MARIA JÚLIA

Tinha sido intenso o dia de trabalho e, para relaxar, resolvi tomar umas cervejas antes de ir para casa. Há anos, frequentava o Bar do Rogério, um pequeno boteco situado em uma rua vicinal, localizada nas vísceras de um bairro residencial, antigo e boêmio da cidade. Pouco afeto a barulho, escolhia sempre uma mesa dos fundos, próxima a um pequeno quintal, longe do aparelho de TV e das narrações futebolísticas.

Ao me ver chegar, um dos garçons, já sabendo o meu destino, me interpelou na entrada com a simpatia e familiaridade de sempre, dizendo que a "minha mesa" estava reservada e que, se quisesse, poderia ocupar a que ficava ao lado. Interpelação duplamente estranha: sempre havia mesas sobrando no bar, de modo que reservas antecipadas não faziam o menor sentido ali; além disso, minha mesa preferida ficava em um local não muito apreciado pela freguesia, por estar próxima aos banheiros e fora do campo de visão dos garçons, sendo necessário chamá-los a meio volume e com insistência, a cada garrafa ou prato de azeitona esvaziados.

Estoico e desapegado das coisas pequenas da vida, mas subitamente invadido por uma legítima curiosidade, disse ao garçom que não havia problema algum em sentar em outro lugar, mas fiz questão de saber quem havia reservado a mesa dos fundos. "Maria Júlia, a Yorkie. É frequentadora antiga daqui e muito amiga do pessoal. Chega daqui a pouco", respondeu o rapaz, mal suprimindo o orgulho e a empolgação na voz.

Maria Júlia...

Enquanto aguardava a cerveja e o feijão verde com queijo coalho, especialidade da casa, tentei imaginar a pessoa que dava vida ao nome. Não haveria de ser uma das madames típicas da cidade; estas preferem invariavelmente outros ambientes, outros pratos e outras bebidas; devia de ser artista, jovem, quiçá estudante de humanas - o nome, combinado com o ambiente, sugeria alguém com tais características. Havia outra informação sobre o personagem em questão, uma designação pouco convencional, capaz de intrigar até mesmo os mais versados em neologismos. Yorkie... Maria Júlia, a Yorkie... Seria isso uma profissão, um ofício?

A cerveja chegou e à medida que descia, geladíssima, peritônio abaixo, lavando as últimas manchas de desilusão deixadas na alma ao longo do dia, a curiosidade sobre aquele personagem ia aumentando.

Demorei a entender – e a aceitar – que Maria Júlia se tratava de uma cadelinha de no máximo quatro quilos, que havia entrado no bar andando sobre as duas patas traseiras, como aqueles poodles de circo. Ocorre que, ao contrários dos cães artistas convencionais, ela andava com desenvoltura, como uma... pessoa. E falava também – como uma pessoa.

Um grupo que cercava um sujeito tocando violão na entrada do boteco se aproximou cumprimentando Maria Júlia de forma efusiva. Gostavam dela. Sentiam falta dela. Eram grandes fãs dela - isso era tão inquestionável quando impressionante. O músico do grupo deixou o violão sobre uma cadeira e suspendeu Maria Júlia no ar com as duas mãos, como se faz com os bebês, e a pôs em uma cadeira de assento elevado, semelhante a cadeira de crianças, porém adaptada para uma Yorkie de quatro quilos sentar-se como um humano, mantendo a coluna ereta e as mãos, digo, patas, sobre a mesa. Uma moça segurando uma pandeirola pediu cinco garrafas de cervejas "tricando" e deu um beijo acompanhado de um longo abraço no personagem central.

Maria Júlia, então, – foi a primeira vez que ouvi sua voz e fala com nitidez – requisitou um espetinho de frango sem sal e sem bacon, devolvendo em seguida o beijo e o abraço à amiga. Ato contínuo, percebendo a ansiedade nos olhares ao redor, disse, "essa eu compus final de semana passado" e se pôs a cantar – voz de veludo, a expressão canina se humanizando a cada falsete bem executado – chamando para si a atenção do bar inteiro.

E Júlia, vale dizer, não era só caminhar, voz e trejeitos humanos. Trazia no corpinho frágil, porém esperto, indumentária de moça descolada, sem excessos e atavismos. Usava saia plissada, um colar hippie e blusa regata de seda vermelha. Os longos, finos e loiros pelos (ou seriam cabelos?) da cabeça desciam distribuídos em duas tranças laterais, presas nas pontas por minúsculas fivelas feitas sob medida.

O cara do violão não demorou a acompanhá-la, acertando de imediato o tom o e compasso, a revelar perfeita intimidade musical com a cantora. Em pouco tempo, o pequeno boteco de bairro virou o céu, onde Maria Júlia reinava absoluta e vital como o sol.

Em geral, tomo apenas três cervejas, mato a fome e vou para casa de alma lavada, satisfeito e pronto para dormir e sonhar sonhos vulgares. No dia em que conheci Maria Júlia, porém, tive que ser retirado do bar mergulhado em um rio morno de inconsciência, maravilhamento e vômito, sendo levado a um táxi nos braços do dono do bar, que, compreensivo, dizia, enquanto me arrastava pela sarjeta: "é assim mesmo quando Maria Júlia vem aqui cantar; a gente se encanta, se perde e passa do ponto".

João Pegado
Enviado por João Pegado em 19/06/2019
Reeditado em 19/06/2019
Código do texto: T6676838
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