Queda

- Sou aquele cujo nome todos conhecem, todos me encontram em algum momento. Sou um ladrão de histórias, furto os sonhos daqueles em que toco, sou cruel para aqueles que merecem e acolho em meus braços aqueles que necessitam, terei para ti menina, a face que desejar, serei para ti o barqueiro e o chacal e te acompanharei para onde ires. Sei que me esperou em agonia, a viagem é longa, mas saibas tu, que sofri contigo, cada dor e cada mágoa. – Grasnava o corvo que explodia em uma nuvem de penas e pano ao se fazer humano, na pele de um menino que mal alcançava a cintura da jovem que o esperava.

Ela olhava o céu noturno, por onde o garoto voara para alcança-la, estava frio e as estrelas se escondiam das luzes vindas da cidade abaixo, uma noite sem lua, quase tão negra quanto as penas da ave que pousara ao seu lado.

O vento rugia no topo do prédio daquela cidade que parecia tão viva, mas que se mostrava, para ela, tão vazia. Os gritos abaixo, as risadas e a cacofonia das buzinas que invadiam cada canto a faziam sentir-se pequena, mesmo vendo-os quase sumir na distância.

A criança a seu lado cravava nela seus olhos, tão ironicamente vivos, fazendo-a se esquecer de tudo o que ocorria lá embaixo, sentia apenas um insistente cutucar, em sua mão, de um pedido por atenção, um pedido para ser ouvido, e a garota ouviu.

- Por que rasgaste tua pele e desenhaste um mapa com lâmina? Tu sebes o caminho até mim, não precisava grava-lo na carne. Mas se o mapa não serve para me encontrar, talvez sirva para que encontre a ti mesma. Estás perdida ainda?- dizia ele, tentando entender o que a garota estava sentido, o que sofria.

O pequeno derramava perguntas em sua falsa inocência, ele sabia todas as respostas, mas cumpria com o papel que assumira por ela e ela cumpria o próprio ao sentar-se no parapeito que a separava da tempestade neon e do mar de concreto abaixo.

- Quer que eu seque tuas lágrimas, menina? Tudo o que tenho é este manto, mas é melhor que o vestido encharcado que vestes, já secaste teu pranto, elas não servirão para muito mais. – Ela não percebera que chorava até ser avisada pelo menino, as gotas caiam e o vento as tornavam em chuva lá em baixo, o oceano cinzento se rebelava e as ondas quebravam de encontro aos prédios, os telões e fachadas disparavam raios multicoloridos em antecipação aos trovões que viriam depois.

- Quer que eu vá contigo? Não tenho medo de altura, podemos dançar enquanto mergulhamos, podemos fingir que as luzes são para ti. Posso te abraçar se quiser, vim até aqui por ti e vou até onde quiser que eu vá.

Não houve resposta por parte dela, a voz infantil e doce a alcançava, mas ela já se soltava do parapeito, e começava a dançar sozinha em queda livre, girando em meio ao neon que refletia em seu vestido branco, em sua pele e em seus cabelos vermelho fogo. O garoto a alcançou e rodopiou ao seu redor, parecia se divertir, mas em seus olhos a tristeza marcava fundo.

- Não entendo menina. Tua dor é tão sólida quanto o concreto lá embaixo, jogá-la lá de cima não fará parar de doer, tu não te encontrará no meio do caminho, tuas asas não sairão da casca quebrada que estará na calçada. – disse à criança que a segurava pela mão.

E por fim, em meio à queda e já sentido a maresia tocar seu rosto, ela diz. – Tu, mesmo com tantas faces, sabes quem é, e eu com apenas uma, busco em todos os cantos aquela que sou e nada encontro, resta apenas um lugar para procurar e é para lá que rumo.

Quando seus corpos tocaram a calçada fria, o mar os engoliu, e em resposta ao sofrimento da menina que agora nadava sozinha, o garoto, que saía das ondas com o bater de suas asas, deixava para a tempestade uma última pergunta.

- Tentaste procurar dentro de ti?