LINDA MULHER QUE ME SEDUZ...

LINDA MULHER QUE ME SEDUZ...

Corria o ano de 1920 (ou 30 ?!) e o bonde de Santa Teresa seguia junto, o trocador Francisco -- moreno alto de bigodinho e ar charmoso -- agarrado feito carrapato nos corrimãos verticais que delimitavam a fila dos bancos. A morena subia na "geringonça" pela primeira vez, fôra aprovada para trabalhar como costureira auxiliar num "atelier" chique do bairro boêmio. "Chicão" roçou de leve a mão livrem cheia de notas de réis, na nádega saliente da moçoila que subira no estribo e recebeu de trôco "discreta cotovelada" no fígado, que quase o leva a nocaute.

Mas, estava "ouriçado", o coração vazio por ano e meio "despertara" ao ver aquele monumento à miscigenação das raças passar assim, sem mais nem menos. Bradou para meia lotação ouvir:

-- "Hoje é por minha conta... mulher bonita não paga"!, dirigindo sugestivo olhar à morenaça.

-- "O senhor não se faça de engraçado, meu dinheiro não é melhor que o dos outros, queira receber, por favor" !

-- "Que é isso, minha nêga, faço questão de lhe brindar com essa gentileza" !

-- "Então, será a última... vou comunicar à Direção no final da linha e o sr. "vai pra rua" !

-- "A morena é mais "azeda" do que limão" !

-- "E vocês, homens, são todos "um abacaxi" !

No bonde já bem cheio soaram vaias e risinhos, "Chicão" incomodado com o insucesso da investida manteve-se lá no fundo e só cobrava dos novos passageiros pelo lado oposto, coisa bem incomum. Marcou o local onde a moça desceu... mais tarde ela retornaria por ali. Costumava cantar durante a labuta, ficara bastante conhecido por isso. Preparou repertório de modinhas para os dias posteriores, todas dirigidas a jovem, o vozeirão sobrepondo-se ao ranger das rodas de ferro. Captou "flashes" de interesse da "uva", digo, do "avião", aliás "máquina", "violão" ou, melhor, "sereia", enquanto cantarolava sucessos da época.

"Linda mulher / que, com seus olhos, / me seduz. / Ai, quem me dera"... e lá se ía metade do percurso, com ela vexada com a insistência do sujeito, embora se sentisse vaidosa com a homenagem. Certa tarde, largou o serviço nas mãos de um substituo e desceu do bonde quase a seu lado. Abordou-a desajeitado, as pernas tremendo:

-- "Senhorita, estou encantado com tanta beleza... qual é vossa graça" ?!

-- "Ora, senhor... nem sei com quem estou falando" !

-- "É verdade... Francisco Alves, o "Chicão", funcionário da Cia de Bondes" !

-- "Sei disso, me chamo Rosalinda, costureira" !

-- "Quem diria... além de linda, é rosa" !

-- "Era o nome de minha avó... meus pais fizeram essa homenagem" !

-- "Me permita acompanhá-la" ?!

-- "Posso saber para onde o sr. pretende ir" ?!

-- "Para sua casa, pedir permissão a seus pais a fim de cortejá-la" !

-- "Não será preciso... estou bem grandinha para isso ! Mas não quero para namorado um "doidivanas" que lança galanteios para todo "rabo de saia" que vê passar" !

-- "Longe de mim tal leviandade... sei bem o que quero e, tenha certeza, quero você" !

A jovem blefara... a permissão dos pais era exigência da época e "Chico" a cumpriu religiosamente. Compositor, criou canções para a amada e um "manager" de Gravadora ouviu uma delas, quando passeava no bonde. Lhe deu cartão de visita e lá se foi o cobrador "tentar a sorte". Os discos eram de metal, pesadíssimos e só continham 4 músicas, por vezes uma de cada lado. Gravou "standards" -- canções populares, conhecidas -- e composições suas, que fizeram enorme sucesso e o tornaram o "Rei da Voz", disputando com Vicente Celestino quem "gritava mais lato"... Nelson Gonçalves e, adiante, Cauby Peixoto "herdariam" e Chico Alves a vocação do "vozeirão" de tremer paredes.

Resta saber o que sucedeu ao amor de juventude do ex-motorneiro... não há registros dela nos anais que narram vida e obra do "Rei da Voz" mas Rosalinda sempre soube que "Chicão" cantava pra ela, só pra ela !

"NATO" AZEVEDO

(11/junho 2019, 21 hs)

OBS: trata-se de estória fictícia, sem base em fatos ou na biografia do cantor citado no conto