Por dentro do Tufão
                                           
    

 
                         — Dói?
                    — Imagine a eletricidade passando pelo seu corpo. Mas parece que está ligado a uma tomada. Um, dois, três, a luz acende e se está "no ar". O inacreditável aconteceu. Antes fosse o roteiro de um filme, não é. Uma situação inteiramente nova e real. Depois começo a me sentir forte; tipo, muito forte. Quando respiro parece que o mundo é todo meu.
 
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                       Cresci rapidamente, forte e saudável, ossatura reta sem desvios e com boa consistência óssea, pernas e braços bem musculados, a fronte larga, os olhos colocados distantes um do outro, permitiam-me um ângulo de visão além do comum, e com isso podia observar tudo que acontecia à volta. Inquieto, arrebatador, veloz. Só nos estábulos da fazenda encontrava libertação. Era onde me refugiava sempre que permitiam.

                       — Tufão! Cuidado! — os peões deram-me o apelido. Era como me viam: uma tempestade que varria o caminho. Pura natureza. Eu provocava, chorava, brigava... Era um tal de desobedecer. De certa forma, já mostrava essa tendência de hoje...
                      
                       Passei a tarde toda no dorso de meu animal preferido. Ajudei o capataz na limpeza nas baias. Recostei-me em um monte de feno e, acredito, dormi. Não sei se foi um sonho, mas senti uma presença mágica. Foi como se me passasse uma descarga elétrica que desconjuntava e recompunha meu corpo. Estava iniciada a cerimônia: minha estrutura ia se ovalando, alongando, as mãos caíam para o chão e, assim como os pés, pesavam. Estava plantado com firmeza no solo: quatro patas me prendiam à terra, unhas grossas, escarvantes; e dava longos fungados, arrancando ciscos das narinas. Os cabelos ficaram grossos, suarentos, porejantes.  A forte luminosidade não me afetava os olhos, parecia que o tempo e o espaço iam se esvaindo, entrando em outra realidade...

                       Acordei sentindo-me diferente. Olhei para meu corpo, procurando o porquê. Senti o sangue congelar nas veias. Sem respiração, percebi o absurdo: era em um cavalo!! A sensação era incrível, indefinida e assustadora! Não entendia o acontecido, não havia explicação! Preocupei em me esconder. Apavorado, corri o mais rápido que pude, sem olhar para trás...

                       Ágil, saltei os cercados até a lagoa e pude ver uma imagem nítida que se refletia no espelho das águas. Aos poucos fui assimilando aquilo... Bloco compacto de carne suada em balanço rítmico. Estava livre na natureza, um ser independente. Galopei pela pradaria.
                      
             Era quase noite, lua surgia cheia e o campo, furnas e abismos; galhos secos, plantas espinhentas, água rola-rolando em desvãos, limos nas grutas, lagartixas. Sombras enormes vieram pousar sob as árvores, saídas não sei de que lapa, emitiam conjuntas, estranhos sons de assombrar. Era um cavalo completo — não um centauro, metade humano, metade animal (conhecia o mito de Ixião que se uniu a uma égua e gerou o híbrido), mas, preso a uma forma equina, mantinha os conflitos típicos dos seres humanos: razão, emoção...


                       Fui visitar o ninho da onça, ali, naquela ribanceira; uma onça (uma onça!) escolhera uma fenda para morar. Achei a cava e ali estava só a memória da onça, um vago temor ainda vibrando no ar. E, deitei, naquele ninho, sobre um dos lados do corpo, com a cabeça encostada no chão. Relinchei de manso quase ronronando e dormi. Dormi.
 
                       Veio o sol e com ele a lucidez, os conflitos:

                       — O melhor é experimentar! Testar habilidades, reconhecer o novo porte, guiado pelos instintos, a sobrevivência — queria contar minha aventura, mas não havia voz articulada e o medo me proibia qualquer manifesto. — Uma aberração? — Não tinha aonde ir, para quem ir. Era um jovem sem corpo, sem roupas, sem gravidade, sem nada.  Estava só e a solidão pesava. Podia pegá-la, deglutir as porções. Eu era um bicho. Andando, longe da fazenda. Arvoredo em flor, despido de folhas...

                       Foi quando vi o cavalo pastando flores amarelas em tapetes densos pelo chão. Corria-lhe um suco amarelento pelos cantos da boca, fechava os olhos, as flores viravam música, doce ruído — eram como meninas delgadas oferecendo as faces. Experimentei comer delas, foi ficando pesado. Procurei novas touceiras, disputando com o outro animal, que, com a cauda, espantava os insetos. Uma mansidão percorria-lhe o corpo, provou o capim, comeu musgos, trevos.

                       — Era bom ser cavalo, ficar ali entre as flores — também tinha fome. Comecei mastigando uma flor, por distração. Um relincho macio, filtrado do companheiro me fez observá-lo. —Ah! não era um cavalo, era uma égua! Arrependi de ter defecado diante dela — então continuava com os temores humanos? — contemplei-me, era um cavalo bonito, luzidio, forte. Senti alguma curiosidade sensual, sabia que poderia amar aquela égua — ainda podia conter o sentimento! Seria perigoso começar qualquer coisa?

 
                       — Bom correr contra o vento zunitente nas orelhas, acariciante na cara, frio-doce no peito — cavalo em disparada, em relinchos. — Será que vai durar muito? Não sinto o tempo passar! Pois é, não sei há quanto tempo estou assim. Sei que há dia e que há noite, mais nada. É bom sentir o dia, a noite, pastar quando tenho fome, galopar algumas vezes. Como não tenho dono, ninguém tentou ainda cavalgar-me ou atrelar-me a uma carroça — pensava...

                       Outra manhã sem bater de sinos. As flores, ligeiramente orvalhadas, tinham um doce sabor frio. Nunca achava a companheira a meu lado, nem a descobria de imediato, quase sempre em ângulos inesperados... sempre bela. E vínhamos chegando, sempre uma touceira mais densa de capim ou um forte perfume de flores convidando ao aconchego. A música dos dentes remoendo. O calor do meio-dia queimando os dorsos calmos. A noite musicada de sapos, estrelas caindo, caindo... Nunca nos alimentamos dos vaga-lumes, medo da luminosidade interior.   Esquecia-me (e isso não me custava) — o que existiu antes. Era, apenas, densamente animal.

                       A égua nunca me diria o nome, nem quem era. Nem dizer, ao menos que me conheceu. — Eu a queria assim, égua, despojada do humano, sem identidade, nem situação. Nenhum tremor em seu largo peito. O amor apenas acontecia, e não havia complicações. Mas ela começou a vigiar, temor de que comessem das flores, começassem a pastar por ali, perturbassem a calma. Uma criança (ainda bem que uma criança) esteve muito tempo com uma haste na boca, deixou-a cair, entontecida em nossa contemplação.

                       Descobri uma forma de deter os meteoritos: era só fitá-los com atenção, a cabeça imóvel. (O olhar dos cavalos impede-lhes a morte breve e ficam brilhando, por muitas horas, sobre nossas cabeças). Tentei com um, quase-morrente. Impedi a queda, a tempo. Tremeluziu, rolou, incandesceu, refez a trajetória e, indeciso, começou a derramar fagulhas sobre nós dois. Isso nunca me aconteceu. Quem sabe, talvez, tivesse o apanhado no momento quase da desintegração. Fiquei alegre, estupidificado diante de nossa capacidade...

                       As flores começaram a escassear devagarinho, quase imperceptivelmente. A princípio, nem notamos. Uma falha aqui, outra ali, touceiras meio acabadas. Caminhadas cada vez mais longas em busca do alimento. A grama não nos sustentava e nem enchia de mágicas os corações. Cavalos não se alimentam de larvas, gosto ruim o dos gravetos. Era certo que o perigo de gente comer das flores diminuía. Mas, até quando resistiriam?
 
                       Certa manhã não encontrei a companheira. Senti pela primeira vez o escoar do tempo e a dor estúpida de cavalo ferido. Desde o momento em que a encontrei, sentia algo intenso queimando dentro de mim. Um desejo forte de ficar mais próximo dela, partilhar alegrias ou tristezas. Procurei-a. Ela não voltou.


                       De repente... o laço no pescoço, os puxões em direção da caminhoneta e depois (quanto tempo depois?) uma planície sem fim. O silêncio podia ser apanhado em camadas moles e flácidas. Um grande sol avermelhado se fixara no longe horizonte. Frearam para me deixar comer alguns musgos. O sol devolveu-me a paz ao estômago. Ficaram consultando o céu durante todo o tempo em que estive descansando. Não sabia para onde iam nem o que fariam comigo; somente aquele desconforto galopante nas veias...

                       Outros puxões, entre corcovas e coices, levaram-me a um piquete... Então a vi, cheia de marcas, cansada, resfolegante. Manchas e talhos de varais e de chicotes. E deixou-se ficar ali, muda de cansaço, os olhos tristes e para sempre apagados. Só no outro dia, um dia quase sem flores — relinchou e se encostou em mim, de manso e inconformada.

                       — Nós, os cavalos, não suportamos a violência. A maldade sempre advinda do mundo, porque as esporas e os freios e os fardos e todo o jugo humano não nos ferem à superfície; explodem lá dentro, bem no fundo sensível de nossa mais íntima consistência.  Ficamos mortos por dentro. E já não nos resta o consolo das flores. Essa consciência do sofrimento é o sinal mais certo de que estamos voltando para o frio território humano... — se ela pudesse discursaria.

                       Fazia, pela primeira vez, um dia cinzento, pluvial. Achava-me fraco, sem coragem para fugir ou defender-nos. Mesmo que eu andasse muitos quilômetros à procura das flores, não as encontraria. E, uma única que achasse, traria para minha égua, entre os dentes, presa pela haste. (Um cavalo com uma flor!) — e, em silêncio, ofertaria à companheira quase morrente. Mal daria para mastigar.

                       Eu me cansara da difícil caminhada, os cascos tinham afinado, perdera os músculos da perna. Fazia tempo que não comia das flores, há muito desaparecidas. Olhei para a companheira e senti que ela estava salva por alguns momentos. Dormi entre pressentimentos.

                       Ao despertar, (a cabeça latejando numa dor insuportável, como se agulhas estivessem perfurando meu crânio) descobri-me, quase sem susto, em dor, ali deitado perto da égua mansa, irremediavelmente gente, com braços e mãos, rosto e olhos, nu, ainda coberto de detritos, magro, cansado.

                       Levantei-me, ainda capengava, um pouco gente, um pouco bicho — mas Túlio, não mais Tufão — e saí depressa, sem olhar para trás. Não queria outra transformação. Na lembrança da égua haveria de perdurar sempre a imagem de um cavalo, só cavalo, puramente cavalo. A égua ainda se voltou para mim com um olhar triste, inadiável, compreendendo.

 
                       — Ó de casa! Perdi-me por estes lados, andando sem destino! Acudam! — Olhos surpresos em volta.  E achei-me de novo à mesa. Tudo limpo. O cheiro do pão, a faca deslizando mansamente. O café. Bebi depressa, tomado de grande excitação.

                       — O garanhão fugiu! Deve estar longe, nem poeira deixou. — o peão avisou os patrões.
 

                       Era depois do almoço. Meu lugar era aquele... Havia chegado em casa. Eu-andarilho, as estradas, o pó, o orvalho. Eu sei que o caminho foi difícil, melhor dizer: desvio. Para muitos teria sido o caminho-razão de tudo. Olhei o sol, da sacada, a vista ardeu. Os peões agachados, ocupados.

                       — Você teve medo? — tio Tonho, veio da casa, olhando em volta para ter certeza de que não haveria ouvidos indiscretos por ali. Se seu pai fosse vivo...

                       — O tio sabe o que me aconteceu? — fui ao encontro dele, confuso, agitado.

                       — Seu batismo! Eu não tive esta sorte. Não sou primogênito.
                       — Co-como é is-isto? Po-por que nã-não me pre-prepararam? — gaguejei.

                       — Quando se fala de sinas estranhas, parece bastante glamuroso. Os pseudo-amigos não param de provocar, querem desvendar o mistério dos sumiços, da beleza máscula e da força cavalar. Por isso. E, podia que ser que a transformação não viesse...

                       — Que-quer di-dizer... — fiquei paralisado por alguns instantes, sem saber o que falar — sou ti-tipo um lobisomem?

                       — É. Por isso criamos o Haras. Melhora o disfarce ou é porque neles nos sentimos bem. Não queremos jornalistas, cientistas, curiosos perturbando. Você seria uma cobaia de laboratório. Precisa aprender a controlar cada reajuste do DNA, transformar-se no momento que desejar. É treino.

                       — O se senhor va-vai me a- ju-judar?

                       — Prometi a seu pai depois do acidente.

                       — Mais u- uma coi- coisa, tio. Que-quero com- comprar uma égua. E-ela foi ca-capturada por esse pessoal que me trouxe para cá.
                       — Sim. Vamos negociar, sem rixas — ponderou o homem. — E pare com essa gagueira

                       — Se-se um hí-híbrido como eu, tiver um filho com uma... égua, co-como fica? — envergonhado, o rapaz gagueja com mais intensidade.

                       — Meu menino se virou, hein? — o homem ria, tentando explicar ao rapaz o que ele era ou o que estava se tornando. — Quando demasiada diferença cria marcas, você se torna uma criatura à parte do mundo. As pessoas o olham e sentem-se inconscientemente perturbadas. A partir desse ponto, sua aura levanta um inquebrável muro de solidão que mantém os outros à distância. Esse muro só pode ser atravessado por alguém que compreenda a desordem em você. Não queremos que sofra! Acabará encontrando uma mulher especial. Quanto, à égua, temos que esperar para ver no que dá.

                       Ao ouvir essas palavras, uma artéria pulsante brotou da testa de Túlio enquanto sua pele ficava avermelhada. Teria uma missão nada fácil pela frente: convencer a si mesmo de que, apesar das transformações, ele era uma pessoa igual a todas os outros.                      Deveria equilibrar-se à beira do abismo dos problemas sociais e individuais, ante os quais a sua personalidade poderia se tornar cada vez mais ambivalente e, por fim, estilhaçada. Fitou bem os olhos do tio e suspirou:

                       — É... não sei bem se recebi um dom ou uma maldição!
 
 
                       — É isso, querida. Perguntou se dói. Não dói. Sobrevivi. Teso, em pane. Como quem faz uma aposta, uma viagem assustadoramente fascinante pelo buraco negro. Ou liberto, sem rédeas, sem leis, sem nada. Na mesma euforia. O que está em jogo é o mundo tal como o conhecemos. Não foi fácil aprender a me controlar, descobrir os gatilhos... Pedaços de noites e auroras indistintas se contrapõem ao prazer da cavalgada. Você me aceitou. Sem ciúmes das éguas — sussurrou irônico. — E, chega de falar de mim. Estou é curioso para ver o ultrassom do nosso bebê. Está preparada?





Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 01/04/2019
Reeditado em 01/04/2019
Código do texto: T6613007
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