As Lágrimas Amargas de Mordred

Arthur olha de soslaio para seu oponente, seu filho, e não pode evitar as lembranças de tanto tempo em que viveu sob os olhares dos deuses. Por outro lado, Mordred portando sua capa negra, não esconde sua amargura, pois sabe que tudo o que fez em toda a sua vida, não o prepararam para aquele momento diante do homem que tanto o desprezou.

- Parece que está satisfeito. – Ralhou Arthur entre dentes, diante do olhar de escárnio de seu filho.

- Muita coisa aconteceu... Pai... – Mordred enfatiza suas palavras, como que tentando dar um toque trágico ao encontro de ambos.

- Como ousa me chamar de pai, ò criatura nefasta. Quer me fazer lamentar pelos meus erros do passado?

- Não pai... quero apenas gravar este momento para sempre em minha memória, o dia em que o grande Arthur enfrentou seu filho.

- Não ouse pronunciar esta palavra. Você não é meu filho. És uma criatura gerada em pecado, que me atormenta. Em minha vida enfrentei muitos males, mas nenhum tão grande quanto ter que aturá-lo.

Mordred não consegue evitar uma lágrima a escorrer-lhe pela face.

- Não tenho culpa de ter nascido do incesto entre você e Morgana, e pelos deuses vou fazer-lhe engolir sua palavras.

Retirando sua espada da bainha e girando seu escudo de madeira, pintado com as cores de Camelot, Arthur a aponta para Mordred.

- Bastardo é o que você é. Foi para conquistar minha atenção que se uniu aos saxões? Foste capaz de trair até mesmo sua terra, a Bretanha?

O filho de Arthur olha em volta e sente a brisa da floresta tornada escura como a noite pela nevoa, mas com um brilho central, como que se iluminada pelos deuses para aquele encontro, e respira profundamente.

- Se não posso ter o seu amor, meu pai, então me contentarei com teu ódio. Farei do ódio que te consome a força para vencer-te.

Dizendo isto, Mordred gira sua espada na mão direita e empunha o escudo de madeira, com o emblema da serpente, na mão esquerda, e ataca Arthur com fúria.

O rei da Bretanha defende-se com seu escudo, em seguida desferindo um ataque com toda força que atinge o escudo de Mordred, fazendo-o dar dois passos para trás.

- Em nome do Deus que habita nos céus, farei com que tu voltes para o covil de onde saiu. – Grita Arthur.

O cavaleiro renegado chamado Mordred, solta uma gargalhada.

- Então adotaste mesmo a fé dos cristãos? E tens em teu castelo frei Columbano como teu confessor? Duvida dos deuses antigos?

- Só existe um deus e eu serei sempre seu servo. - E Arthur desfere novo golpe de espada em seu filho bastardo, que se esquiva.

- E depois sou eu o traidor da Bretanha... tu traíste tua terra e tua gente muito antes de mim, Arthur. - Falando isto, Mordred ataca novamente com sua espada, ao que seu pai defende-se.

- Servo do diabo é o que tu és, e nasceste apenas para que eu aprendesse que estava em erro toda a minha vida, venerando falsos ídolos – retruca Arthur defendendo-se da espada e aproveitando para contra-atacar.

- Sim, os deuses devem estar rindo neste momento, enquanto jogam dados. Divertem-se às nossas custas, ó nobre rei de Camelot, defensor da moral e dos bons costumes. -respirando mais acelerado pelo esforço, Mordred contra golpeia novamente seu pai. -Diga-me, o que teme? Ser punido por tua nova fé por ter vivido os pecados da carne, e ter a consciência pesada sabendo que sou fruto de tua relação com tua própria irmã? È por isso que me odeia? Ou odeia muito mais a si mesmo por ter cedido à tentação?

- Maldito sejas, criatura nefasta. Tu nasceste das entranhas do inferno, não de uma mulher. – E com os olhos vermelhos de raiva, Arthur desfere um golpe atrás do outro em seu oponente até encurralá-lo diante de um carvalho. Com um golpe final, desferido com todas as suas forças, ele sente o escudo da serpente rachar.

Mordred pressiona o escudo contra o rosto de seu pai, e defendendo-se de mais um golpe do ensandecido rei da Bretanha, seu escudo se parte em dois, sendo atirado para longe. Para ganhar espaço, o bastardo filho de Arthur golpeia com sua espada, quase perdendo o equilíbrio com o esforço.

Arthur sente a vitória iminente e, distraído por um segundo, deixa seu braço esquerdo a frente, expondo-se para tentar um golpe definitivo, ao que o oponente aproveita para golpear com o aço de sua espada, raspando o ombro de Arthur, e deixando um corte de onde escorre o sangue real. Mordred treme de prazer ao ver seu pai gemer.

- Não estou neste confronto meu pai para ajoelhar e te pedir teu amor, porque sei que de amor, estás seco, desde que tua nobre rainha te traiu com seu melhor amigo. – e soltando estas palavras, Mordred, sente a raiva de seu pai crescer, golpeando as cegas, e solta uma gargalhada.

- Como eu disse, ó grande rei da Bretanha, já que não tenho teu amor, terei o teu ódio. Odeie-me com todas as tuas forças, pois teu ódio é o único prazer que tenho nesta vida e que me faz continuar a viver.

- Vamos, me golpeie com mais força com tua lendária Excalibur, presente da Dama do Lago. Teria coragem de matar teu filho bastardo? Teu único filho?

Ofegante pelo esforço, Arthur encara Mordred, sentindo aos poucos sua resistência se perdendo, no mesmo passo em que lágrimas começam a escorrer-lhe da face. Numa decisão repentina, joga fora seu escudo, põe a espada de lado e começa a murmurar uma prece.

- O quê... – espanta-se Mordred - Estás apelando para teu deus novamente, pedindo que ele te poupe de me combater? Não ouse me ignorar, eu fui ignorado por tempo demais da minha vida, vagando como pária pelo mundo, sem família, condenado ao anonimato como um segredo difícil de se suportar, por conta de um pai constrangido diante de sua nova fé e que me amaldiçoou ao exílio desde que nasci. Ó grande rei Pendragon, farei então com que encontre teu deus a quem tanto ama.

E levantando sua espada vacilante, Mordred desfere um golpe fatal em Arthur. Em sua agonia final, Arthur Pendragon, cai ao solo da floresta. Mordred, surpreso pela vitória, fica por instantes, que mais parecem uma eternidade, olhando o pai e lágrimas escorrem-lhe pela face, enquanto Arthur, com o sangue a jorrar, balbucia suas últimas palavras.

- Tu não és meu filho, Mordred, tu és o anjo da vingança a serviço dos deuses antigos a quem releguei o esquecimento. Agora estou livre do fardo da coroa. – E estas são as últimas palavras do rei da Bretanha, proferidas sem ódio, mas com compaixão, pois sabe que com seu último ato desferiu o golpe certeiro na ferida não cicatrizada no coração de seu filho.

Aturdido com a vitória, Mordred joga longe sua própria espada com um grito de fúria e chora passando as mãos pelo rosto.

- Como posso lamentar por alguém que nunca me ofereceu amor na vida? – pergunta-se para si mesmo o filho do rei Arthur. Abaixando-se e encostando a cabeça de Arthur contra um carvalho, fecha-lhe os olhos, e amaldiçoa mais uma vez os deuses por tê-los feito inimigos e não pai e filho.

Não suportando a dor que cresce em seu coração atormentado, Mordred se levanta aos tropeços gritando ao vento: - Amaldiçoado serei eu, por ter matado meu próprio pai.

O filho atormentado recolhe a excalibur e a contempla por algum tempo, em seguida cravando-a no coração do rei morto. Depois, tomado pelas lágrimas, retira um punhal de seu cinto e o enfia no próprio coração.

- Que nos juntemos na morte, meu pai, já que nesta vida tanto mal fizemos um ao outro.

...

Ao entardecer, depois de baixada a névoa invocada por Merlin para não expor o combate singular entre pai e filho, sir Kay, que havia perdido a localização de seu rei durante o entrevero do combate, encontra os dois mortos e, de uma árvore próxima, uma pomba branca carregando um ramo no bico pousa em seu ombro.

Merlin, que a tudo assistiu com sua magia refletido como espelho em seu caldeirão fervente, entende o recado, e lamentando a perda do grande rei, compreende que ninguém pode fugir ao seu destino. E ele agora sabe que dias de trevas estão por vir.

Fim

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 29/01/2019
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