jamais deixaria que aqueles homens perversos o prendessem de novo. Preferia morrer do que retornar para aquelas minas escuras e úmidas, onde só se ouvia sons do metal na rocha, gritos de dor e estalos de chicote.
Suas costas ainda ardiam dos ferimentos causados a dois dias. Os cortes ainda não tinham sarado. Como gostaria de estar em seu lar neste momento. Uma saudade sufocante apertou seu coração. Saudade dos amigos, dos anciãos e suas histórias contadas em volta da fogueira, da caça e da pesca ao lado dos companheiros pelas trilhas montanhosas.
Tudo isso lhe foi arrancado numa única noite.
O pelotão de samurais chegou ao cair da noite trazendo suas espadas e armaduras e sua estranha magia. Não houve tempo para nenhum tipo de reação, nem para fugir. Toda a aldeia goblin foi pega de surpresa. Os que resistiram foram mortos, esses tiveram um melhor destino, e os que sobreviveram foram levados como escravos para as minas de ferro a quilômetros de distância.
Ainda lembrava de olhar para trás e ver os guerreiros humanos colocarem fogo em sua querida aldeia. Aquela noite até agora o atormentava.
Não sabia o porquê, mas o destino não o queria preso naquele lugar por muito tempo. Um mês depois de ser capturado, aconteceu um deslizamento de terra na encosta da montanha, despejando uma grande quantidade de areia e rocha no acampamento abaixo. Muitos morreram, e no meio da confusão que se estabeleceu, o pequeno goblin viu a janela de oportunidade se abrir a sua frente. Não foi fácil adquirir coragem, o medo das severas punições que poderia sofrer se fosse pego fugindo quase o paralisaram, mas em fim suas pernas obedeceram o coração e ele partiu correndo em meio a cortina de poeira que cobria todo o lugar. E não olhou para trás.
A antiga raça dos goblins é um povo de cultura tribal, xamânica, que acredita que os fenômenos da natureza são representações das divindades que governam o mundo. Hoje os goblins são um povo quase extinto, vivendo apenas em pequenas comunidades espalhadas na cadeia de montanhas conhecida como Escudos Rochosos.
Durante gerações, desde a chegada dos humanos ao grande vale de Endo, os goblins e outras raças, consideradas aberrações e apelidadas de Bakemono (monstros), foram caçadas, mortas ou escravizadas por toda uma vida.
Para os renomados guerreiros samurai, esse era o destino dos bakemono.
O goblin despertou do transe de suas lembranças e voltou a olhar em volta para saber se não estava sendo perseguido. Essa era uma preocupação constante desde que fugiu das minas. Escondido atrás de uma grande pedra, conseguia avistar ao longe as enormes montanhas que foram seu lar por longos ciclos da lua e do sol. Sua aldeia havia sido destruída, mas outras comunidades goblins existiam espalhadas pelas montanhas. Poderia procurar por alguma delas e tentar ser aceito, algo que não seria tão fácil. Goblins costumam ser territorialistas.
Olhou para trás e viu que o terreno descia por uma leve encosta por alguns quilômetros e terminava num grande conjunto de árvores. E antes delas havia o que parecia ser um pequeno rio. Nunca tinha visto tanta árvore junta. Nas montanhas elas são escassas. Mas se adentrasse por elas, suas chances de escapar definitivamente aumentariam muito.
E agora, o que fazer? Voltar para as montanhas e tentar ser aceito numa nova comunidade ou encarar o desconhecido numa terra diferente?
Antes que formulasse qualquer resposta, avistou ao longe o que mais temia. Dois samurais apontaram em seu horizonte de visão e vinham em sua direção. Um deles parou e fez um movimento com as mãos, juntando os dedos, e varrendo a encosta com o olhar. O goblin já tinha visto aquilo outras vezes. O humano estava usando uma daquelas estranhas feitiçarias. Precisava sair dali o mais rápido possível.
O pequeno goblin saiu em disparada encosta abaixo. Deu de tudo em suas diminutas pernas para ganhar o máximo de velocidade na fuga. Seus pulmões estavam prestes a explodir de tanto esforço, seus músculos doíam e os ferimentos nas costas voltaram a arder fortemente. Precisava avançar, sua vida dependia disso. A essa altura provavelmente já tinha sido visto. Sua única chance era tentar chegar ao bosque lá embaixo e se esconder por entre as árvores.
Mas antes disso havia o rio.