Uma Noite no Cemitério

Sexta. 13 de Agosto. 21:18. No interior do cemitério da Micha, um homem acompanhado por uma garrafa de whisky sobe em uma campa e amarra um nó no pinheiro mais próximo com o propósito de enforcar-se. E antes que alguém o julgue, garanto que ninguém passou por tamanha humilhação em sua vida. Pois o pobre homem de 38 anos, descobriu que sua esposa, a mulher que se dedicou a amar e servir nos últimos 15 anos, vivia lhe traindo. Ninguém suportaria tal coisa. Ninguém sensível como era Alfredo.

Após ter feito o nó sentou-se outra vez. Pensativo, buscava em cada gole a coragem para tirar de si a maldição que era vida. Não era uma coisa fácil pra alguém tão lento a tomar decisões como ele o era.

Chorou desconsoladamente outra vez. Como se não fosse bastante o choro da outra noite. Depois voltou a pousar a garrafa no chão e com as duas mãos segurou aquela abertura na corda quando ouviu:

— Vá em frente! — Assustado buscou com os olhos ao redor e achou a sua esquerda um homem sentado em uma campa. Estava um pouco escuro, mas a luz azul do luar ajudava muito. Era magro e elegante, usava terno justo preto e gravata fina. Fumava um cigarro vaidosamente e tinha um olhar penetrante. Pela voz, podia arriscar dizer que teria por aí 30 anos de idade ou pouco menos que isto.

— Vá em frente — ele disse novamente — a vida não presta mesmo! Você dá o teu melhor e olha só o que fazem contigo?

— Desculpa… o Sr. me conhece? — Perguntou Alfredo um tanto quanto perplexo.

— Ah! — exclamou o estranho — eu conheço toda a gente. Ninguém há que ande por aí tão solto de mim.

— Então me conhece? — Insistiu ele.

— Pode ser que sim, pode ser que não o que isso importa? — respondeu o estranho. — A verdade é que eu sou a única pessoa no mundo que tu tens para despejar o que sentes.

— Eu só queria saber porquê, me entende? — disse Alfredo cabisbaixo.

— Eu te compreendo meu amigo! — Respondeu prontamente aquele homem. Acrescentando:

— Você foi bom demais para as pessoas. Não merecia ser tratado desse jeito.

Aí Alfredo puxou aquela corda novamente quando ouviu outra voz dirigir-se a ele.

— Tem calma. — dizia — não está tudo perdido. — Quando olhou, viu atrás de si um rapaz que aparentava ter 10 anos, segurando uma pá bem junto a uma cova. Vestia uma t-shirt, calção e calçava uns ténis, devia estar a morrer de frio, pensou Alfredo.

— Mas afinal quem são vocês? — Perguntou Alfredo com alguma aspereza.

— Olha é verdade que conheço todos. Mas todos tirando esse morador de rua. — Disse o sr.

— Eu vim aqui pra ficar sozinho e o que eu encontro?! Dois locos no cemitério!

— Desculpa! — disse com gentileza aquele gentil senhor — acho que são três loucos no cemitério. Porque pra estares aqui agora…— e antes mesmo que terminasse o jovem cortou-lhe a palavra.

— O importante aqui não é quem nós somos. Mas quem você será se não viver amanhã.

— Com certeza serei só um monte de barro misturado a esta areia, um bom estrume para as flores por cima de mim.

— Não é o que você sempre acreditou, pois não Alfredo? — Vindo de uma criança e noutras circunstâncias Alfredo tomaria aquilo por insulto, mas no momento, sentia na voz do rapaz uma segurança e um certo ar de autoridade que há muito não via em alguém. Por isso baixou a cabeça e ficou calado por um momento. Então olhou em volta procurando por nada, e viu outra vez aquela corda diante de si. Pensou em sumir. Não vale a pena insistir sabendo que se será infeliz, pensava. Se havia algum sentido na vida, isto mudara fazia alguns dias. Então voltou a pôr a corda no pescoço.

— Espera! — Alfredo virou-se para o rapaz atrás de si. — E a tua filha?

— Diz a ela que eu a amava muito.

E lançou-se pra frente. Suspenso na árvore pelo destino e contra a vida. Já sem ar, sentia a corda atravessar-lhe a garganta e enquanto os segundos passavam, inúmeras memórias os seguiam. E ele ia morrendo. Seus novos amigos olhavam imóveis os pés contorcerem-se com a dor, numa tentativa involuntária do corpo resistir à uma morte desejada. Aí ouviu-se um estrondo e inesperadamente Alfredo estava no chão. O galho quebrara. Os 48 segundos mais longos de sua vida haviam se acabado. Alfredo estava no chão se contorcendo de dores. Não conseguia falar. Só chorava e gemia como se estivesse a arder em febres. Então o senhor bem vestido caminhou calmamente em sua direcção, baixou-se, accionou o lume do isqueiro e acendendo outro cigarro soprou o fumo na cara de Alfredo.

— Não é um milagre se é o que deve estar pensando! — Disse ele apontando pra o lugar de onde saiu o galho — Isto é um cálculo péssimo! O galho mais abaixo era o mais adequado ao seu peso e você escolheu este? Eu já desconfiava que não ia dar certo. Você nunca foi bom à Matemática, lembra?

Sem dizer nada. O rapaz pousou a pá e ajudou Alfredo a se sentar, ali mesmo no chão, encostado ao túmulo de onde se lançara com a cabeça voltada pra cima. Em teoria, precisava de um copo com água, mas não havia água por perto.

Enquanto isso o homem de terno estava ocupado atando a corda no galho mais abaixo na tentativa de provar sua teoria.

— Pronto. — Disse ao terminar.

— Pronto o quê? Você é louco? — Perguntou o rapaz olhando na mesma direcção!

— Porquê? Estás cego por acaso? — disse o fumador — Eu fiz outro nó em um galho mais forte. Este com certeza não quebra. Era assim que amarravam as cordas pra enforcamento na Inquisição, sabia? — E sorria.

— Você não vai fazer isso! — gritou o garoto!

— Quem decide isto sou eu. — disse a voz roca de Alfredo enquanto seus braços titubeavam na tentativa de se reerguer. Estava decidido. Aquela era a última noite que o húmido cobertor do sofrimento o adornava. Então na claridade do luar ele estendeu o olhar um pouco além e pasmou ao ler o nome Susana Pedro na escritura de uma lápide. Ele jamais esqueceria. Pensou na possibilidade de ser uma coincidência, mas o dia e o ano de nascimento eram iguais. Até pra coincidência, aquilo seria demais.

— Vai me dizer que não sabia! — Disse o fumador. E como Alfredo permanecia apático continuou:

— Se te serve de consolo ela nunca te esqueceu.

— Faz mais de 10 anos que não sei nada dela. — Disse Alfredo sem tirar seu olhar molhado da lápide. — A últ… a… a última vez foi aquela noite na rua. — E pôs-se a chorar.

Aquele homem se aproximou de Alfredo soltando fumaça como uma chaminé e bem no ouvido dele disse:

— Me explica como um homem que se diz honesto se embrulha com uma mulher que não ama? Você sabia que ela era frágil, como foi capaz de quebrar aquela peça de cristal? Eu vi Susana nos seus dias mais frios depois de você…s — Não terminou a frase.

— Eu era muito jovem, tinha outros planos. Tinha uma família! Não ia estragar tudo por ela.

— Mas claro que não ia! Por isso não é a vítima como encenou aqui o tempo todo. É o karma. Você é vítima do seu passado e esta corda é a medida certa na balança!

— É um ciclo de imperfeições. — Falou o rapaz mas viu que Alfredo não compreendera. — A vida! Você sempre disse isso! Suas imperfeições feriram Susana e ela deixou a infecção exposta a tudo até que ficou intratável e morreu. Você não saiu ileso nesse. Sempre morre algo no assassino quando ele mata alguém. Reconheceste teu erro e decidiste dar a ti próprio uma chance a mais. Desta vez, mais alguém pede isto de você.

O homem de terno andava em silêncio a volta de Alfredo acendendo e apagando o isqueiro. Então disse em um tom manso:

— Aos 36 ela morreu mais velha que a sua idade. Mas nunca ter vivido de verdade, diga-se. Jamais amou outra vez. Pois não perdoo a tua maldade. Ela era uma mulher e você lhe fez de depósito de necessidades. — Enquanto Alfredo chorava de bruços na terra vermelha, o rapaz, sempre calmo aproximou-se dele e baixando-se o confortou com um abraço.

— Ninguém merece ser perdoado — Ele disse — Por isso é um presente. Você pode enterrar isso e deixar que o tempo o destrua ou você se deixa morrer com isso aos poucos!

Então Alfredo pôs-se em pé. Naquele mesmo instante uma chuva miúda veio fazer-lhes companhia. Os dois estranhos, em cantos diferentes, assistiam Alfredo lutar com a turbulência de sentimentos dentro de si, desatar o nó da corda do galho do pinheiro pra em seguida joga-la dentro da cova. Empurrava cada pá com raiva e enterrava o ódio funesto com total determinação.

Quando terminou a chuva também cessou. Alfredo olhou uma última vez pra aquele túmulo que poderia ter sido pra ele e depois jogou fora a pá. Olhou em volta e estava só outra vez. Aqueles estranhos se foram como vieram. Não se surpreendeu nem procurou por eles. Talvez fosse só uma miragem, cogitou. Saiu de lá levado por um passo lento, um sentimento mais leve e uma lição, talvez pra vida inteira ou o que sobrou dela.

Ia enquanto o dia se erguia devagar. Como um andarilho em farrapos, atravessava a cidade acabadinha de acordar. O sol já tinha certo brilho quando naquela manhã ele entrou em uma igreja semicheia sob os olhares surpresos caminhou até o altar e tomando o púlpito disse:

— Hoje irei pregar sobre perdão.

Alfredo era pastor daquela igreja há mais de dez anos e como as pessoas que o conhecem contam, ele passou a pregar muito melhor a partir daquele dia. Sua esposa também é uma mulher diferente e não há dúvida pra ninguém que eles se amam. Não sei se aquela noite foi uma invenção nem sei o que, por aí, as pessoas dizem sobre perdão. Mas vi como Alfredo venceu seu ódio e sua dor. Ele sim, me mostrou o que perdão significa.