Noraney coice de mula
Era uma vez, num lugar distante em que as cobras desciam a pedra gigantesca para fumar o cachimbo da paz e as mulas procuravam avidamente por mais capim.
Havia nesses confins quem passasse o tempo a contar os pardais que pousavam freneticamente nos fios entre os postes da eletricidade e a observar as moscas que pousavam na mesa da cozinha à procura dos restos do almoço.
Nessa pasmaceira, vivia uma mulher de meia idade que aparentava ser daquelas que teimavam em não querer mostrar os sinais do tempo; cabelo preto asa de corvo comprido e bem esticado, provavelmente pintado com uma tinta barata e de qualidade duvidosa.
Diziam que o seu gênio era terrível e que à mínima tensão repostava um arsenal de palavrões que fazia corar os mais tímidos e pacatos.
Conhecia-a por acaso, quando passei pelo local há muitos anos atrás.
Lembro-me que avistei ao longe uma pequena casinha de madeira com um ar pitoresco e convidativo. Havia perto da casa um pequeno grupo de crianças que brincavam alegremente e, por momentos, associei-os àquela paisagem atraente e bucólica. Quando me aproximei, notei que todos me encararam com um ar apreensivo e espantado. Perguntei-lhes se moravam ali por perto e se conheciam bem aquele lugar. Olharam uns para os outros e o mais velho adiantou-se gaguejando. Disse-me num tom quase secreto que ali, naquele lugar, ninguém era bem vindo e que a casinha era habitada por uma mulher muito perigosa. Diziam que era a encarnação de uma velha mula que por ali tinha vivido.
Era uma burra que tinha pertencido a um fazendeiro e que fora vendida a um mercador rico que tinha passado por aquelas terras. A mula era muito apegada ao seu primeiro dono e nunca mais conseguiu demonstrar afeto e submissão por ninguém. Diziam que, por isso, o mercador foi obrigado a desenvencilhar-se dela. Na primeira oportunidade que teve, ofereceu-a a uma das suas amantes que prometeu estimá-la. Assim, essa mulher criou a mula até morrer, apesar da dificuldade em lidar com o animal. Essa mulher tinha uma filha que, diz a lenda, nunca gostou do bicho e que fez tudo para que a burra desaparecesse sem deixar rasto. Quando a mula morreu e para disfarçar, a moça, com remorsos, perguntou ao padre da aldeia se podia enterrar o animal no cemitério da igreja. E assim foi. Sem o animal, a vida daquela menina teria tudo para se tornar mais alegre e promissora. No entanto, a personalidade daquela mulher começou a apresentar sinais preocupantes de um certo nervosismo, o que deixou a população do lugar bastante preocupada. Diziam que ao menor sinal de aproximação e intimidade manifestado pelos vizinhos, a mulher abria as goelas e arrotava um rol imenso de pesados impropérios, como se por momentos fosse tomada pelo espírito da sua velha mula.
Aquela criança que me contava essa história tinha um ar sério e jamais me passou pela cabeça duvidar das suas palavras que pareciam jorrar da sua boca como verdades insofismáveis. Nesse momento, um dos outros rapazes que aparentava um certo desinteresse por tudo aquilo, olhou bem nos meus olhos e perguntou de repente: - Você nunca ouviu falar na Noraney coice de mula?!!!