Orinsuke - Capítulo 09: Começa o Treinamento

No primeiro dia foi concedido à Orinsuke o devido descanso depois da longa viagem. Kiha o conduziu até o refeitório, onde consumiu um belo prato de frutos do mar preparado pela senhora Ouchi, cozinheira-chefe em Jinkai. Logo em seguida conheceu o alojamento dos aprendizes. O local abrigava uma série de pequenas cabines, que serviam de dormitórios individuais, separadas por um único corredor. O lugar estava deserto.

Kiha informou que os alunos ainda não tinham voltado de uma atividade na muralha. Assim que ficou sozinho em seu singelo e pequeno quarto, composto apenas por um colchão e um armário para guardar objetos pessoais, Orinsuke não conseguiu pegar facilmente no sono. Sua mente estava inquieta, numa mistura de alegria, por ter sido considerado oficialmente um aprendiz de samurai, e expectativa tensa, por não saber se daria conta desse que era agora o maior desafio de sua vida.

Pensou em sua antiga vida. Pensou no Sr. Onoke. E pensou em Yume, a amiga de Kimoto cujo reencontro lhe trouxera enorme satisfação. Ela também estava treinando para ser uma samurai. Então era por isso que nem ele, Godi ou Han a tinha visto em Kimoto nos últimos tempos. Estava aqui o tempo todo, iniciando, assim como ele, o sonho de se tornar guerreiro de elite.

No futuro, quem sabe, poderiam estar juntos em missões verdadeiras, não mais brincando como faziam antigamente ao lado de Godi e Han, o trio inseparável. Adormeceu pensando nos amigos.

Orinsuke estava de volta ao mesmo descampado onde havia encontrado a katana com um bilhete pendurado. Desta vez não havia mensagem, e a espada emanava a mesma áurea de energia que o atraía. Confiante, segurou no cabo da espada e a ergueu do chão. A arma era leve, poderosa e brilhava na luz pálida do dia nevoento.

Um ruído chamou sua atenção e percebeu que não estava sozinho. Do meio dos arbustos surgiu uma figura sombria. Orinsuke não conseguia distinguir seu rosto ou suas vestimentas, mas conforme se aproximava percebeu que a pessoa, mesmo encoberta por sombras, possuía a mesma estatura que ele, provavelmente alguém da mesma idade. A figura caminhou em sua direção com passos curtos e parou a alguns metros.

“Quem está aí?” perguntou a sombra.

- Eu me chamo Orinsuke. E você, quem é? Não consigo enxergá-lo.

“Sua voz é diferente. Não é a garota. Onde ela está?”

- Não sei de quem está falando.

“Então ela ainda não te achou. Mas pode esperar que vai. Ela disse que está procurando por todos nós”

- Desculpe, não entendo do que está falando. Quem é essa garota?

“Não sei. Agora tenho que ir, tem alguém me chamando”

- Não….espere.

Orinsuke esticou o braço na tentativa de alcançar a figura a sua frente, mas ela desapareceu, seu formato sombrio dissipou-se e foi carregado pelo vento.

No dia seguinte bem cedo, Kiha apareceu no alojamento foi direto ao quarto de Orinsuke. O garoto acordou assustado com as batidas na porta e se aprontou o mais rápido possível. Logo em seguida, sob os olhares de todos os aprendizes, foi conduzido ao refeitório para o café da manhã. Apesar do constrangimento de ser o centro das atenções naquele momento, aproveitou a mesa farta, e repleta da deliciosa comida preparada pela Sra. Ouchi, para matar a fome, já que desde que chegou à Hikuran não havia se alimentado direito. Kiha estava ao seu lado, comendo um belo ensopado com arroz.

O refeitório estava cheio de garotos e garotas da faixa etária de Orinsuke, talvez uns com mais ou menos idade que ele, observou. Eram ao todo por volta de vinte aprendizes no recinto, talvez menos. Aquela cena de certa forma o deixou aliviado, pois, apesar de estarem a mais tempo juntos em treinamento, todos pareciam compartilhar da mesma inexperiência que ele.

De repente lembrou de Yume e a buscou com o olhar no meio da turma. Achou a amiga num canto do salão degustado devagar seu café da manhã. Pensou como o destino tinha colocado duas pessoas como eles no caminho para se tornarem samurais. Ele, um garoto ignorante que só sabia cuidar da lavoura, de vacas e mulas. E ela, uma garota tão meiga, educada e inteligente, que, com certeza, poderia encontrar qualquer outra profissão de qualidade nas grandes aldeias. Mas ali estavam os dois, iniciando um caminho juntos, um caminho em que não tinha a mínima ideia de onde o levaria.

Salvo um cochicho ou risadinha contida de vez em quando, o refeitório conservava-se em silêncio. Essa realidade só mudou quando Kiha foi chamada por outro samurai à porta para uma conversa a sós. Assim que a veterana saiu do recinto, o ruído das conversas e risadas tomaram conta do lugar.

- E aí, novato, de que lugar você saiu? - falou um garoto de cabelos curtos avermelhados e olhar provocador. O mesmo tinha cutucado o braço de Orinsuke para chamar sua atenção.

- Ah, oi. Eu me chamo Orinsuke. Sou da aldeia de Kimoto.

- E onde fica isso? - perguntou outro garoto, que estava terminando seu imenso café da manhã, repleto de tudo quanto era ingrediente. Orinsuke ficou pensando como ele conseguis comer aquilo tudo.

- É bem distante – respondeu Orinsuke – Fica ao sul, próximo ao rio da serpente.

- Nunca ouvi falar – disse o garoto comilão.

- Já ouvi falar desse lugar. Meu pai é mercador e viaja bastante. Certa vez disse que tinha ido ao extremo sul, numa aldeia que produzia boas verduras, chamada Kimoto. - a garota que falou tinha cabelos longos e pretos como a noite, belos olhos cor de mel e rosto sem expressão, despreocupado.

-Isso não importa – disse o garoto de cabelos vermelhos – Esses lugares são sem importância e esquecidos – Orinsuke se incomodou com o comentário e baixou a cabeça, olhando para o prato vazio.

- Me diga, Orinsuke de Kimoto – continuou o garoto – O que um camponês como você veio fazer aqui em Hikuran? Kiha-senpai viu alguma coisa em você ou só o contratou para trazer as bagagens?

Os garotos da mesa riram alto da piada.

- Se eu fosse você não ligava para esses idiotas, Orinsuke. Eu me chamo Taira. O idiota número um é o Takeda – disse apontando na direção do garoto de cabelos vermelhos – E o idiota número dois, o comilão, é o Jorubo. Prazer.

- Tudo bem, é só brincadeira. Prazer.

- Isso mesmo, camponês, é só uma brincadeira. Ainda bem que sabe disso.

- Essa da bagagem foi ótima, Takeda – riu Jorubo, quase engasgando com a comida.

Os garotos continuaram rindo. Orinsuke, disfarçando com um sorriso sem graça, olhou na direção onde Yume estava, no outro lado do salão. A mesma encarava-o com uma expressão séria. Logo depois desviou o olhar e levantou da mesa para levar o prato vazio ao balcão onde estava a Sra. Ouchi.

Depois do café da manhã, os aprendizes se reuniram para a preleção matinal do sensei Azura, principal responsável pela formação da nova geração de samurais do clã Wanabi. E para constrangimento de Orinsuke, o mesmo foi colocado na frente da turma para ser apresentado aos demais.

- Muito bem, prestem atenção. Iniciamos há um mês os treinamentos com a nova turma de aprendizes do nosso honorável clã. Depois que chegamos ao número limite da turma, não costumamos aceitar mais ninguém no mesmo ano. Mas uma exceção foi estabelecida neste período. Portanto recebam o mais novo integrante da turma, Orinsuke da aldeia de Kimoto – O sensei puxou novato para sua frente a fim de colocá-lo exposto para os demais aprendizes.

Além dos rostos que teve o prazer, ou desprazer, de conhecer no refeitório, Orinsuke estava agora encarando todos os seus companheiros e companheiras de aprendizado.

- Queria saber que exceção foi essa que fez o camponês quebrar as regras assim – cochichou Takeda para Jorubo.

- Talvez porque conseguiu carregar mais bagagens do que qualquer um. Deve ser essa sua habilidade – respondeu o outro, também cochichando. Os dois riram baixinho.

- Silêncio – ordenou o sensei – Tenho que dizer também que no primeiro momento Orinsuke não ficará conosco. Primeiro terá que iniciar seus primeiros trabalhos físicos para se adaptar à nossa rotina de atividades. Eu também cuidarei dessa atribuição extra. Portanto, declaro esta apresentação encerrada.

Depois da curta apresentação, os aprendizes se dirigiram para o dojo de treinamento, sob os cuidados de Ranko, auxiliar do sensei, enquanto que Orinsuke permaneceu no mesmo local para iniciar seus primeiros passos no treinamento samurai.

- Muito bem, garoto – disse o sensei – Daremos início ao processo. Vamos ver do que você é feito. Se é merecedor do caminho da espada – Orinsuke engoliu seco diante das palavras de Azura.

Orinsuke desabou com o peito no chão. Não estava mais aguentando o esforço. A sequência impiedosa de flexões, agachamentos e abdominais o levaram ao limite de suas forças. Sensei Azura disse que o primeiro passo era fortalecer o corpo, torná-lo resistente ao tempo e às exigências físicas, obstáculos comuns na vida de um samurai. Por isso tinha escolhido realizar as atividades ao ar livre, expondo seu aprendiz ao clima.

Apesar de estar acostumado a trabalhar duro, cuidando da horta e dos animais, na propriedade do Sr. Onoke, não imaginava que encontraria tamanho desafio logo no início de seu aprendizado. Banhando de suor, sabia agora o real significado de atividade física. E para piorar, o sensei não demonstrava o menor remorso em exigir tanto dele.

- Levante-se, garoto. Mal começamos e já está neste estado? Apenas uma hora se passou.

- De...desculpe, Azura sensei – Orinsuke ofegava intensamente – Meus braços perderam a força.

- Isso porque nunca os fortaleceu. Pernas e braços são partes essenciais para todo samurai. São instrumentos de ataque e defesa e precisam estar preparados.

- Sim, sensei.

- Então recomece. Já descansou demais, aprendiz.

Orinsuke iniciou uma nova bateria de exercícios, se esforçando ao máximo para completar a sequência de movimentos. Conforma a manhã ia avançando, o calor tornava-se um desafio a mais. Azura sensei parecia não se incomodar. Continuava observando-o com seu único olho, imóvel como uma estátua.

E mais uma vez a exaustão o levou ao chão.

- Acho que cheguei ao limite, sensei – Orinsuke estava de joelhos, com as mãos no chão. Sentia-se frustrado pelo seu corpo não conseguir dar mais.

- Não me fale de limites, garoto – Azura tinha se agachado para encarar Orinsuke. Seu olhar era severo – Você não sabe o que é isso. Está vendo essa cicatriz? – apontou para o olho esquerdo, coberto por um tapa-olho – Foi o resultado de horas de combate. Quando sua vida e a de seus companheiros está em jogo, você descobre que pode ir além pela sobrevivência. Então não me fale de limites. Isso para mim é reclamação, somente. Entendeu, aprendiz?

- Sim, senhor, sensei Azura – Apesar do cansaço e das dúvidas sobre suas capacidades, palavras do sensei despertaram ânimo no coração de Orinsuke.

- Então levante-se – o guerreiro samurai não parava de encarar o garoto – Já descansou demais.

Aquele tinha sido somente o primeiro de alguns dias que foram dedicados ao treinamento físico de Orinsuke. Enquanto os demais aprendizes mantinham suas rotinas de treino, ele realizava seus trabalhos de forma particular. Por todo esse tempo foi acompanhado pelo sensei Azura. O mesmo chegou a revelar que recebeu a missão de prepará-lo diretamente da shidosha, a líder da aldeia.

Orinsuke só via seus companheiros no final do dia, no alojamento, mas estava geralmente tão exausto que trocava muito poucas palavras, inclusive com Yume, com os demais aprendizes. Até as brincadeiras de Takeda e Jorubo não tinham tanto espaço para perturbá-lo, já que pelo cansaço dava pouca atenção a elas, mesmo quando vinham acompanhadas das risadas dos outros garotos.

Ao final de uma semana de intensivos treinos físicos, Orinsuke começou a perceber mudanças em seu corpo, o que o deixou feliz. Maior capacidade respiratória, rigidez muscular e resistência ao esforço foi o resultado desse processo inicial. Tanto que passou a desafiar a si mesmo nos exercícios, sempre buscando ultrapassar seus recordes pessoais e o tempo dedicado aos treinos. Não queria decepcionar o sensei Azura, Kiha, Katayama, a Shidosha-sama, todos que esperavam dele algo mais. Precisava superar seus limites.

“Definitivamente esse garoto aprende rápido” pensou Azura. Estava sentado num toco de árvore, com os braços cruzados e olhos atentos ao aprendiz à sua frente.

- Vinte e sete….vinte e oito...vinte e nove….trinta – Orinsuke ergueu-se e apoiou uma mão na árvore para descansar. Tinha alcançado um novo recorde de flexões. Além disso, já conseguia dar mais de vinte voltas no pátio de treinamentos em suas corridas matinais. Só em relação aos terríveis abdominais que não tinha evoluído muito bem. Mas isso era uma questão de tempo. Iria se esforçar mais.

- Deixa só eu pegar um fôlego, sensei, e já volto aos exercícios.

- Não é necessário. A partir de amanhã daremos início à segunda fase do treinamento.

- Sim, sensei – Orinsuke fez uma reverência inclinando o corpo. Seus olhos brilharam ao ouvir as palavras do mestre. Seu esforço foi reconhecido. Estava sorrindo por dentro.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 03/03/2019
Código do texto: T6588313
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