CONTOS DO INVERNO NUCLEAR- REGRESSÃO- PARTE 3 (Por Edgar Lins)
... não era Mamany quem o carregava... ela não possuía asas... mas quem o levava?
Elgor abriu os olhos e ao seu redor um mundo de cores jamais vistas com tamanha intensidade explodiu em feixes cintilantes. Não conseguia sentir seu corpo, planava numa velocidade inimaginável... mas não estava planando... algo o carregava entre suas garras gigantes... um ser disforme e colossal o guiava por um cenário que o lembrava um sonho... no entanto seu coração explodia em descargas de uma energia desconhecida... enquanto uma voz vibrante sibilava dentro de sua cabeça...
“Prepare-se... Olho... prepare-se pra ver...”
Elgor sabia que estava vivenciando algum tipo de transição mística e pensava que era isso o que acontecia quando se morria... mas sua consciência parecia tão perfeita quanto momentos antes... ele se deu conta de que percebia perfeitamente o cenário ao seu redor... um tubo em espiral que o guiava numa velocidade que vencia as barreiras do tempo e do espaço... de repente, tudo parou...
Luz...
Tudo era só Luz...
A mais pura Luz...
“Elgor... filho de Razimoth e Sarahbedah... abre em ti a porta que te fará ver o que precisas... guarda em Ti a verdade que será plantada... Tua voz, será refúgio para milhares, se assim quiseres...”
A Voz, vinha de dentro e de todos as partes...
Elgor desejou responder... mas quando tentou usar as forças de seu corpo para se desvencilhar da força que o prendia, se deu conta de que seu corpo de luz, sua alhmorium, vacilava presa a um cordão prateado... incandescente e crepitante... seu corpo verdadeiro... o ser místico que o levara pelo portal desconhecido agora alçava um voo ainda mais alto, lembrava uma Ave de Shynion, só que muito maior... e logo em seguida, descia como um raio cortando o mar de luminosidade que era o sonho em que sua vida se dissolvia... Elgor consegue lembrar da faca que Mamany empunhara em algum momento antes de tudo aquilo que lhe acontecia...
Escuridão...
Quando o silêncio sepulcral se desfez após um intervalo de gerações silenciosas, Elgor sente algo tocar-lhe a pele...
É o vento. Um outro vento. Seu cheiro, é desconhecido...
“Abra os olhos Elgor... esse, foi o início do Fim... Olhe, Olho... o que os Homens foram capazes de fazer...”, outra vez, a Voz falara em seus ouvidos.
Elgor está diante da paisagem mais deslumbrante que já se pronunciara em frente seus olhos. Um verde reluzente cintila sob um dourado desconhecido para sua visão, luz sobre as pastagens de um belo bosque, montanhas se erguem e seu “espírito” paira em grande velocidade por cima de rios e mares, e ele vê espécies nunca antes vistas desfilarem sob seu olhar maravilhado. Seu peito ferve com o calor que provém de um sentimento que jamais experimentara, e ele pede a Cronahn que o guie mansamente até o descanso eterno... se ele tiver morrido... mas seus olhos estão cada vez mais abertos... veem tudo... e aquilo que via, não era Terranya... não era... Elgor ergue os olhos ao céu... e uma cor o faz paralisar...
Azul...
Era azul...
“Onde estava a Névoa Escarlate?”
Era a Terra... O Mundo Prometido para a Oitava Restauração... o Mundo destruído pelos próprios filhos...
Um Ser dourado e descomunal surge por detrás de uma camada gasosa esbranquiçada que ela jamais vira, as nuvens maciças se deslocam em cósmica expansão e Elgor sente sua Chama Virtuosa se aquecer... era dali que vinha essa Luz... esse calor... que avivava forças desconhecidas e adormecidas... era ele...
“Cronahn... esteja comigo...”, Elgor sussurra preces silenciosas... sente que está diante de mistérios insondáveis... estava vivendo uma experiência transcendental...
Rat surge... céus se iluminam e se aquecem... Rat banha seus filhos com o brilho que um dia, uma eternidade após, seria apenas um segredo intocável...
O Deus acima da Névoa... Elgor o vê... o louva...
Rat... o Sol...
“És real... Poderoso Rat... pela compaixão de Cronahn... és real, poderoso Deus Sol... por que nos deixastes?”
Elgor, está em transe. Uma energia borbulhante explode dentro da parte dele capaz de recordar sobre quem ele era antes de estar vivendo o que vivia...
Seres minúsculos caminhavam entre milhares de repente abaixo de seus pés, o cenário movia-se de forma onírica, Elgor agora flutuava e observava os seres que lembravam em quase tudo, exceto pelas feições do rosto, o povo dos Melgrows, e o medo o toma como tomaria a qualquer um que se visse diante do covil das feras mais ferozes. Esses seres se moviam dentro de caixas que se deslocavam incessantemente, eram muitos, as tocas onde viviam eram altas, se perdiam diante de seu olhar estupefato e de sua experiência sem precedentes. Ouvira falar a respeito de muitos rituais que podiam trazer a Visão dos Tempos, porém nunca acreditou que pudessem ser verdadeiros. Agora, vivia o que não sabia e se deixava levar como um resignado diante de seu destino. Elgor era incapaz de saber que estava em Hiroshima, Japão, 06 de Agosto, ano de 1945, e em instantes veria o início do Fim... um dos pontos mais elevados da maldade humana...
Uma grande ave barulhenta passa acima de sua cabeça com um estrondo de trovão. O avião, ao passar pelo ponto estratégico, libera sua carga. Um outro “Deus”, que não é Rat, explode no ar...
O clarão da bomba de urânio encandeia a visão de Elgor por alguns instantes, a fumaça do cogumelo atômico sobe em uma infernal espiral, e logo ele vê o espetáculo da destruição que se revelava como as páginas de um antigo livro. O calor é excruciante. Num lapso de tempo indeterminado, Elgor está no meio da cidade em chamas, seu espírito arde com a dor mais terrível que experimentara... e ele sabe que essa dor é a dor dos seres carbonizados que se amontoam aos milhares sob sua visão... os seres atacados que ainda estão vivos se deslocam com as peles de seus corpos derretendo... Elgor sente o que eles sentem e não consegue conceber qualquer prece que justifique um ser causar tamanho sofrimento a outro... a cidade destruída chora lágrimas invisíveis... lágrimas de um profeta apedrejado... Elgor está em prantos enquanto pensa “o que eles pensavam que ganhariam com tamanha falta de amor? Esses eram os Homens? O que foi a Humanidade?”
A Voz, diz...
“A Ti, Elgor... será permitido saber...”
A história que se desenrolou no espaço da Eternidade que Elgor ousou adentrar, introduziu em seu ser uma mensagem que somente ele poderia entender e que se fixava em sua constituição como Vivente. Numa fração de tempo indeterminado e insondável para sua mente, toda a História da Humanidade se desenrolou como um filme, numa experiência interna, todo o conhecimento oculto de Mamany estava sendo transferido para Elgor através da experiência vibracional gerada pelo Sacrifício de Pawgrynon, e Elgor pôde assistir como em um espetáculo o início da Humanidade, sua geração e a Criação da Sétima Restauração, Terra, por Iaweh, até o início do conflito armado que culminou na Guerra Nuclear que dizimou quase 98% da população em sua fase inicial, e que anos depois, alterou o clima e todo o ecossistema da Terra, levando inevitavelmente, após um primeiro ciclo secular, à metamorfose total de toda a estrutura e toda a ordem natural do plano conhecido como Terra, a Criação das Criações, o Universo, morada transitória de todas as Almas... palco da evolução eterna de todos os Viventes, filhos do Único Criador, fadados, inconsolavelmente, ao retorno à Origem... Pois as Almas, são todas iguais... apenas não conseguem se reconhecer...
***
Quando Elgor despertou, seu corpo fervilhava como chá de bromhanya. A dor no pescoço o trouxe de volta à realidade e então toda a experiência vivida em outro plano da realidade se fez totalmente consciente e viva em seu coração e em todo seu ser. De uma maneira que não podia compreender, ele não era o mesmo. Algo grandioso e poderoso havia acontecido como num sonho totalmente lúcido... Elgor apenas lembrava de estar caminhando pela Floresta e então... encontrara Deus... Deus... Ele existia...
Mamany.
Elgor se levanta num salto e logo encontra ao seu lado o corpo desfalecido da fera que o ensinara tudo o que veio a ter importância para que continuasse a viver num mundo que dele cobrava que despertasse e fizesse algo por si e pelos outros.... a fera sangra no peito, mas em sua expressão, é possível ver a pureza que só aqueles capazes de se sacrificar pelo outro podem carregar.
- Obrigado... Mamany... obrigado... - as lágrimas de Elgor pingam sobre os olhos da anciã.
Ao lado dos dois, as tochas de flanh erguem chamas tímidas...
Elgor sabe que precisa merecer sua missão... Ele ainda não sabe ao certo o que precisa ser feito. Mas irá descobrir... Naquele momento, apenas uma coisa restava a ser feita...
Elgor usa suas mãos para cavar a cova.
- Descanse em paz... Mamany Rabi... “Que vossa alhmorium retorne ao Pai... à Origem de Tudo...”
Mamany, cumprira sua missão...
Estava livre...
FIM
Obrigado por vir até aqui...
Edgar Lins