A aula interrompida

Nota: o texto abaixo é a introdução para uma saga em construção intitulada "Sinistra".
Apreciações sobre enredo e personagens aqui em esboço serão bem-vindas.



A AULA INTERROMPIDA

“Viver é muito perigoso.”
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”


GUIMARÃES ROSA – “Grande Sertão: Veredas”





Elver Godines era muito popular entre os professores da Universidade Élfica de Gorodor. Com seu tranqüilo bom humor e seus conhecimentos estranhos e duvidosos, chamava muito a atenção dos alunos de ambos os sexos, mas especialmente das garotas que apreciavam o seu sorriso sardônico e as suas tiradas originais. Considerado um solteirão, esse fator a mais levava algumas das alunas a suspirar por ele, e nunca perdiam as suas aulas.
Certa tarde em que o tempo estava mudando, e nuvens que enegreciam e se encastelavam nos montes próximos anunciavam iminente aguaceiro, o Professor Elver ocupava-se com uma de suas aulas de Conhecimentos Gerais, matéria à qual ele dava um significado bastante eclético. A sala encontrava-se repleta de alunos, setenta por cento do sexo feminino, entre humanas, elfas, meias-elfas, meias-anãs e anãs. Elver discorria sobre as cavernas de Esbéria, em torno das quais corriam lendas insistentes e perturbadoras.
— Eu realmente estive lá nas minhas pesquisas, dez anos atrás — dizia ele. — Vi coisas admiráveis e assustadoras. Não é uma região onde se possa ir a passeio, como num piquenique. Há muitos perigos ao redor.
— Mas você não foi sozinho — disse uma vozinha no fundo da sala.
Todos os olhares se voltaram na direção da voz: uma garota miúda, elfa de grande e delicada beleza, e um olhar maroto.
— É fato. Alguns amigos estavam comigo; não há nada de mais nisso, pois não se anda sozinho em certos lugares.
— Fale mais sobre essa região e os seus perigos — implorou a elfazinha.
Ele respirou fundo, reclinou mais as costas no espaldar da cadeira e começou a discorrer:
— Esbéria é uma região fria e ventosa, bastante estéril. No passado remoto foi muito povoada e por raças diversas e foi palco de muitas guerras fratricidas. Com o tempo foi ficando despovoada, pois outrora o clima era mais ameno e grandes mudanças climáticas ocorreram. As lendas mais tenebrosas correm sobre as cavernas e seus antigos habitantes.
— É verdade — insistiu a garota elfa — que esse lugar foi habitado pelo Mal em estado puro?
— Mas o que é isso — disse o Golandrin. — Professor, essa Elanor é maluca.
— Tenho certeza que você também é. Todos nós somos, de um jeito ou de outro — Elver costumava dar essas respostas para cortar tripúdios dentro de sua classe.
Ouviram-se risos. O jovem anão Pif pediu a palavra e observou:
— Professor Elver, hoje em dia essas cavernas são desabitadas?
— Existem répteis e anfíbios nelas, e também morcegos. As lendas dizem que dragões já as habitaram, mas se isso ocorreu lá se vão milênios.
— E os cultos obscuros que existiram?
— Ah, essa é uma questão muito controvertida. Antigas tradições afirmam, sem dúvida, que existiu o culto maligno dos Senhores do Pórtico, e o exame de inscrições rupestres...
Mas nesse ponto da dissertação o celular de Elver soou e ele o atendeu com ar contrariado.
Trocou algumas palavras em voz baixa. De súbito, algo de insólito (para um elfo) aconteceu. Ele empalideceu. Alguns dos alunos perceberam isso, com admiração. Elver alisou o seu imenso pavilhão esquerdo — hábito que indicava algum pensamento rápido — enquanto mantinha o aparelho encostado no pavilhão direito. Por alguns instantes o semblante do professor, de ordinário tão tranqüilo e auto-confiante, pareceu simplesmente transtornado. Ele fez um esforço para se controlar, mas alguns estudantes mais próximos puderam escutar as palavras: “Não, isso não pode ter acontecido... aguente firme, eu vou até aí”.
Elver recompôs a fisionomia o melhor que pôde, mas a subjacência de uma repentina angústia não passou desapercebida às mentes mais ladinas. Ele deu um sorriso amarelo e, guardando o aparelho, pronunciou-se:
— Gente, queiram me perdoar mas é que eu estou com um problema importante para resolver. A aula de hoje está encerrada. Se me permitem, eu já vou.
Muitas vozes se ouviram exprimindo o seu espanto e a decepção com o término prematuro da aula. Elver recolheu os seus apetrechos didáticos mas ao se mover para ir embora foi abordado por uma jovem elfa, de orelhas bem pontudas, que comentou:
— Elver, aconteceu alguma coisa?
— Como assim? Sempre acontecem coisas. Não se preocupe — e assim dizendo ele sorriu para a garota e deu-lhe um tapinha amistoso no ombro.
— Sua despreocupação é forçada. Você está com algum problema.
— Todos nós temos problemas, Nina. Até você, posso apostar.
Ele fez um afago no cabelo da mocinha, que fechou os olhos de prazer, e se afastou, falando ainda com vários outros alunos mais chegados. Nina sentiu que lhe tocavam o braço; voltou-se e viu a Elanor.
— Isso não é normal, Nina. O que pode ser tão grave e tão urgente, a ponto dele interromper a aula?
— Também estou perplexa, Elanor. Mas o que é que podemos fazer? Só podemos esperar até amanhã e ver se ele nos explica o que houve...
— Nina, por favor, não esqueça uma coisa: ele é o nosso Professor Elver.
Minutos depois, Elver caminhava pelo vasto parque de estacionamento da universidade. Sua fisionomia estava singularmente fechada e seu braço esquerdo apertava firmemente a valise contra o corpo.
O parque era um labirinto de veículos, e era necessário ter bem em mente a localização de um auto para retornar a ele. Havia muitos marcos indicativos e poucos funcionários. Àquela hora, equivalente ao meio de uma aula, dificilmente alguém iria tirar um carro. Elver sentiu a solidão daquele descampado e tentou não se impressionar. Ao chegar ao seu carro, porém, duas figuras encapuzadas apareceram quase do nada, pois deviam estar ocultas entre os veículos, e o cercaram.
Dois ninjas.
— Você vem conosco — disse o mais alto dos dois.
— Vão embora, seus crápulas!
Elver pulou sobre um deles, mas o outro, o mais baixo, atingiu-o com uma pequena clava, em plena nuca. O mestre élfico perdeu os sentidos e foi rapidamente revistado.
— Não deve estar aqui! — disse o primeiro ninja, através de sua máscara negra. — Ele não seria bobo de andar com isso na roupa!
— Por que não? De certa forma, nosso tesouro está mais seguro se estiver junto ao nosso corpo!
— O que vocês querem?
A aguda voz feminina paralisou de susto os dois atacantes disfarçados. Eles olharam para as recém-chegadas: Nina, que havia falado, e Elanor, logo atrás, que acrescentou:
— O que fizeram com ele? Seus calhordas, larguem o nosso professor! Não te falei? Tinha alguma coisa errada!
Eles atenderam a ordem da moça — literalmente. Soltaram o educador, que se esborrachou no chão de cimento.
— Bandidos! — gritou Nina. As duas avançaram mas os ninjas pularam para longe, com dois saltos tipicamente nínjicos. Para sua surpresa, porém, as duas universitárias, com pulos ainda maiores, cortaram-lhes a fuga.
— Nós somos elfas — observou Elanor. — Vocês não vão escapar de nós tão facilmente!
— Suas malditas elfas! — rosnou o ninja mais alto. — Agora vocês vão aprender o que é se meterem com ninjas!
Os dois — que se moviam com esplêndida sincronicidade — fizeram ligeiros movimentos com seus braços direitos e logo havia “shurikens” — as cortantes estrelas de ninjas — entre seus dedos. Obviamente vinham de compartimentos secretos em suas mangas que se prolongavam em luvas inteiriças. Em seguida fizeram tênues movimentos de pulso, que num átimo anunciavam o arremesso de suas pequenas e mortais armas. Antes, porém, que elas fossem lançadas, dois dardos surgiram repentinamente atravessando o ar e se cravaram em seus polegares. Dolorosamente atingidos os terroristas largaram as estrelas, as mãos esguichando sangue.
— Pelo grande Iznogud! — bradou o ninja mais baixo e de olhos repuxados. — Quem é você?
Acabara de aparecer entre os carros uma garota alta e elegante, de cabelos fulvos cortados como os de um rapaz e olhos verdes impressionantes, felinos. Não era uma elfa; Nina e Elanor reconheceram uma colega de classe a quem ainda pouco conheciam, uma garota humana retraída, chamada Layza.
— Por que eu diria quem sou, se vocês escondem até a cara? Joguem as shurikens no chão e não tentem pegá-las! E os próximos dardos, se tentarem alguma coisa, irão em suas carótidas!
Eles praguejaram, mas obedeceram: a garota empunhava outros dardos. Layza dirigiu-se às elfas:
— Conseguem segurar esses dois, enquanto eu os revisto?
— É claro — disse Nina.
Ninjas, porém, conseguem se entender num simples piscar de olhos. Tendo trocado um despercebido olhar, de comum acordo eles deram grandes pulos simultâneos mas um para cada lado, tornando difícil agarrá-los. Ao tentar fazê-lo, Nina e Elanor esbarraram-se. Um dos bandidos subiu numa aeromoto de vários lugares, levantou vôo e foi buscar o outro. Não tentaram alvejá-las. Talvez por temerem a magia das elfas, talvez pelos ferimentos nos polegares, talvez porque isso poderia atrair os seguranças do “campus”. O fato é que foram embora, e as três meninas concentraram-se em socorrer o professor, que já gemia começando a voltar a si.
Nina abaixou-se e ergueu as costas de Elver, com delicadeza.
— Sente-se melhor, professor? Está com um galo na nuca!
— Obrigado por me ajudarem, meninas. Aqueles assaltantes...
— A quem está querendo enganar, Professor Elver? — ponderou Layza, acocorando-se junto a ele. — Não eram assaltantes. Deviam ser sequestradores ou assassinos profissionais!
— Alguma coisa eles procuravam, que poderia estar nos seus pertences. O que você possui de tão perigoso, professor? — indagou Elanor que, com Nina, ajudou-o a se levantar.
Ele esfregou a nuca. As duas elfas puseram as palmas de suas mãos sobre os cabelos de Elver, buscando curar o machucado.
— Eu já perdi tempo demais. Vou ter que ir agora — e assim ele procurou iludir a curiosidade das jovens.
— Precisa nos explicar o que está havendo — insistiu Layza.
— Mas por que vocês vieram até aqui? Por que me seguiram?
Elanor explicou:
— Eu e Nina sentimos que havia alguma coisa errada, alarmante, naquele telefonema. E nós te amamos.
— O que?
— Nós te amamos — confirmou Nina, sorrindo largamente. — É embaraçoso uma aluna dizer isso ao mestre, mas a ocasião é atípica e justifica a nossa franqueza.
Ele passou a mão nos cabelos e sorriu, um sorriso complacente:
— É uma coisa folclórica, isso de estudantes se apaixonarem pelos ensinadores. Mas é também, em geral, uma coisa tão platônica!
Um frio silêncio recebeu essas palavras aparentemente zombeteiras. Por fim, Elver Godines dirigiu-se à garota loura;
— E você, Layza, qual foi o seu motivo?
— O mesmo delas, Elver. É natural que uma mulher se preocupe com o homem a quem ela ama.
Frisou sutilmente a palavra “mulher”, como se intentasse dizer que não, ela não era uma adolescente boba e romântica; sabia o que queria.
O constrangimento de Elver foi quebrado por novo toque do celular. Ele o atendeu sobressaltado:
— Alô? Sim, é o Elver. Ah, estou atrasado. Tive um contratempo, mas me livrei dele. Depois explico. O que? Ah, já estou indo! Aguarde!
Ia desligar, mas a Nina arrebatou-lhe sem aviso o aparelho, olhou-o e devolveu-o imediatamente.
— Que ideia é essa?
— Eu já vi o número, professor. Agora vamos, não deixe o seu amigo esperando!
— Como assim, “vamos”? Eu vou sozinho, vocês três ficam!
— Professor Elver — disse lentamente Layza, com uma frieza de gelar o sangue nas veias. — Se tentar entrar nesse veículo sem nós, verá que não consegue. Não queremos que alguém lhe faça mal e iremos junto para protegê-lo. Ou isso, ou você não sai daqui.
— Apoiamos o que ela disse — acrescentou Nina. — Se for preciso vamos entrar à força no seu carro.
Elver ficou muito sério. Abriu a porta do veículo e as duas elfas apressaram-se a entrar no banco de trás. Só então notaram que, com isso, deram a Layza a chance de sentar ao lado do querido professor. Este, aparentemente conformado, pôs em movimento o seu aerocarro Pimenta modelo azul, comentando:
— Vocês não sabem em que estão se metendo...
— Seja o que for, não vamos recuar — afirmou Elanor.
Nina dirigiu-se a Layza:
— Sabe, Layza, você pode ser apenas uma garota da raça humana. Mesmo assim... você é sinistra.
Layza sorriu:
— Muito obrigada, Nina... se é que isso foi um elogio.



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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 28/04/2019
Reeditado em 28/04/2019
Código do texto: T6634434
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