Alma de fada

“Sou Alma lavada, sou Fada,

Caminho no infinito,

Cruzando abismos,

Desfazendo feitiços,

Enfrentando perigos,

Protegida em minha bolha de sabão.”

Alma nunca gostou do seu nome até ouvir essa canção.

Não se lembrava onde ouviu pela primeira vez, mas desde então cantarolava fora de hora, instintivamente, sempre para se acalmar. Fechava os olhos e sentia o corpo leve, flutuante. Era bom. Até alguém chegar e sacudi-la pelos ombros.

“O que está fazendo, Alma? Outra vez no mundo da lua, menina…”

Esses episódios tornavam-se cada dia mais frequentes e a cada reprimenda, mais vontade de ir e nunca mais voltar. Sentia-se alma penada, perdida, caminhante sem lugar para pousar. Vagava sozinha, por dentro, não tinha hora nem motivo para voltar. Alma sedenta de afeição, sem ninguém que pudesse dar. Seca, rachada, esfarelando, clamava por uma gota de empatia em um mundo de solidão.

Sempre sentiu na alma o gosto da rejeição. Sem saber a razão, já no útero materno provava desse sabor. Então foi abandonada ao dar seu primeiro suspiro nesse mundo. Ainda tinha que ouvir que “deveria ser grata, pelo menos tivera a chance de nascer”. “Grata pelo quê?” Sempre se perguntava. Pois preferia uma morte indigna ainda no calor daquela que a pariu.

Alma que tinha a alma tão triste, vivia em sua bolha de sabão. Não era de ninguém, nem dela mesma, não podia fazer nada do que queria.

“O cachorro fica do lado de fora, mocinha. Você sabe muito bem que animais são proibidos aqui.”

“Não quero saber se você ainda está com fome, tem mais gente pra comer.”

“Engole esse choro! Não tenho tempo pra isso agora.”

“Não, você não pode ter uma roupa nova, todas as outras crianças iriam querer também.”

Vivia sozinha em seu mundo mágico, onde criou amigos leais, brincadeiras, muita comida imaginária (que não enchia a barriga como a outra, mas era muito mais bonita e cheirosa), criou personagens fantásticos, do bem e do mal, mas do que mais gostava mesmo era dos grandes gatos que com um abraço a aqueciam e com seu ronronar curavam todas as suas dores e tristezas. Conversava com eles por horas, ou seriam dias?

“Sou Alma lavada, sou fada…”

Nunca soube se ouviu a canção do lado de fora ou do lado de dentro, só sabia que um dia amanheceu cantando. Talvez fosse mesmo uma fada que errou de corpo quando descia do céu, como um foguete, ainda alma desincorporada. Decerto era pra cair no útero de uma fada, que a aguardava, mas por azar foi parar no ventre hostil de uma humana que passava desavisada na hora e lugar errados. Isso explicaria muitas coisas…

“Alma, larga esse livro, estórias de fadas são para criancinhas, você já está uma moça, precisa ler os livros de português, matemática, geografia e história, vão alimentar o seu cérebro.”

“De que adianta alimento para o cérebro se o coração morrer de inanição? Me deixa sonhar, me deixa voar, é a única coisa que me consola neste mundo tão vazio.” Pensava mas não falava, aprendeu direitinho a calar o que ia por dentro para não parecer ainda mais estranha do que já era por fora.

Em seu mundo imaginário era fada de verdade, com direito a asas, beleza estonteante e poderes. Varinha de condão levava em sua mão, sabia transformar tudo ao seu redor, nada era cinza, feio ou triste. Com um toque paredes viravam campos floridos, chão virava lagoa cristalina cheia de vitórias régias, patinhos e até sapos, um ou outro, coaxando e pulando por ali. Sua cama virava uma árvore frondosa com ramos fortes que sustentavam um balanço, onde ela passava horas discutindo filosofia com os esquilos.

Transformava também pessoas em trolls, combinando perfeitamente a frieza de dentro com a dureza de fora. Passava momentos inesquecíveis em seu mundo de fada. Era a Rainha onipotente.

“Caminho no infinito, “

Numa tarde de abril caiu do telhado. Suas asas ousaram falhar quando mais precisou delas. Enquanto caía, viu o infinito. Em alguns milésimos de segundo tudo parou, ela caminhava pelo tempo, andando para trás o tempo voltava, andando para a frente o tempo corria. Não queria saber do futuro, precisava olhar o passado, como toda criança abandonada, queria saber o porquê.

Correu de costas o mais rápido que pode, enquanto via tudo passando como um borrão, parou no instante exato em que uma mulher colocava um bebê em uma caixa de sapatos forrada com um cobertor cor de rosa, não conseguia ver o seu rosto, tocou suas costas, ela estava virando…

Dor… O chão cravou seus dentes em todo o seu corpo numa mordida feroz. Estrelas passavam diante dos seus olhos, suas explosões eram captadas pelos ouvidos, na boca um gosto de ferro. Depois o vazio, por horas, talvez dias. Então começou a flutuar em uma dose de morfina.

“Quase morreu, foi o que o médico disse. Onde já se viu pular assim do telhado?”

“Mas ela queria mesmo se matar?”

“Acho que não, pra mim essa menina não bate bem da cabeça, ela pensa que é uma fada, provavelmente estava tentando voar.”

“E agora, o que vão fazer com ela?”

“Nada ué, vai voltar quando estiver fora de perigo, só pra dar ainda mais trabalho pra gente…”

Uma lágrima escorreu dos olhos de Alma. O vapor da morfina estava sumindo devagar. Não devagar o bastante para camuflar a conversa que escutou, despedaçando seu mundo de faz de contas tão rápido quanto fora despedaçado o seu coração.

“Cruzando abismos,”

Não podia mais voar. Nem andar, por um tempo. Estava presa na cama. Tudo em volta era cinza e triste. Mesmo se tentasse muito, não conseguia mais ser uma fada. Ainda não podia aguentar os olhares de piedade, outros de medo, alguns de preocupação. Pensavam que ela era um perigo em potencial para si mesma e para as outras crianças. Não viam que ela só queria ser feliz.

Cada dia descia mais no abismo, mais e mais fundo. Tudo era escuridão. Sem meios de voltar ficou pensando em quem era realmente a Alma. Não o que os outros viam nela, não sua imagem mental de fada, não sua versão suicida, mas o que era na essência. Sem estigmas, sem máscaras, sem maquiagem. Pensou longamente. Não conseguiu uma resposta.

Já que ainda não era ninguém, poderia ser quem quisesse.

“Desfazendo feitiços,“

Descobriu que viva debaixo do jugo imposto pelos outros. Abandonada, rejeitada, feia, esquisita, louca, suicida, imprestável. Cada palavra um feitiço que a prendia e transformava. Uma sentença que ouviu desde cedo e que se permitisse, a condenaria à prisão perpétua.

Mas como desfazer esse feitiço? Não sabia. Ainda. Tinha bastante tempo para pensar, ler, meditar e escrever. Coisa de que tomou gosto nesse tempo de inatividade física e imaginativa. Lia tudo que conseguia. Começou a escrever por sugestão da psicóloga que ia visitá-la toda semana. Disse que ajudaria a organizar seus pensamentos. Colocou em prática e viu que ajudava mesmo.

Começou escrevendo literalmente cada pensamento. Rendeu dezenas de páginas de seu caderno pautado. Acabou por cansar. Seus pensamentos não eram tão interessantes assim. Continuou escrevendo pequenas estórias, principalmente sobre como queria que tivesse sido sua infância, depois passou a colocar mais ação, personagens interessantes, motivações profundas e atos heróicos. Não sabia se estava tão bom quanto os livros que costumava devorar, mas sentia-se feliz e orgulhosa de suas estórias. Não mostrava para ninguém. Não entenderiam…

“Enfrentando perigos,”

Seu corpo voltava aos poucos a ser como antes, sua mente estava mais afiada do que nunca. Entendeu que o excesso de imaginação era bom só para escrever suas estórias. Não pensava mais em ser uma fada, poderia ser se quisesse, em suas estórias podia ser o que quisesse. Já foi um dragão, uma múmia, um pirata, um avião, uma estrela, do céu e do rock, uma mãe e uma filha. Tudo escrito em seus cadernos pautados. Já eram oito, no total.

Decidiu que era hora de mostrar para alguém. Não dava para continuar na obscuridade, seus personagens gritavam por ganharem vida, suas estórias clamavam por serem lidas. Seu mundo berrava por ser descoberto. “Mas e se não fossem apreciados, e se não fossem aceitos, e se fossem ridicularizados? Aguentaria mais uma rejeição?” Era um perigo que precisava enfrentar.

A psicóloga foi a escolhida para ler seus escritos. Era o mais perto de uma verdadeira amiga que tinha no momento. Não se fez de rogada, aceitou sem melindres e prometeu ler tudo e dizer sinceramente se eram bons.

A espera foi angustiante.

“Protegida em minha bolha de sabão.”

“O que será que aconteceu com essa menina? Nem parece a mesma, o tombo deve ter arrumado a cabeça dela…”

“Parece mesmo outra pessoa… Se concentra mais nos estudos, conversa com as outras crianças, ajuda a cuidar dos menorzinhos. Está até mais bonita.”

Quem diria. Ter um objetivo de vida podia fazer milagres. Enquanto esperava o veredito da psicóloga, tentava se abrir para o mundo real, enxergar realmente as outras pessoas. Começou com a desculpa de coletar informações para suas estórias. Foi saindo de sua bolha, pouco a pouco foi olhando ao redor e o mundo não era tão ruim assim.

Crescer pode ser bem difícil. Abandonar sua dor de estimação também. Quem seremos se deixarmos de lado tudo que nos fizeram e passarmos a focar em tudo que podemos fazer?

Alma estava aprendendo a viver. Como um recém nascido, dava seu primeiro suspiro no mundo e dessa vez foi acolhida, por ela mesma. Não se impediria de viver, de crescer, de ser.

“Alma, a Dra Carla quer te ver, está te esperando no consultório.”

Coração batucando nos ouvidos. Parou, respirou. Se acalmou. “Se ela não tiver gostado não seria tão ruim assim, seria? Seria só mais um obstáculo para transpor. Tinha sobrevivido a muitos, sobreviveria a mais aquele. Se for preciso.”

Não seria.

Nem suas mais loucas divagações poderiam chegar perto da realidade. A psicóloga tinha falhado em ser a única guardiã de seu mundo imaginário. Compartilhou com várias pessoas que estavam empenhadas em publicar uma série de livros com tudo que ela havia escrito e se possível, tudo que ainda escreveria.

Alma não precisava mais ser uma fada. Descobriu que a única prisão prendendo-a era a falta de amor próprio e aceitação incondicional. Alma era só a Alma, uma mocinha sonhadora que acabara de estourar sua bolha de sabão. Era livre. Tinha uma imaginação fértil.

Era escritora!

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 28/06/2019
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