O Guardião do Mundo
 
     O Universo (dizem) é infinito! Há tantos mundos ainda a serem descobertos. Alguns desabitados, outros com formas de vida – inteligentes ou não. Confrontar teorias, crenças ou dogmas não é o escopo, porém, mostra-se perfeitamente factível crer que a existência de um mundo com vida, por si próprio, pressupõe a existência de outros. É impressionante e ao mesmo tempo intrigante saber que há mundos conexos a outros mundos, perfazendo esse “todo” Universo.
        Ludwig - vive em um desses mundos. Um mundo pequeno em sua forma, modesto em sua estrutura, mas repleto de incomparáveis riquezas: cultura e conhecimento. Capaz de proporcionar inúmeras possibilidades de “viajar” e aventurar-se por tantos outros mundos. Um lugar onde não há fronteiras, onde não há limites.
          No mundo de Ludwig, o “velho” não é velho e nunca é descartado ou maltratado, ao contrário, pode não parecer verdade, mas o “velho”, por vezes, possui ainda mais valor. Contudo, os jovens, novos, recentes – independentemente de como são chamados - também são sempre muito bem-vindos.
           As guerras nesse mundo não machucam, mas fazem refletir.
          O mundo de Ludwig não se iniciou no “Big Bang” e nem tem milhões de anos. Esse mundo, em especial, teve sua origem no coração de seres humanos chamados “imigrantes” e tem apenas pouco mais que uma centena de anos. Ele é carinhosamente chamado “Mundo dos Livros”, mas aqueles que prezam pelo preciosismo e formalidade o chamam também “Sociedade Literária”. Um ambiente reservado onde o silêncio impera, repleto de estantes e prateleiras com as mais diversas e inusitadas obras, onde pouco se fala e muito se lê. Mas então, quem é Ludwig? Pois bem... ele é, simplesmente, um livro.
         Aliás, Ludwig é um pseudônimo. Os livros não gostam de ser chamados por nomes porque são milhares e, em seu mundo, não permitem que haja distinção entre eles. Sabem que um livro é e sempre será um livro, independente da capa, do conteúdo, do número de páginas, se tem ou não ilustrações e até mesmo do idioma em que foi escrito. Os livros gostam mesmo é de contar histórias aos seus leitores, de levar conhecimento, emoção, fantasia, dentre tantos outros inexplicáveis sentimentos e emoções.
          Dentre tantos livros, Ludwig está entre os que há mais tempo habita esse mundo e já não sabe enumerar (com certeza) quantas vezes foi lido. Seu aspecto o denuncia... a capa dura e marrom está maltratada, suas folhas amareladas, algumas possuem as pontas dobradas, sequer fecha direito. E o seu cheiro!?... cheira a livro “velho”. Quanto orgulho!!!... É exatamente isso que faz com que um livro alcance a sua realização plena – ser “usado”, folheado e lido. Justamente por esse motivo que Ludwig ficava extremamente contente quando um ser humano o escolhia para sua leitura.
      O amável Ludwig tinha uma relação muito próxima com os seres humanos. Eles estavam intrinsecamente ligados ao seu mundo. Inclusive, tinha um melhor amigo. Dentre tantas probabilidades, o destino elegeu como seu grande amigo o “Guardião” (assim os livros chamavam o bibliotecário, ou bibliotecária, eles também não faziam essa distinção).
          Inúmeros Guardiões conviveram com Ludwig, mas a amizade foi mais intensa com um em especial. Ele não cita o nome, não quer magoar ou menosprezar nenhum deles e todos foram importantes, cada qual a sua maneira.
          Os livros não gostavam de guardar segredos, os quais eram revelados a quem se dispusesse a uma simples leitura. Também não existia segredos entre Ludwig e o Guardião. A relação entre ambos ultrapassava a barreira da leitura. Não havia um diálogo formal, porque Ludwig não tinha uma voz que pudesse se fazer ouvir pelos humanos, mas faziam isso do jeito deles e, assim, entendiam-se perfeitamente.
          Muitas vezes o próprio Guardião é quem indicava Ludwig para algum leitor.

 - Esse livro é ótimo, sua leitura é muito interessante, garanto que não haverá arrependimento! Assim se referia à Ludwig.

          Em que pese a amizade entre ambos ser muito antiga e diferenciada, seu amor alcançava a todos. Também não era segredo que o Guardião já havia se regozijado incontáveis vezes com a leitura de Ludwig. Uma leitura silenciosa e compenetrada. Algumas vezes sussurrava baixinho e mexia discretamente os lábios, outras vezes apenas corria os olhos de um canto a outro da página. Olhos fixos e brilhantes que não desviavam um só instante das escritas, como se estivessem hipnotizados. E desses mesmos olhos, em alguns momentos, silenciosas e cristalinas lágrimas escapavam-lhe, formando pequenos círculos nas páginas de Ludwig. Mas ele não se importava, pois tinha pleno conhecimento desse admirável sentimento humano chamado “emoção”. A bem da verdade, isso até lhe trazia felicidade.
       Do alto de sua estante - de onde possuía uma visão privilegiada - observava tudo o que acontecia na sociedade. Era possível ver perfeitamente o Guardião sentado em sua mesa e, por vezes, mesmo concentrado, deixava escapar uma rápida olhadela em sua direção.
          Ludwig havia mudado de lugar inúmeras vezes e, nessas mudanças, conhecera tantos outros livros. Era, deveras, muito popular e amigo de todos.
          Durante toda a sua história acompanhou as saídas e chegadas de uma infinidade de exemplares. Compartilhava a felicidade daqueles que eram lidos e solidário com aqueles que não o eram. Mas sua tristeza maior era saber que alguns desses livros nunca tiveram suas páginas abertas e folheadas. Se Ludwig tivesse lágrimas, as derramaria por eles.
          Não era por falta de esforço do Guardião, o qual sempre buscava levar a leitura a todos.

- Não quer ler este também? Eu mesmo já o li, ele é muito bom! Afirmava, apontando para um livro.

- Em outra oportunidade, hoje não tenho tempo! Respondia o visitante.

          Porém, essa outra “oportunidade” nunca chegara. E o tempo - pobre tempo - mais uma vez o algoz inocente.
      O esforçado Guardião também não conseguia ler a todos, outros afazeres tomavam seu tempo. Recebia as visitas, organizava as estantes, zelava pelo controle de tudo. Isso lhe trazia alguma tristeza, os livros também eram sua família. Fazia o possível e o impossível para trazer alegria àquele maravilhoso mundo, do qual também era parte.
          Não foram poucos os livros que por alguns segundos eram levados ao seu peito e suavemente apertados. Então, ouvia-se um som tão intenso quanto o galope de cavalos em disparada, descritos em emocionantes histórias de aventuras. Também sentiam um calor reconfortante que os enchiam de paz e tranquilidade. A isso, os humanos chamam de “amor”. Embora os livros não tenham um coração batendo, havia reciprocidade de sentimentos.

- Eu amo muito todos vocês!!! Dizia ele.

          Agora os livros entendem o que essas palavras significavam quando suavemente proferidas pelo grande amigo. Um sentimento que inspirava a todos e fazia aumentar a admiração que Ludwig sentia por ele. Esse tão incrível e admirável ser humano - no qual batia um coração forte e ao mesmo tempo sensível - era, na verdade, o coração daquele mundo.
       Todas as aflições eram compartilhadas com Ludwig, afinal, aquele mundo não era isento de preocupações e de alguns raros momentos de tristeza. A perfeição plena era e sempre será uma utopia, até mesmo no Mundo dos Livros. A cada dia, muitos exemplares eram acrescentados e o número só fazia aumentar.
          Porém, a evolução e a modernidade, como era de se esperar, também afetaram aquele mundo. O Guardião já não atendia tantos visitantes como no início, principalmente os visitantes mais jovens. Dizem que hoje os livros não são mais feitos de papel... devem ter vindo de um outro mundo!!!
          Isso, porém, não o desanimava.

- Vocês nunca serão esquecidos, não se preocupem! Tentava consolar os livros com palavras singelas, porém amáveis e sinceras.

         Seguindo seu exemplo, Ludwig fazia ecoar a mesma mensagem a todos os cantos da sociedade. E ele, como sempre, tinha razão, os livros nunca foram abandonados. Visitantes ainda os procuram e a felicidade nunca deixou de fazer parte daquele belo e duradouro mundo.
          Quando bem cuidados, os livros resistem por muitos e muitos anos. Até mesmo podem ser reproduzidos iguaizinhos, cópias idênticas, contudo, a essência é sempre a mesma. Nesse mundo, o espírito, a essência, nunca envelhecem. Se um livro é infantil, ele será infantil por toda a vida. Para alguns isso era maravilhoso. De fato, despertava um pontinho de inveja em alguns humanos que sonhavam com essa tal “eternidade”. Os próprios livros, principalmente Ludwig, gostariam que assim fosse com o Guardião. Infelizmente não era...
          Os livros perceberam que em alguns seres humanos o espírito e a essência também nunca envelheciam. Assim eram os guardiões, fato este que, infelizmente, não ocorria com a natureza de seus frágeis corpos.
Mesmo quando bem cuidado, o corpo do Guardião sofria a ação do tempo.
         Com o passar dos anos, os livros podiam perceber as lentas e inúmeras transformações. Seus cabelos ficavam brancos e as vezes caíam, em alguns Guardiões não sobrava um só fio na cabeça. Em sua pele surgiam pequenas rugas que se multiplicavam a cada dia. O caminhar não possuía mais a mesma agilidade. A sua meiga voz ficava mais fraca e cheia de rouquidão. Uma bengala era agora o seu apoio, segurada por suas trêmulas, mas ainda confiantes mãos. Algumas vezes ficava ausente e diziam que estava enfermo.
          Os seus olhos pareciam pesados, tanto quanto seu semblante, mas não tinham diminuídos o desejo de admirar as letras. Olhos estes que eram flagrados, em alguns momentos, tristes e saudosos contemplando o infinito, enquanto que, com os cotovelos sobre a mesa, o Guardião descansava o queixo em suas mãos e suspirava, saudosa e lentamente, deixando esvair de seu peito um turbilhão de sentimentos.
          Contudo, não era somente o corpo que mudava com o tempo, seus nobres sentimentos também. Quanto mais a idade avançava, mais amava e admirava o Mundo dos Livros.
          Então um dia, após a construção de uma linda e inesquecível história, o Guardião ausentou-se e nunca mais retornou, restando apenas um grande vazio no seio daquela Sociedade. Ele havia partido – seu corpo cansado não suportou o peso dos anos - passava a fazer parte de outro mundo. Mundo este que, com certeza, o receberia em festa.
       O Mundo dos Livros era inundado por uma onda devastadora de inexplicável tristeza. Ludwig - este ficara inconsolável. Não sentiria mais as mãos afáveis e trêmulas, a voz doce e inspiradora não seria mais ouvida e aqueles olhos vívidos e cheios de expressão não mais se perderiam no infinito.
         Nesse momento de tão desmedida dor, o que proporcionava um mínimo de alento aos amigos, era saber que o espírito e a essência de cada Guardião sempre permaneciam no Mundo dos Livros e, dali, jamais sairiam!!! Os Guardiões eram sim, quanto ao seu espírito e a sua essência, eternos.
          As lágrimas do Guardião, as quais um dia delicadamente marcaram as páginas de Ludwig, jamais serão apagadas. Aquelas lágrimas selaram a maior amizade da qual já se teve notícia entre um homem e um livro.
     O Universo (dizem) é infinito, há tantos mundos ainda a serem descobertos... Em qual desses mundos estará agora o Guardião?
          Talvez ele não tenha ouvido, mas quando um dia disse aos livros: “Eu amo muito todos vocês”, ressoou uma intensa, calorosa e uníssona resposta:

- Nós também o amamos Guardião!!!

          E a “voz” de Ludwig, é claro, sobressaiu-se dentre todas...


(Conto finalista do concurso de contos e poesias da Sociedade Literária São Bento - 22/11/2018 - o tema era obrigatoriamente a própria Sociedade Literária - São Bento do Sul/SC)