Aquela que nos habita

Eu não sabia há quanto tempo estava andando, não sabia quanto mais iria suportar, minhas pernas estavam prestes a ceder, meus olhos já não se mantinham abertos. Meus pés percorriam vastas superfícies, cobertas de neve, areia e grama, vagando por vales, seguindo para todo e nenhum lugar, há procura de novas memórias.

Meus olhos seguiam baixos, o vento maltratava minha pele pálida, um gosto enferrujado marcava meus lábios, meu cabelo insistia em voar para todos os lados, levando meu capuz, e minha esperança, consigo. Em minha mente a tempestade se aproximava lentamente, cobrindo qualquer resquício de luz que existira nela anteriormente.

Olhei para trás uma última vez, para a aquarela em tons de cinza, cercada pela coloração das árvores, que se mexiam harmoniosamente seguindo o vento. Apenas meus passos eram recheados de falsos devaneios e escuridão, sem cor, sem vida.

Com um longo suspiro fechei meus olhos, ouvindo o balançar das folhas, o vento se chocava contra o chão, bagunçava meus cabelos e massageava minha pele, uma orquestra gentil e melancólica que guiava meus passos. Abri meus olhos mais uma vez, focando no topo das árvores e em toda a magnitude desse mundo ao qual eu não pertencia, mas que tanto precisava de mim, que tanto clamava por ajuda, que não conseguia se manter vivo e brilhante sozinho, que precisava de alguém para roubar parte de sua escuridão.

Forcei meus pés a se mexerem novamente, mesmo contra minha própria vontade, fitando o ponto de luz à minha frente, a poucos metros se apresentava a silhueta de uma pequena cidade no centro de um grande vale. A única coisa que me recebia ali era um grande pórtico branco, que levava para a principal e única rua da cidadezinha. Caminhei a passos longos e pesados, adentrando a cidade com nervosismo. Havia uma pessoa aguardando minha chegada e eu não queria fazê-la esperar.

A cidade inteira brilhava, parecia inteiramente entalhada em uma barra de ouro, como se o próprio Sol tivesse se alojado na Terra. O lugar irradiava uma aura de vida pura, todos os tons e todas as cores impregnavam nas paredes, no ar, e nas pessoas ao meu redor... era ofuscante. Risadas vinham de todos os lados, invadindo minha mente e confrontando a tempestade que se acomodava lá dentro. Abaixei os olhos, toda aquela luz era incomoda.

Não havia muitas pessoas vagando pela rua, as poucas que ali estavam passavam seus olhos por mim, sem me ver, como se eu não existisse. Elas não estavam precisando de mim, não estavam à minha procura, então não me viam.

A alguns metros um grande volume de pessoas chamou minha atenção, o ressoar de sinos guiou meus passos. Havia um grupo de pessoas saindo de uma pequena igreja, pessoas orando, se curvado, agradecendo, procurando a felicidade absoluta em um lugar tão vazio e monocromático quanto eu... as pessoas eram realmente estranhas.

Um homem desceu alguns degraus da escadaria, olhando para o céu, como se buscasse um sentido para a vida, seu corpo trajava uma aura de pura escuridão e seus olhos se assemelhavam às nuvens tempestuosas de minha mente. Suas íris descansaram em mim, suplicando por ajuda, como se me conhecesse há anos. Mergulhei a procura das mais dolorosas memórias que assombravam sua mente, ali eu encontrei uma pesada tempestade e a chuva castigava tanto quanto podia. Roubei dele suas memórias, carregando em meus ombros parte de seu fardo, oferecendo um pequeno motivo para seu coração continuar batendo.

Quando pisquei, lágrimas escorregaram por suas bochechas, indo de encontro ao chão, um sorriso dançava melancolicamente em seus lábios, como se dissessem um doce e gentil obrigado. Às cores voltavam a sua pele, seus cabelos castanhos eram desgrenhados pelo vento, enquanto seus olhos, agora verde mar, já não focavam mais nos meus. Eu já não estava mais ali, não era ele que mais precisava de mim naquele momento, nem foi por ele que cheguei até aqui, mas estendi minhas mãos mesmo assim.

Segui a pequena rua, tentando organizar as memórias que não me pertenciam, mas que eram as únicas que eu possuía, milhares de memórias de centenas de pessoas diferentes se aninhavam dentro de mim, me impedindo de esquecer o peso que tinha sido designado a mim.

Todas às portas e portões daquelas eufóricas e alegres casas estavam fechadas para mim, eu não pertencia àqueles lugares e nem tinha um lugar em seus pensamentos, naquele momento. Mas existia alguém que me esperava todos os anos, que mantinha suas portas escancaradas para que eu entrasse.

Essa casa não possuía mais cor, como se alguma chuva às tivessem levado embora. Sem muitos vizinhos por perto, apenas o silêncio gritava em meus ouvidos, como se me recebesse de braços abertos.

Passei pelo pequeno portão da casa, um caminho de pedra me levava até a porta principal, algumas plantas murchas enfeitavam o jardim, clamando por uma boa chuva. Abriguei-me sob o alpendre, a porta estava aberta.

Ao entrar, arrumando o tapete, que se encontrava jogado em um canto, avistei dali uma decoração simplista, bagunçada. Na entrada havia uma pequena bancada para sapatos, alguns livros de diferentes assuntos descansavam sobre ela, junto com um pequeno vaso de planta, onde um cacto se fazia presente.

Havia algumas peças de roupas que saiam do cômodo ao lado, onde ficava o quarto, que era iluminado fracamente pela luz que vinha do corredor, as janelas se encontravam trancadas, não havia cobertores sobre a cama, apenas um lençol branco, amassado. Não tive coragem para mexer em nada, aquele era seu refúgio, por mais familiar que fosse a mim, não era meu lugar.

Virei às costas para o quarto, andando a passos leves até à sala, o televisor não estava mais ali, o roteador estava jogado no chão, os cabos arrancados, o celular se encontrava dentro da lixeira na entrada da cozinha. No sofá havia centenas de folhas espalhadas, desenhos em preto e branco, milhares de cenas diferentes e vários e vários poemas e histórias cravadas no papel em uma letra bagunçada, mas incrivelmente bela. Em um canto, sentado em uma mesa de jantar, com uma xícara de café na mão esquerda, estava seu autor. Uma caneta repousando sobre seu indicador, rodeado de papéis amassados. Os óculos, que emolduravam seu rosto de traços fortes, caiam sobre o nariz com frequência. Os cabelos castanhos estavam bagunçados e úmidos, o cheiro de shampoo invadia o cômodo. Ás vezes, enquanto escrevia, semicerrava seus olhos verdes, riscando a última palavra que escrevera, com rispidez.

- Você está atrasada. – murmurou entediado, sem tirar a atenção do que escrevia, movendo uma mecha de cabelo da frente dos olhos.

Andei até a mesa, retirando alguns papéis de cima da cadeira, juntando todas as folhas que não estavam amassadas no chão em um pequeno montinho. Quando me sentei, peguei cada folha e às separei pelos números das páginas, como sempre fizera.

- Leia. – Bocejou me entregando à última folha que escrevera. Ele murmurou alguma coisa enquanto levantava, sua barba estava por fazer, o cansaço fazendo-o parecer muito mais velho do que realmente era.

Li cada folha, rapidamente. A melancolia de cada texto dançava pelas páginas, criando novas realidades, realidades aquelas que tornavam o autor tão amargurado e monótono, que o faziam perceber o quão tediosa sua vida era. Porém, por mais belas que fossem, suas histórias já não possuíam mais aqueles cenários e personagens que outrora foram escritos com tanta habilidade. Enquanto lia, o vi lavar uma xícara, preparando mais café, o cheiro invadia minhas narinas, nostalgicamente.

Quando voltou, empurrou seus papéis para o lado, levando alguns ao chão, sentando à minha frente, com a nova xícara de café em mãos. Enquanto eu lia às últimas páginas, ele observou o céu azul lá fora, mas sua mente parecia estar um pouco mais longe, vagando por um de seus mundos fictícios, tentando encontrar algo que não estava ali, nesse momento. Li a última frase, grampeando as folhas, todas juntas, e entregando-as para ele.

- Não precisa me dizer o que achou. – agarrou às folhas de minhas mãos, às jogando descuidadamente na mesa – Não vou publicá-la de qualquer maneira. Café?

Sem nem esperar uma resposta ele largou a xícara na minha frente. Puxei o capuz para trás, mas não toquei no café.

Seus olhos se mantinham focados na mesa, como se considerasse o fato de dormir ali mesmo.

- Não tenho coisas novas para te mostrar. Nada de novo acontece a bastante tempo. – Sua voz falhou, me fitando com mais intensidade do que eu esperava, suas olheiras indicavam longas noites em claro. - Há muito tempo já não sei quem sou, já não entendo mais a mim mesmo. Então, se nem a mim posso entender, como poderia entender o mundo que criei? Como poderia fazer meus personagens sentirem algo que não entendo? Não vejo um real motivo para não desistir de tudo. – Ele suspirou pesadamente, passando às mãos pelos cabelos bagunçados - Não importa quantas vezes você desapareça, nunca te esqueço, você sempre acaba retornando. Então pensei apenas em me acostumar com isso.

Entre essas quatro paredes uma tempestade castigava nossas peles, cobrindo a luz que, em algum momento, estivera ali e que agora brilhava, solenemente, do lado de fora.

-Se não tenho nada para lhe mostrar, então porque está aqui? – disse ele, trazendo seus olhos aos meus mais uma vez, estavam vazios, como se nem ele entendesse o porquê de ainda estar conseguindo se manter acordado. Mergulhei fundo em seu olhar, vasculhando sua mente, à qual eu conhecia tão bem. Não havia cenas realmente felizes lá dentro, algumas mais calmas que às outras, verdade, mas nenhuma o mostrava com um sorriso estampado no rosto, apenas aquela carranca de desânimo, que se aprimorava com o tempo.

Quando pisquei novamente, seus olhos permaneciam fixos aos meus, tão angustiados quanto antes, como se nada tivesse mudado, uma pequena frustração tomou conta de mim. Como poderia ele, sem nem tentar se esforçar, esperar tanto de mim? Levantei de minha cadeira, seus passos logo atrás dos meus. Puxei meu capuz sobre meus cabelos novamente, atravessando a sala, chegando mais uma vez à porta de entrada.

- Eu disse que não tinha nada novo para oferecer a você, não fiz nada que pudesse me deixar orgulhoso, muito menos feliz – aquelas palavras foram pronunciadas com um gosto amargo, como se já não suportasse mais aquilo, como se cada batimento de seu coração o irritasse profundamente.

Aquilo era o máximo que eu podia fazer, eu não era gentil, não entregava soluções, apenas pequenas opções, caminhos a serem seguidos, trazendo a tona às piores memórias das pessoas - vasculhando suas mentes mostrando a elas o que haviam feito, o que haviam vivido -, e essas então, tornavam-se toleráveis, deixavam de doer tanto, pois agora, não a carregavam sozinhas, era cruel, mas cada um deles segue o caminho que escolheu seguir, eu não tenho o poder de mudar isso, talvez fosse isso que ele não entendia.

- Vocês não precisam de motivos para viver, muito menos de mim. Se vocês se lembram de mim com tanta frequência, significa que em algum momento não serei mais necessária em suas vidas, significa que desistiram delas e que nada do que poderiam ser à partir daqui importa, que tudo que fiz por vocês foi em vão. Vaguei por muitos mundos, e ninguém me manteve em suas memórias para sempre. – Falei antes de sair, sem olhar para trás, para todos aqueles que eu via, para todos aqueles que compartilhavam daquelas mesmas dores, naquele mesmo momento, para todos em todos os lugares em que estou nesse momento – Nunca pertenci, em momento algum, a vocês; nunca pertenci as suas personalidades, sou apenas um falso suporte. Encontrem suas próprias âncoras, façam de vocês mesmos um motivo de orgulho, não busquem suas felicidades na escuridão. Mudem suas vidas com suas próprias mãos.

Quando saí, fechei a porta. Sem esperar uma resposta. Não panejava mais voltar ali, pelo menos por algum tempo. Esperava não precisar mais habitar aquele lugar, esperava que a Tristeza não precisasse mais voltar ali.