O Poeta

- Você deve se tornar um homem de verdade, Kalahad!...

Os gritos podiam ser ouvidos de todos os cômodos da casa, juntamente com o impacto das agressões.

- Um guerreiro como meus antepassados!

O garoto chorava.

- Ao invés disso, insiste nessa baboseira mágica. O que você quer com isso? Passar o resto da sua vida com sua a mãe e irmãs, tecendo roupas, cuidando da casa e praticando feitiçaria?

O pai batia mais forte.

- Você vai se endireitar AGORA, ou EU vou!

Num soco certeiro, o rapaz é nocauteado.

Zh’thar, o reino mais poderoso atualmente. Devastou diversos reinos vizinhos somente para mostrar a força bélica de seu formidável exército, de forma a legitimar sua soberania.

Tudo girava em torno da guerra. Dessa forma, o guerreiro e a masculinidade exagerada eram exaltados, e qualquer forma de magia e feminilidade, desprezadas.

Apesar de todo o desdém à magia, ela era amplamente utilizada em combate.

As “magas de Rakari” eram especializadas em vagar pelo mundo espiritual. Seus corpos ficavam na cidade, meditando, mas suas almas estavam no campo de batalha, e através delas, curavam seus aliados e amaldiçoavam inimigos.

Mesmo desempenhando uma função tão fundamental, ainda eram destratadas e jamais reconhecidas.

Kalahad era filho de Azmir, General da 9º Legião do Exército de Zh’thar, considerado uma lenda viva, e fonte de inspiração para todos os aspirantes à guerreiros. Mas para “Kal” ele era diferente.

Um brutamontes que controlava a casa ao seu bel prazer, fazia de todos os seus desejos leis, e sempre conseguia uma desculpa para bater nos filhos e na esposa, que tentava protegê-los. Um monstro, um tirano.

Já sua mãe, era o próprio amor encarnado, sempre cuidou dele, e sempre foram muito próximos. Passavam horas conversando e discutindo as mais diversas coisas, a sabedoria daquela mulher era infinita. Quando ele a implorou para que o ensinasse magia, ela relutou, mas não podia negar àqueles olhos brilhantes tal conhecimento.

Kal tinha jeito com os feitiços, era muito inteligente e passava horas estudando… ou passaria, se não estivesse em constantes brigas com seu pai, que o repreendia e agredia, forçando-o a se voltar ao combate físico e à Arte da Espada.

A Arte da Espada era uma instituição, formada por homens corruptos e cegos em sua tradição, que nomeava os guerreiros e lhe dava seus títulos. Todos os grandes e poderosos combatentes da história passaram por ela… assim como todos os homens da família de Azmir, o vermelho.

O garoto tinha nojo da forma como as mulheres eram diminuídas, e se afastava cada vez mais dos outros homens, especialmente do seu pai. Em contrapartida, possuía inúmeras amigas, que lhe ensinavam magia e poesia sempre que possível. Dessa forma, ele começara a frequentar o Templo de Rakari.

Os novos planos do reino eram se tornar um Império que embarcaria todo o continente. A sede de poder e a enorme e cega confiança do rei, inspiravam as tropas. Próximo alvo: o reino de Hash, um reino bastante recente, que se localizava numa posição estrategicamente muito boa, tanto do ponto de vista comercial como militar. Seria a primeira de muitas conquistas o Império Zh’thar.

O Exército mandava somente a 1º e 2º Legião para o combate. Eram as mais inexperientes, mas não haveria necessidade de mandar seus melhores homens para um reino recém-formado.

O combate se iniciara.

Os guerreiros facilmente dizimavam o exército inimigo, e as magas se mantinham atentas no mundo espiritual.

Kalahad observava de perto suas “irmãs” meditando, seguindo as ordens da Arquimaga do Templo, sua mãe, Zane. Ele conseguia observar o campo de batalha através do Altar que ficava no centro do tempo, o qual todas as magas estavam em volta.

Até que algo inesperado aconteceu.

Um sinal foi tocado pelo exército Hashiano.

Imediatamente, do oeste e do leste, surgiram tropas imensas, portando estandartes de outros reinos.

Zh’thar foi traída.

Hash já sabia de seus planos, e pagou outros reinos por proteção.

Eles estavam cercados por 4 vezes mais homens do que esperavam.

Sua confiança lhes faria pagar caro.

A batalha se tornava ainda mais frenética, em minutos, uma terça parte das tropas Zh’tharinas havia sido estraçalhada. As irmãs faziam um esforço imenso para se manter no plano espiritual e despendiam de uma quantidade absurda de energia para conjurar cada um dos seus feitiços.

De repente, Zane desmaia.

Kal entra em desespero. Sem sua mãe liderando as magas, elas não aguentariam muito tempo. Era necessário alguém poderoso com elas, para manter estável a estadia no reino espiritual.

O rapaz, sem ver outra saída, correndo, leva sua mãe nos braços até um quarto, no segundo andar do templo, e retorna, sentando-se no círculo mágico.

Seus olhos brilham. Ele estava dentro.

O estado do combate era crítico. Não havia muito o que fazer, aquela batalha estaria perdida em breve.

Kalahad se esforçava para proferir as curas e maldições mais poderosas de que tinha conhecimento, ao mesmo tempo que tentava liderar e estabilizar suas irmãs.

Até que em certo ponto ele se revolta. Elas não estavam treinando a tanto tempo, dia e noite, para serem rebaixadas à tal função. A magia podia ser bem mais útil.

Para a surpresa de todos, o rapaz começa a conjurar feitiços diferentes.

Bolas de fogo saem de suas mãos, o clima começa a mudar, raios obliteram seus inimigos, todo o universo ao comando dele e das magas de Rakari, que o seguiam.

Rapidamente a maré da guerra virava.

Até que o mundo espiritual entrou em colapso.

O círculo estava sendo quebrado, as magas desaparecendo.

Kal sai do reino mágico.

Quando volta a sí, se depara com suas companheiras mortas.

- Hash enviara assassinos ao templo… Nós nunca tivemos chance…

Pensava.

- MÃE!

O rapaz correu até o segundo andar desesperadamente. Lá estava, encapuzado, um homem grande, segurando uma adaga, olhando para sua mãe deitada.

Kalahad tenta conjurar um feitiço, mas não consegue. O homem misterioso possuia algo que anulava seus poderes.

Antes que pudesse notar, o garoto recebeu um golpe na barriga, e caiu no chão, do outro lado do quarto.

- LARGA ELA!

Gritou o rapaz.

- Você não tem poder nenhum sobre mim, mago. Você não tem força. Não pode me dar ordens.

Com um golpe rápido e frio, assassinou Zane, e sumiu, pulando pela janela.

Kal estava destruído.

Ele estudou tanto, treinou tanto, se esforçou muito e ainda conseguiu acabar com grande parte do exército inimigo… Mas quando mais precisou, sua magia não o ajudou a salvar quem ele amava. Logo a única pessoa que o apoiou durante toda a vida.

- Magia não podia salvar…

De uma vez, o rapaz se viu no mundo espiritual. Ele não havia feito os rituais para entrar nele.

- O que está acontecendo?

- Você percebeu, então?

- Quem está ai?

- Você percebeu que a magia não pode salvar?

- …

- Um guerreiro é capaz de fazer inúmeras proezas, garoto.

- Guerreiros são sujos, nojentos, tiranos e vingativos. Estão sempre querendo satisfazer seus próprios desejos e nunca pensam antes de agir. Eles são impulsivos e idiotas.

- Não, rapaz… Você está vendo as coisas da maneira errada.

Rapidamente, começam a surgir figuras diante dos seus olhos.

- Somos os guerreiros do passado. Antigos reis, heróis e mestres. Os homens que você conhece não são necessariamente os únicos que existem.

O garoto fica calado, escutando.

- Guerreiros são honrados, vivem pelo combate, por um ideal, servem à sua espada assim como ela serve a eles. Sua espada é uma extensão de seu corpo e de suas habilidades. É uma extensão de você. Sua lâmina é seu reflexo. Essa a verdadeira Arte da Espada. É uma filosofia de vida, não uma instituição corrupta cheia de homens tolos. Não manche a honra dos que já foram por causa dos que vivem.

- Pois, como posso me tornar assim? Não quero que mais pessoas que eu amo morram… tenho que protegê-las. Como posso aprender mais sobre a Arte da Espada?

- Você tem certeza de que quer seguir este caminho?

- Tenho.

- ...

- Pois nós o ensinaremos.

O ambiente se torna um campo de treinamento.

- Você treinará aqui durante o tempo que for necessário. Até que consiga derrotar todos os nossos 1000 melhores guerreiros. Veremos o quanto você realmente deseja ser mais forte.

- Mas eu não possuo uma espada.

Em sua mão, uma espada negra com detalhes azuis se materializa.

- Essa espada se chama Legião, possui o espírito de todos os mestres. Ela lhe ensinará tudo o que precisa.

E o treinamento se iniciou, Kal lutava exaustivamente contra os 1000 guerreiros todos os dias. Demoraram semanas até que ele tenha conseguido encostar no primeiro. Meses até que tenha conseguido vencer algum. E após anos, o rapaz havia completado seu treinamento.

Finalmente, o conhecimento de gerações de espadachins agora lhe pertencia, ele estava pronto.

A convivência com tanto homens valorosos o fez repensar sua visão sobre os guerreiros e os homens em si.

- Seu treinamento está quase finalizado.

Disse a voz dos grandes mestres.

- Quase?

- Há um último mestre que precisa rever. Mas este não pertence a nós.

Todo o ambiente se modificou. Ele agora se encontrava no templo. Em sua frente, a imagem de sua mãe se materializou.

- Meu filho…

- Mãe?!

Os olhos do garoto brilhavam.

- Você se tornou um guerreiro muito forte, meu filho. Ao longe observei seu treino. Se esforçou tanto. Você sempre teve esse potencial, só o suprimia. Nunca se esqueça, porém, de quem você é.

Ela encosta as mãos na espada espiritual.

- Você não é só um guerreiro, é um mago também.

A lâmina começa a brilhar.

- Não separe o que nunca precisou ser separado.

Kalahad desperta no chão do quarto, com o corpo de sua mãe ainda deitado na cama. Em suas mãos, a espada.

Ele olha pela janela. O assassino ainda está fugindo.

Fogo azul começa a sair dos olhos e da lâmina de Kalahad. Ele beija a testa de sua mãe e pula pela janela, alçando vôo, com a espada em mãos.

Com um movimento de mãos, ele traz o fugitivo até si, que se debate no ar.

O rapaz retira o capuz, revelando o que já esperava.

- Pai…

- ME SOLTA, GAROTO IDIOTA, QUEM VOCÊ PENSA QUE É?

- Por quê?

- Aquela mulher? Porque um guerreiro está sempre lutando pela vitória. Esse reino está fadado ao fracasso. Eu só escolhi lutar pelo lado vencedor.

- Você está errado… “Guerreiros são honrados, vivem pelo combate...

- “...por um ideal, servem à sua espada assim como ela serve a eles?” Claro que você ouviu essa baboseira toda…

- Como você…

- Tadinho de você, realmente um fracote… Acredita em qualquer coisa que lhe disserem? Aqueles espíritos só estavam brincando com você. Pensa mesmo que se tornou algo além do inútil que você é? Você não é nada… Você é só uma garotinha que gosta de brincar com magia. Nunca vai ser um guerreiro.

Com um golpe de Azmir, Kal foi atirado ao chão.

A mente de Kal girava.

- Eles… Me enganaram?

Ele olhou para a espada.

- Claro… Que assim seja.

Atirou a espada ao chão. Começou a conjurar um feitiço. Tudo estava mudando. Ele roubava energia tanto do mundo espiritual quanto físico.

Toda sua ira se direcionou à espada.

E explodiu.

O impacto da destruição de tal artefato, somado ao poder devastador da magia de Kalahad, apagaram do mapa todo o reino.

Os espíritos libertos da espada, tanto dos mestres, quanto dos alunos, somados à todos os mortos do recém-extinto reino, vagavam pela cratera.

- E agora… para vocês...

Kalahad atraiu à todos eles, e os trancafiou numa jóia. A única coisa que restara da lâmina espiritual. Uma safira. Lá, eles serviriam para sempre de energia para o mago.

Somente um não merecia tal sina.

A um corvo ele deu o espírito de sua mãe. Dizem que esses animais podem vagar entre o mundo dos vivos e dos mortos… Talvez fosse o melhor pra ela.

E assim morreu Kalahad, o único guerreiro arcano, mesmo que por poucos minutos. Seu espírito foi quebrado, ele não suportou as dúvidas e as mentiras.

De suas cinzas, porém, surgiu algo mais poderoso. Mais feroz. Mais esperto.

Um monstro que vaga sozinho pelo mundo, com a morte em seu encalço.

O que ele quer? Ninguém sabe. Enlouqueceriam se soubessem.

Kaharr é o nome do demônio no qual o jovem rapaz se transformou.

Esse sou eu agora.

Eu PRECISO vê-los. Somente assim eu finalmente terei paz. Não me importa nem um pouco o que acontecerá com esse mundo.

Estão perto.

“Há uma poesia. Escondida em nossas entranhas. O mundo precisa dela. Farei questão de recitá-la”

~ Kaharr