O Origami

Nota: este conto pertence ao meu próximo livro, O Antiquário. Os já lançados são Imitando GEENA e O Vulto & Outras Histórias. Boa leitura!

Era a terceira vez que Júlia vinha para Jacutinga, no sul de Minas Gerais, comprar nO Antiquário. Dessa vez, tinha achado uma belíssima cristaleira em carvalho maciço por uma pechincha no site da loja, e optado por vir buscá-la pessoalmente, podendo assim aproveitar a deixa para sair um pouco da sua rotina na cidade grande e estrear sua caminhonete nova. Observou Lars levar sozinho o móvel para cima de seu veículo prateado de cabine dupla. Nas vezes anteriores tinha ficado boquiaberta ao ver aquele homem, embora enorme, carregar nas costas um piano e um baú (de no mínimo centro e cinqüenta quilos cada) sem demonstrar estar fazendo o menor esforço que fosse.

- Que moço, forte, mamãe! – constatou Karoline, de seis anos de idade, que estava presente nas compras anteriores da mãe no Antiquário, mas era jovem demais para se lembrar.

- Forte mesmo, Karol! – disse Júlia, e lançou uma piscadela para Lars, que descia da caçamba após lá amarrar eficientemente o móvel, que também estava muito bem embalado para chegar intacto ao seu destino, a cidade de São Paulo.

As duas seguiram Lars de volta para dentro da loja, onde o Sr. Li as aguardava sorridente por trás do balcão, onde havia uma bandeja com dois copos de suco de lichia, suando de tão gelados.

- Hummmm... pega seu suquinho aqui, Karol. Como é que fala pro Sr. Li?

- “Brigado”! – responde a menina, mas só depois do primeiro gole.

- Eu que agladeço pela sua visita e da sua mãe, mocinha! Você plovalmente não se lembla que já esteve aqui antes, ou lembla?

Karoline faz que não com a cabeça.

- A Senholita ficou blincando com meu cabelo e meu bigode! Palecia um anjinho loilo de olhinhos azuis!

- Só que eu não lembro! – diz Karol, entre um gole e outro do suco.

- Ah, então dessa vez eu vou te dar um plesente, que é plá você não esquecer mais de mim e nem do meu Antiquálio!

O Sr. Li retira um papel dobradura de uma gaveta e contorna seu balcão até ficar de frente para suas freguesas.

- Já ouviu falar em Oligami?

Júlia acena positivamente com a cabeça, enquanto Karoline diz que não. Lars, que tinha subido para o segundo andar, junta-se a eles e o Sr. Li prossegue: - Dizem as más línguas que o Oligami é invenção chinesa... em todo caso, somos nós, os japoneses, que fazemos os melholes! – o Sr. Li ia falando e ao mesmo tempo dobrando seu pedaço de papel com tanta rapidez que mais parecia um truque de mágica. – Oligami vem de “ORU”, que significa doblar, e “KAMI”, que significa papel. Litelalmente o que eu estou fazendo! Aqui está, veja! - ele mostra para as duas um delicado anjo de papel, com detalhes impressionantes: vestia uma bata para fora da qual pendiam dois pezinhos, de sandália e tudo. As asas, atrás, foram dobradas de maneira a parecer realmente com duas fileiras de penas que iam se alongando e inclinando para cima.

- Agola, o mais intelessante – dizendo isso o Sr. Li puxa delicadamente um dos pés do anjo, segurando-o com cuidado pela cintura. As asas batem e tanto Júlia quanto Karoline sorriem com a cena, antes da dobradura ser entregue à sua nova dona.

- Que lindo!

- Lindo mesmo, filha! Agradeça novamente o Sr. Li.

- “Brigadão” mesmo! – encantada com o anjinho, Karoline não apenas agradece como carinhosamente dá um abraço e um beijo no então sorridente Sr. Li.

- Eu que agladeço, pequena. Você e sua mãe são semple bem vindas aqui! Eu me sinto honlado sabendo que vocês duas vem de tão longe pala complar comigo!

- Ora, não se substime! Onde mais encontraríamos um vendedor tão simpático e fofo, com um ajudante tão... bonito, e as melhores antiguidades do país?

- Agladecido!

- Bom, agora vamos indo, antes que escureça! E tomara que não chova.

- Creio que vai chover sim, a umidade do ar aumentou quase quinze por cento na última hora... – diz Lars, depois de olhar o termômetro digital na parede.

- Antes de ilem, senholita Kaloline, existem valias leligiões ao ledor do mundo, e os anjos estão plesentes em muitas delas. Uma de suas funções é ploteger, plincipalmente as clianças. Gualde semple seu anjo bem peltinho de você!

- Vou guardar ele pra sempre pertinho de mim, Sr. Li!

- Mais uma vez, obrigado pra vocês dois! – o agradecimento foi para ambos, mas a piscadela tinha sido direcionada novamente apenas para Lars, que sorriu e ficou junto ao tataravô na calçada observando a caminhonete com suas se afastar.

- Galanhão! – o Sr. Li bate de leve com o cabo da bengala na proeminente barriga de Lars, que a princípio fica sem jeito, depois ri.

Já dentro do Antiquário:

- Vovô, o Sr. realmente acha que aquele anjinho de papel vai ser suficiente para...

- Espelo que sim...

O Lobo-guará é o maior canídeo da América do Sul. Possui pernas longas, pelagem de cor laranja avermelhada e orelhas grandes, aproximando-se visualmente do aspecto de uma raposa. Pode chegar a um metro de altura por um metro e meio de comprimento, possui hábitos noturnos e alimenta-se e de pequenos mamíferos, répteis, aves, insetos, peixes e (em tempos de vacas magras) até de cana-de-açúcar.

Foi justamente para desviar de um esquálido representante dessa espécie que Júlia acabou fazendo sua caminhonete nova rodopiar três vezes no asfalto molhado pela chuva prevista por Lars, até parar em segurança no acostamento.

- Mamãe, eu vi um lobo! – diz Karoline, do banco de trás.

- Eu também... – respondeu Júlia, que ainda não tinha se recuperado do susto. – Você está bem, filha?

- Não sei... E se o lobo voltar?

A mãe sorri. – Ele não vai voltar, filha. Deve estar com mais medo do que a gente. Foi um puta susto!

- Um puta susto!

- Karol! Olha a... Ah, deixa pra lá... Vamos... – alguém bate com força no vidro, fazendo Júlia gritar.

- Moça? Moça? Desculpe, não quis assustar... – era um rapaz pálido, de cabelos compridos, olheiras e usando um casaco preto. A chuva já estava bem fraca. Júlia desce o vidro.

- Está tudo bem aí?

- Sim, moço, está. Desculpe minha reação, nós acabamos de sair da estrada e...

- Sim, eu vi o lobo atravessando a estrada. Vocês três tiveram sorte.

- Nós três? Somos só duas aqui...

- E ele? – pergunta o rapaz, apontando para o banco do passageiro, onde Karoline tinha deixado o anjo ao entrar na caminhonete.

- Ah, sim, temos ele também: nosso guarda costas! Não é de falar muito, mas resolve qualquer problema. Ainda vou ensiná-lo a dirigir!

- Muito bem. Fico feliz por vocês estarem bem. Vou nessa, boa viagem pra vocês. Que Deus abençoe.

- Amém – diz Júlia e dá a partida. Não gostou do jeito que o estranho tinha olhado para ela e a filha, no banco de trás. “Bobagem... ele só estava querendo ajudar. Tenho que parar de fazer mau julgamento das pessoas.”, pensa Júlia, acenando com a cabeça quando passa pelo rapaz - que tinha acabado de entrar em seu carro, um Opala preto parado em sentido contrário, no outro acostamento.

Ligou uma música e seguiu sem mais nenhum imprevisto para casa, onde chegou depois de três horas de viagem.

Foram precisos quatro homens e muito esforço para retirar a carga que Lars colocou sozinho na caçamba.

Enquanto isso, em um galpão na zona rural da pacata Jacutinga, o rapaz do Opala preto estava sentado sem camisa numa poltrona de couro, com um ventilador ligado na potência máxima apontado para ele. O lugar era assustador, cheio de manequins velhos usando máscaras e roupas bizarras, uma espécie de mural com serras, facas, estiletes e outras lâminas penduradas. Uma serra elétrica estava fixada em uma velha mesa de madeira, onde também havia um torno manual e uma antiga máquina moedora de carne, também manual.

- Cala a boca! – gritou o rapaz para o porta-malas do carro, de onde se podia ouvir socos e chutes contra o metal, além de um choro abafado.

- CALA A BOCA!

O rapaz vai até o porta-malas e bate várias vezes com as mãos no porta-malas. Todos os barulhos que provinham lá de dentro cessam.

- Isso, assim, eu adoro o silêncio. Não adianta pedir socorro ninguém vai ouvir. Ninguém vai vir. Você está só. Mas escuta essa: quase consegui companhia pra você essa noite! Eram uma mulher e uma criança, provavelmente mãe e filha, mas junto delas estava um brutamontes loiro, de olhos azuis, que me olhou de um jeito estranho, como se soubesse o que eu... deixa pra lá! O importante é que você está aqui agora, e somos só nós dois. Já volto!

A pessoa no interior do carro se encolhe toda e chora. Ela pode sentir seu coração batendo forte e rápido. Repentinamente o porta-malas se abre, e tudo o que ela vê é uma figura usando uma máscara de pano bizarra e assustadora, toda remendada, vestindo um casaco marrom escuro em farrapos e segurando uma faca enferrujada em uma das mãos.

Não fosse a mordaça, gritaria o mais alto do que já tinha gritado em toda sua vida.

FIM

Betaldi
Enviado por Betaldi em 01/11/2018
Reeditado em 04/11/2018
Código do texto: T6491942
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