O Coração do Demônio

No interior das traiçoeiras florestas de Psykhé, havia uma cidade sem nome, de pessoas igualmente traiçoeiras, além de falsas e agressivas. Nesse recinto de desconfiança e medo, qualquer coisa era uma desculpa para o uso da violência.

Uma existência, porém, destoava às outras. Arton era um jovem rapaz, hábil caçador, e de coração nobre, cujo sonho era ser um grande herói. Ele tinha certeza absoluta de que era diferente dos outros habitantes de sua terra natal.

Retornando de sua caçada, encontra uma distinta criatura em meio às árvores.

Era O Velho Demônio, O Dragão Negro, O Profeta do Agouro, O Eu-Lírico Amaldiçoado, Kaharr. Uma figura misteriosa e sombria que habitava uma cabana, na floresta, longe da cidade.

Como abutres sobrevoam sua presa tempos antes dela se tornar apenas carne, Kaharr também circundava o jovem, buscando encher-lhe de dúvidas sobre si mesmo.

“Outra pobre alma a ser devorada”, pensava o bruxo.

Nada disso, porém, surtia efeito no caçador, que simplesmente não dava a mínima para as mentiras do ser infame. Ele tinha total compreensão de quem era.

Os olhos do demônio brilhavam.

“Mudei de ideia, essa essência farei questão de corromper”, refletia.

“Admiro tão forte determinação, devo presentear-te com algo à sua altura. Isso, claro, considerando que não possui qualquer medo de me provar seu valor”, desafia.

“De fato, não tenho, mas o que você poderia me dar?”, indagou o rapaz.

“Eu posso dar-te qualquer coisa, peça. Um castelo? Riquezas infindas? O Amor? O que seu coração busca?”

“Quero me tornar o maior herói que esse reino jamais viu.”

“Que assim seja. Só veremos por quanto tempo você se mantém tão confiante sobre si mesmo.”

E tão rápido quanto apareceu, se foi nas sombras.

Uma marca, então, esculpia-se nas costas do punho do aspirante a herói, era o símbolo de seu pacto com as trevas.

Arton retornava para casa. E durante semanas tivera inúmeros pesadelos. Corpos sendo mutilados, gritos de agonia inominável, o desespero e a dor de quem vira o pior dos fins.

Ao mesmo tempo, boatos acerca de uma vil criatura na floresta se espalhavam cada vez mais pela cidade. As crianças estavam desaparecendo, e dizia-se que esse ser odioso as atraía e devorava na floresta. Mas nada além de rumores.

Até que um dos garotos retornou. Desesperado, revelou a toca do demônio, chorando e gritando, logo antes de, em um choque, dar seu último suspiro.

O coletivo espírito sanguinário que banhava aquelas pessoas se pôs à tona. Somado à pena e ódio pela morte de seres tão puros, organizou-se uma caçada para aquela noite.

E a presa era o próprio diabo.

O rapaz também iria, se houvesse a chance de alguma criança estar viva, ele estaria lá para ajudar.

O mar de tochas abria caminho no bosque retorcido, direcionando-se para a gruta da besta.

Todos gritando palavras ameaçadoras e fazendo muito barulho, com sua fúria carniceira à flor da pele. Todos menos Arton, que buscava somente resgatar potenciais sobreviventes e derrotar a fera para que não machucasse mais ninguém. E assim, talvez, fosse nomeado o herói que tanto desejava ser.

Ao adentrarem o covil da criatura, o caçador observou uma cena aterradora. Corpos mutilados, gritos de agonia inominável, o desespero e a dor de quem vira o pior dos fins.

...

Aquilo lhe era familiar.

Sua mente girava e seu corpo esquentava, esquentava tanto que ele não mais sentia as coisas ao redor.

Numa explosão de ar, todas as tochas se apagaram.

Uma espécie de névoa se formou no ambiente.

Ninguém conseguia ver absolutamente nada.

O total escuro fora então iluminado por chamas vermelhas.

E através da fumaça todos olharam estupefatos os olhos de Arton, o demônio.

A caçada ao ser infernal foi frenética.

O metamorfizado ainda tinha total noção do que acontecia à sua volta, ele não havia se tornado uma besta irracional. Apesar disso, corria desesperadamente, pois sabia que se fosse pegue, com toda certeza sofreria um fim pior que a morte.

Todas as coisas tornam-se turvas e ele cai no chão, despertando numa cabana no meio da floresta.

“Onde eu estou? Como cheguei aqui?” indagava, sozinho, o rapaz.

“O que aconteceu naquela caverna? Por que aquele lugar me era tão familiar?”

“A besta…”, disse em voz alta, correndo para a frente do primeiro espelho que vira.

Era inegável, os chifres, as marcas e as asas negras, a face distorcida e os olhos… aqueles olhos que queimavam incansavelmente, como se fossem os portões para o próprio inferno. Ele era um demônio.

“Então eu… eu cometi tudo aquilo? Aquelas almas tão puras...?”

“Como eu poderia...? “Eu que tanto prezo pela justiça, seria capaz de empreender tal atrocidade?”, desespera-se.

“Os sonhos… eram sonhos…? As cenas estão tão vívidas na minha mente...”

Ele desabou.

“Deuses, o que eu fiz? Eu sou ridículo…” dizia chorando copiosamente, “Como… como me tornei exatamente o que jurei derrotar?”, soluçava.

“Tudo por um orgulho infantil e a proposta tão sedutora de um monstro...”, as lágrimas

corriam incansavelmente pelo seu rosto.

“De que me adiantaram tantas boas intenções, se no fim eu só causei morte?”

“Graças a mim, tantas e tantas pessoas sofreram e sofrem nesse exato momento.”

“Tudo por essa MALDITA MARCA”, gritou, olhando para sua mão. Sua face se tornava ainda mais assustadora agora que estava enfurecido. Ele destruía tudo o que via em sua frente.

“MALDITO EU!”, esbravejava. E a casa se fazia em pedaços a cada golpe de suas garras infernais.

Noite após noite, o amaldiçoado chorava, escutando o ladrar dos cachorros e o grito dos cidadãos. Eles não desistiriam até que sangue fosse pago com sangue.

Escorraçado como um animal, se escondia de seus algozes… Aqueles que jurara proteger.

Um dia, Arton, cansado, cai de joelhos na frente do espelho e observa as lágrimas escorrendo por sua face abismal.

“Seria mesmo, o demônio, capaz de chorar?”, se pergunta, agora com uma expressão vazia, de quem já perdera a alma. “Mesmo que minha forma esteja tão distorcida… ainda me sinto eu mesmo.”

“Talvez só chore pelos crimes que cometi. E quem sabe do que seria capaz em meus acessos de fúria?”.

“Mas todo esse ódio nunca fizera parte de mim…”

“E quem disse que sou eu mesmo agora? Agora sou a encarnação do próprio mal. Sou enviado das trevas para corromper os bons corações, destruir as almas e fartar-me de suas carnes”

“Mas… se sou um ser tão cruel e desumano, como posso estar com o coração tão pesado?”, ponderou, “Esse coração ainda bate pela vontade de servir e proteger.”

“Servir e proteger? suspirou, sorrindo melancolicamente. Não foi isso que fiz na caverna, né?”

“A caverna…”

“Há algo errado aqui…”

Arton golpeia seu reflexo, pulverizando o vidro.

“Você realmente acha que pode corromper minha alma, não é? Kaharr.”

Uma sombra se projeta atrás do garoto, mas permanece em silêncio.

“Devo confessar que por pouco não quebrou meu espírito, parabéns, é um adversário formidável. Hei, porém, de dizer-te de uma vez por todas:”

“Eu sou Arton, um rapaz de coração puro e com a vontade nobre de proteger aquilo que me é importante. E NINGUÉM pode ditar o que eu sou, além de mim mesmo. Não me importa nem um pouco as mentiras ditas sobre mim. Não me importa minha forma. Somente EU sei quem sou. E demônio algum vai mudar isso.”

A sombra sorri e desaparece.

Escondido atrás do espelho, havia um livro. Nele, a imagem de um dragão, a capa era seu corpo, e a lombada, sua cauda.

O garoto o pegou, e dispôs-se a ler.

Despendeu vários dias em sua leitura, e na busca por entender o que era aquele conteúdo tão enigmático. Até que…

“Não acredito…”

Num pulo, projetou-se como uma flecha até a floresta.

“Por favor, que não seja isso…”

Era noite, seus predadores ainda estavam em seu encalço, mas nada disso importava.

Com uma velocidade sobre-humana, chegou até a caverna.

Seus olhos infernais novamente iluminavam o ambiente. Ele viu as marcações no chão. Era o ritual da purificação.

No livro, os mesmos símbolos, as mesmas inscrições, o mesmo sacrifício.

Se virou para fora e olhou os céus.

“Não...”

Desesperado, novamente corria, desta vez em direção à cidade.

“Os puros devem ser retirados, de forma que não sofram a punição divina”, era o que dizia o livro.

Os cães podiam ser ouvidos mais perto agora. O haviam encontrado. O estavam perseguindo.

Na terra, a morte rosnava e gritava, ansiosa por seu sangue.

No céu, as nuvens se afastavam e labaredas flamejantes se formavam. O fogo purificador cairia sobre a cidade. Cairia sobre os perversos e iníquos.

“Ninguém mais morrerá hoje.”

De maneira instintiva, concentrou toda a força em suas pernas e alçou vôo.

O vórtice ardente se concentrava cada vez mais na abóbada celeste. O calor já desmanchava sua pele infernal.

E caiu.

A coluna incandescente se forçava contra o solo. A única coisa que a impedia de alcançar seu destino era Arton.

Resoluto, absorveu toda a fúria divina para si. As chamas entravam por seus olhos. Olhos tão ardentes e determinados quanto seu inimigo.

“Tenho orgulho de viver e morrer sendo eu mesmo. Humano ou Demônio.”

E desapareceu para sempre.

Agora, conforme o pacto, entrego ao mundo a história de uma alma incorruptível, que apesar de tantos infortúnios e de meus mais sinceros esforços, jamais esqueceu quem era. A alma de um verdadeiro herói.

Um fenômeno curioso ocorreu na cidade após a divulgação de minha obra.

Seus habitantes, culpados e tristes pelo trágico fim daquele que os salvara de seu merecido castigo, refletiram sobre sua postura e forma de encarar a vida.

Gárgulas em formas infernais foram colocadas na muralha, e em várias outras construções. Todas apontavam para o céu, no exato local onde o rapaz recebera o golpe celeste. Uma homenagem àquele que nunca se deixou corromper, e que os protegeu, mesmo que não merecessem.

O coração do demônio se tornara um novo símbolo para a cidade, substituindo sua reputação violenta.

No seio das nobres florestas de Psykhé, havia Arton, a cidade dos heróis, de pessoas igualmente nobres, além de justas e corajosas. Desse recinto que inspirava honra e glória, surgiriam os maiores heróis que o mundo já vira.

“Primeiro verso, completo.”

~ Kaharr