Orinsuke - Capítulo 04: Sonho e Realidade

O centro de Kimoto é onde a maioria das casas se encontram, onde ainda pode-se ver alguma movimentação durante o dia. Pessoas das propriedades mais afastadas costumam vir para cá para trocar informações, realizar as reuniões mensais, fazer compras e rever amigos.

Mesmo as pequenas aldeias, como Kimoto, possuem suas figuras conhecidas. E sem dúvida alguma Utaka Miaki é essa figura na aldeia. Por muitos anos ele lidera o conselho de aldeões e é dono da principal loja de mantimentos. Como todo mercador, realizava constantes viagens até a aldeia-capital no intuito de comprar mercadorias, e na volta não trazia apenas produtos como também notícias do que andava acontecendo no centro do território. O velho Miaki era uma verdadeira fonte de informações para todos os sedentos por novidades.

Orinsuke entrou na loja do Sr. Miaki e tratou logo de ofertar as garrafas de leite em troca da caixa de pregos. Atrás do balcão de madeira lá estava o dono, com seu sorriso costumeiro, atendendo os clientes. De fato não precisava do leite, mas pela antiga amizade com o Sr. Onoke aceitou a troca pelos pregos, contanto que o velho amigo o visitasse da próxima vez para tomar um chá e falar dos velhos tempos. Orinsuke prometeu que daria o recado.

Ao sair do mercado do Sr. Miaki, Orinsuke ouviu alguém o chamando. Quando se virou para olhar, se alegrou ao ver um conhecido e querido amigo de infância.

- Orinsuke! Há quanto tempo heim!

- Olá, Godi. Como vão as coisas?

- Ah, você sabe que aqui em Kimoto só o que mudam são as estações. No mais está tudo a mesma coisa. Cuidar da lavoura, dar comida aos animais da propriedade, fazer compras. Meus pais não me dão folga. Ainda mais com essa falta de chuva. Acho que na próxima estiagem eu vou dar um jeito de fugir e correr do trabalho. Pelo menos esse trabalho todo me ajuda a diminuir o excesso né - Godi apertava a grande pança enquanto sorria para o amigo - E você? Como está?

- Tirando as estações e minha barriga, nada mudou nesses dias para mim - Orinsuke puxava a pele da barriga magra. Os dois garotos riram gostosamente. Nestas horas os problemas se dissipavam e a alegria de estar com alguém de sua idade, um amigo, era muito bom, mesmo que esses momentos não se repetissem tanto como no passado.

- Orinsuke! Godi! - uma voz gritou alegre saindo da loja.

- Hei! Olá, Han! - gritaram os dois garotos em resposta. Que maravilha mais um membro do velho grupo aparecer.

- Acabei de sair da loja e não o vi – disse Orinsuke.

- Estava lá atrás no depósito. O Sr. Miaki me pede toda hora para arrumar aquele lugar e verificar se há baratas ou ratos.

- Você está trabalhando para o Sr. Miaki? - perguntou Godi. Han confirmou com um aceno de cabeça.

Quando eram mais novos, na época em que as responsabilidades não tinham chegado, Orinsuke, Godi, Han e Yume, a garota do grupo, sempre se reuniam para as brincadeiras quando seus pais os levavam para as reuniões do conselho, festividades e feiras livres em outras aldeias. Adoravam aproveitar o tempo explorando os bosques, fingindo ser uma patrulha samurai numa missão. Orinsuke sempre admirou a figura desses guerreiros, com suas habilidades especiais e coragem, portando sempre suas famosas espadas, as katanas.

- Vocês ainda possuem aquelas espadas de madeira que usávamos? - perguntou Godi enquanto mastigava uma banana que tinha tirado do bolso.

- Eu não - respondeu Han. O mesmo tinha retirado o avental da cintura e colocado sobre o ombro - Acho que foi no ano passado que meu pai usou minha espada para consertar uma parte da cerca que faltava. Lembro que na hora não gostei muito, mas depois deixei pra lá.

- A minha ainda está guardada embaixo da cama - falou Orinsuke - Sempre que olho para ela, penso nas nossas explorações. Lembram daquela vez em que o Godi ficou preso num monte de arbusto e demoramos quase uma hora para tirá-lo?

- Ha! ha! ha! E quem não lembra - gargalhou Han - Ficou chorando dizendo que nunca mais ia voltar para casa.

- Idiotas. Falam isso porque não foram vocês que ficaram presos e espetados no corpo por todos os lados - Godi puxou rapidamente outra banana do saco que carregava - she não fôche a faquinha da Yume ainda istcharia lá precho - falou enquanto mastigava.

- Ela sempre dizia que aquela faca era sua verdadeira katana. Uma faca minúscula diga-se de passagem. Não dava medo nem em passarinhos - falou Han sorrindo.

- Um verdadeiro samurai nunca despreza sua espada - disse Orinsuke levantando o dedo indicador para chamar a atenção - Ela é a alma do guerreiro.

- Você sempre levou muito a sério essas aventuras Orinsuke. Essa coisa de samurai é só para brincar mesmo - falou Han.

- Concordo - disse Godi pegando na barriga avantajada - Eu mesmo não tenho a mínima condição de tentar ser um samurai. E também não acho que eles cumprem bem sua missão de nos proteger. Não ligam para as aldeias mais distantes como Kimoto. Lembram daquele trio de assaltantes que perambulava nesta região causando problemas? Graças ao conselho, que organizou uma caçada, os bandidos foram presos e levados embora. Nenhum samurai apareceu para nos ajudar.

- Eles poderiam estar com algum tipo de problema para mandar alguém. O território Wanabi é grande - disse Orinsuke

- Para que ter um território se não pode tomar conta? - questionou Godi.

- Deixa pra lá Godi. Orinsuke acha que pode ser um samurai e por isso defende eles - Han amarrou o avental na cintura e acenou se despedindo - Agora tenho que voltar ao trabalho.

- Vamos, não precisa ficar assim - Godi tinha percebido o desânimo de Orinsuke - Eu sei que tem admiração, mas essa coisa de samurai não é para garotos como nós. Sabe disso não é? Além do mais, meu pai costuma dizer que a vida de um samurai é repleta de sangue e morte, e que vivem pouco. Eu gosto de minha vida e pretendo morrer bem velhinho. Você não? - terminou de falar sorrindo e abraçando o amigo.

- É, acho que tem razão - disse Orinsuke - Mas não custa nada sonhar, não é?

- Sim, claro, eu também tenho muitos sonhos. Um deles é ter muito dinheiro para montar um restaurante e comer os melhores pratos o dia todo. Mas posso ter isso? Claro que não. É só um sonho. E como diz meu pai, sonhos são feitos para sonhar.

Quando retornou para casa, Orinsuke encontrou o Sr. Onoke em frente ao portão de madeira que dava acesso à propriedade. O mesmo disse que tinha observado o contorno da cerca e percebeu outros pontos que precisavam de reparos e também que “a maldita mula tinha escapado de novo pela passagem quebrada lá atrás no quintal”. Orinsuke demorou mais de uma hora procurando o animal e só o encontrou quando lembrou o local em que a mula gostava de pastar, próxima a um pequeno lago formado pela água da chuva.

O garoto prendeu o animal no curral e voltou apressado para ajudar o Sr. Onoke, que já estava adiantado no conserto da cerca. Orinsuke não gostava de deixar o velho trabalhar sozinho por causa das mãos adoentadas. Sempre que forçava demais os dedos passava a noite toda com dores, tendo que deixá-las constantemente mergulhadas em água morna para aliviar o incômodo.

Neste dia deu tudo certo e não houve necessidade de cuidados especiais. A dupla terminou os reparos em todos os pontos críticos e no final ficaram contemplando o final de tarde, encostados na cerca. O pôr do sol ao norte era sempre belíssimo de se ver, pintando o céu de lilás, azul e laranja.

- Mais um pouco e os pregos não dariam para tanto remendo - falou o Sr. Onoke, quebrando o silêncio.

- Quando vi a quantidade de buracos na cerca também tive receio de não dar. Mas uma hora ou outra teríamos que consertar essas falhas. Ainda bem que o senhor tem um bom olho para essas coisas. Acho que não teria visto nem metade disso - Orinsuke começava a arrumar os pregos e as ferramentas num pequeno saco. O velho ficou olhando para o garoto em silêncio.

- Como foi lá no armazém?

- O Sr. Miaki gostou do leite. Disse a ele que era de primeira qualidade. E ainda encontrei o Han e o Godi. Conversamos um pouco.

- Olha garoto - falou Sr. Onoke, mudando de assunto - Quanto ao que aconteceu hoje mais cedo, peço desculpas pelas minhas palavras - logo em seguida voltou a olhar o horizonte. O sol já estava quase escondido por trás das montanhas ao longe. Orinsuke ficou surpreso com aquelas palavras. Não lembrava da última vez que tinha ouvido um pedido de desculpas do velho. Resolveu respeitar o silêncio do mesmo, pois sabia como tinha sido difícil para ele dizer aquilo. Mesmo assim não conseguiu evitar o sorriso que se formou em seus lábios.

- Ah, o Sr. Miaki mandou lembranças e perguntou quando o senhor iria visitá-lo para conversar e tomar chá - foi a vez de Orinsuke quebrar o silêncio, falando de modo sorridente.

- Pois é, isso é verdade. Faz tempo que não vou à sede da aldeia conversar com o Miaki. Somos amigos de longa data, desde os tempos na aldeia-capital. Fazíamos parte da mesma confraria de artesãos - Onoke falava em tom nostálgico. Orinsuke percebeu que o velho viajava a um passado distante.

- Nada melhor, para matar a saudade, do que rever os amigos - mais uma vez lembrou do encontro com Godi e Han no começo da tarde.

O tempo passou e a ida à loja do Sr. Miaki não se concretizou. Diante das atividades rotineiras na lavoura, ou quem sabe por não querer entrar em contato com alguém que lembrasse seu passado, o Sr. Onoke acabou desistindo de fazer a visita ao amigo. Passadas duas semanas do encontro com Godi e Han, Orinsuke estava mais do nunca voltado para as atividades na propriedade. Nesse meio tempo houve uma leve, e muito bem-vinda, pancada de chuva que ajudou muito no crescimento das verduras e hortaliças. As últimas vendas na feira não foram boas, justamente pela falta de uma variedade de produtos. Mas as alfaces, as beterrabas, as couves, os brócolis, os espinafres e as cebolas estavam prontas para a colheita.

Nas horas vagas durante o dia, geralmente quando o Sr. Onoke tirava seu cochilo tradicional no final das tardes, Orinsuke se dirigia para o fundo da propriedade onde havia uma cerejeira solitária com suas belas folhas amarelas. Desse lugar, sentado na grama aconchegante, dava para ver um declive no terreno que terminava num pequeno bosque. O contato com esse tipo de ambiente sempre o acalmava. Adorava o verde da natureza, especialmente as árvores, pelas quais sentia uma estranha atração.

Ao som do vento balançando as folhas, costumava fechar os olhos e sair um pouco da realidade em que vivia, livre por um momento das rotinas constantes e estranhamente sem sentido. Por mais que tentasse afastar esse tipo de pensamento, ele sempre o visitava, incomodando-o com sensações que não entendia, dando-lhe um aperto no coração.

Nesta hora recorria à sua katana de madeira, que sempre levava consigo para seu local de meditação. Ao tocá-la sentia como se uma voz o chamasse para algo que ainda não sabia o que era. Ela estava sempre ali, presente, constante, sutil e poderosa.

Orinsuke se levantou e iniciou uma luta imaginária com sua espada de mentira. Imaginando a cerejeira como um inimigo, desferia golpes no caule da árvore ao sabor do vento e sob o sol que lentamente se escondia por trás do grande vale. Nesta hora só existia apenas ele e sua espada. Só ele e sua imaginação. Ele e seu sonho. Seria possível?

- Orinsuke! Onde você está, garoto? Esqueceu de colocar os animais para dentro do cercado. Quer que eles morram de frio? - a voz do Sr. Onoke, gritando pelo seu nome, desperta o garoto de sua viagem imaginária.

“Não é possível. Godi tem razão. Sonhos são feitos para sonhar” pensou Orinsuke enquanto corria de volta para casa. Segurava firme sua espada de madeira.

- Estou indo, Sr. Onoke.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 05/02/2019
Código do texto: T6567927
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