Sombras na floresta

*Esse conto foi escrito para um concurso de uma editora, foi escrito em cima de um enredo pré-determinado, fiz pesquisa para encaixar as ideias, mas não fui selecionada kkkk Estava empoeirado num arquivo em PDF(por issoa formatação aqui foi está comprometida e meio desorganizada) no computador então vou deixar aqui pra que alguém leia.

**Consegui corrigir a maior parte dos erros de formatação, acredito que a leitura está mais agradável agora.

Sou Sanumá, da etnia Yanomami formada por diversas tribos que se espalham pela Amazônia. Os mais velhos dizem que nossas origens vem do demiurgo criador Omama , ele e seu irmão Yoasi governavam a floresta em dias infinitos, o primeiro criava plantas, animais e pessoas

o outro dava fim a vida deles quando era a hora certa.

Certa vez Omama se apaixonou pela filha do monstro aquático Tëpërësiki, e parou a criação para viver com ela. Eles tiveram filhos e esses foram os primeiros Sanumá. O romance do criador com a filha do monstro gerou inveja e ciúmes em Yoasi, que era incapaz de criar e amar a criação da mesma forma. Então, para castigar o irmão, ele trouxe a noite para confundir seus filhos e despertar a maldade que eles não tinham. Durante o dia a vida seguia normalmente, ao cair da noite ele mandava espíritos unokai, assassinos, para perturbar os sanumá, e ao nascer do sol sempre havia uma trilha de morte. 

Para proteger os Sanumá dos espíritos xapiripë malignos enviados por Yoasi, Omama traçou limites de proteção na aldeia e tomou providências: proibiu seus filhos adultos de pronunciarem seus nomes em voz alta, ou fora da aldeia, para confundir os espíritos. Protegeu as crianças, porque não eram capazes de guardar os nomes em segredo, e criou os noneshi, animais­ sombra, que eram como gêmeos dos sanumá, e compartilhavam os acontecimentos de vida e morte. Essa última proteção me parecia a mais frágil, pois Omama contava que seu irmão não faria mal aos animais que ele gostava, então escolheu aves grandes para serem noneshi dos homens, e animais terrestres para as mulheres. Ele convenientemente ignorou os animais aquáticos, que eram os maiores alvos do ódio de Yoasi. Isso, claro, não resolveu por completo o problema, pois de tempos em tempos uma nova onda de morte passava pela floresta. 

Recentemente fiquei pela primeira vez em hokolomo, reclusão, para o período de menstruação. Então, mesmo aos doze anos, eu já era considerada adulta, meu nome deixou de ser pronunciado em voz alta. A partir daí, quando precisavam de mim apenas me apontavam ou gritavam o que eu tinha que fazer me olhando nos olhos. Eu tinha perdido toda minha individualidade, como todos os outros. Uma das poucas vantagens de ser adulta era poder participar de todas as atividades da tribo, exceto a caça, pois às vezes exigia sair durante a noite, fora da proteção da shabono, a cabana que abrigava os membros da aldeia. Uns poucos homens faziam essa perigosa tarefa, e vez ou outra morriam no processo.

Achava isso injusto, pois deixava muitas crianças orfãs de pai, como eu.Minha família era só eu, mãe e dois irmãos mais novos desde que encontraram o corpo do meu pai há 5 anos ao lado do que acreditavam ser seu noneshi, que era um gavião de penas escuras. O estranho era que o gavião havia sido morto pela flecha do meu pai, e ele sabia que não podia caçar gaviões justamente para não acabar matando seu animal sombra e morrendo junto com ele.  Depois disso, os xamãs, os índios mais velhos, responsáveis pela comunicação comos bons espíritos, ordenaram que ninguém caçasse sozinho, para que um impedisse o outro de cometer o mesmo erro.

Erro, chamaram de erro, meu pai não havia errado, eu desconfiava que algo fora de seu controle havia acontecido.   Desde então a tribo vivia amedrontada, ninguém comentava a respeito das mortes precoces, as usavam como forma de amedrontar a tribo. Acho que todos sabiam que Yoasi havia encontrado formas burlar as proteções. Um dia um dos nossos caçadores, foi atacado por um gavião real até a morte. O pássaro estava ao lado, também morto.

Disseram que ele havia chegado perto demais do ninho e que várias fêmeas se enfureceram. Eu fui escondida ao local, para matar minha curiosidade, nem sinal de ninho ou das fêmeas. Pássaros grandes não   atacam seres ainda maiores até a matá-­los. Impossível.  Toda vez que alguém jovem morria assim, o medo levava a tribo toda a um período de reclusão e luto.

Ficávamos dentro dos limites da aldeia, comíamos apenas frutas e plantas,bebíamos água da chuva, até que alguém desesperado o suficiente resolvesse sair novamente.   Já faz duas luas cheias que não saímos da shabono, dessa vez porque o rio se encheu de peixes mortos e os xamãs confirmaram que foi obra de Yoasi, por odiar os seres aquáticos.

Fortes chuvas destruíram parte de nossas plantações,tinhamos muita água e pouca comida, e isso abalou os ânimos. Com fome e mal nutridas, as crianças perdiam a cabeça, brigavam e gritavam os nomes umas das outras aos quatro ventos. A noite caía, e os adultos chegavam ao limite, discutiam sobre sair da reclusão, sobre comida, sobre nada. Botavam a culpa nos espíritos, mas eu achava que com tanta tensão eles precisariam se esforçar. Durante o dia mal conseguíamos cumprir com as tarefas normais como furar os lábios dos meninos de 8 e 9 anos   com palitos de bambu. Tive que fazer isso nos meus irmãos, eles estavam cansados e sensíveis.  — Vai ser bem rápido, fique quieto. —eu disse ao mais novo, enquanto o mais velho escondia o choro. 

— Vai terminar antes de eu terminar de dizer arara. Vamos lá a­ra…  — Ai! — meu irmão gritou. — Você não me avisou!  — Avisei que não ia terminar de dizer.  

Ele começou a me estapear, furioso e eu o segurei pelos braços para acalmá-­lo. 

— Chega, eu sei que está bravo, e sei que não é comigo.  — Eu quero sair para pescar, quero comida…  Fiquei com pena de ouví­lo reclamar, eu mesma já não estava aguentando, e também estava furiosa por ninguém querer fazer nada a respeito. Queria ser a primeira a quebrar a reclusão.  — Prometem segredo? — eles fizeram que sim — Vamos sair hoje,no fim da tarde. 

— Ao anoitecer?! Não é perigoso? — o mais velho, a quem chamamos de Waxi, por ser esperto como um macaco­ prego, se espantou. 

— Waxi tá com medo. — disse o mais novo, a quem chamamos de Haxo, o macaco branco, por gostar de pintar os cabelos com argila branca.  — Vocês ainda são protegidos de Omama, não precisam ficar aqui. 

— Você não tem medo Ir…? — tapei a boca do menor antes que ele terminasse de dizer meu nome, mas a verdade é que eu queria que ele dissesse.  

— Estou cansada de ter medo, se quisesse Yoasi acabaria com a shabono num sopro. É inútil nos esconder. 

Só a ideia de sair da aldeia já os fez concordar coma fuga. Cataram pequenos arcos e flechas, e eu peguei uma estaca afiada de bambu. Saímos sem sermos vistos.  Não planejei onde ir e acabei seguindo em direção às terras desconhecidas, onde os moxateteu, índios isolados, costumavam fazer rituais. Por causa das fortes chuvas o solo estava encharcado, coberto de folhas podres e viscosas. Escorregamos barranco abaixo e caímos num pântano negro, bati a cabeça em algo sólido, mas que não era uma pedra, nem um tronco de árvore. 

— Seu nome criatura — uma voz etérea e grave se pronunciou, não era uma pergunta, mas uma ordem. De repente o calor do meu corpo foi roubado. Parecia que o tempo tinha acelerado, porque eu podia ver as plantas ao meu redor envelhecendo, se movendo, as flores amarelando, as folhas acinzentando. As raízes pareciam sucuris e se enrolavam no meu corpo. Eram mesmo raízes? Procurei meus irmãos e os encontrei já presos, sem forças, e confirmei horrorizada, eram raizes estranhas. Tinham cor desangue, aliás eraaúnicacor por ali, o resto todo parecia morto. Esperava que não fosse sangue, mesmo depois de sentir espinhos perfurarem meu corpo.  — Sou Sanumá. — respondi à figura escura.  — Esse não é seu nome.  — Quem é você?  — Uma filha deOmama deveria me reconhecer, não vê a semelhança?  Era sombra negra, com rosto e corpo de homem, olhos amarelos.Reconheci quem era por causa das plantas mortas e porque os animais ou fugiram ou cairam mortos.Yoasi, o gêmeo de Omama.  — Agora sabe, não vai me dizer o seu nome? — fiz que não e ele sorriu malignamente. — Sabe, posso descobrir sem sua ajuda. 

— E por que não faz isso? — eu respondi tentando parecer corajosa, confiando no que me disseram sobre estar segura enquanto mantivesse meu nome em segredo, mesmo sabendo que Yoasi poderia fazê-­lo indiretamente, usando animais ou outros elementos da natureza,           como havia feito com meu pai. 

— Sei que os Sanumá tem um noneshi e capturá-lo seria menos trabalhoso.   Fiquei paralizada de medo, e as raízes de apertavam ainda mais, elas estavam se fixando em mim como uma trepadeira parasita. — Há tempos eu queria pegar vocês Sanumá, mas vocês grandes são espertos. Talvez se eu         pegar um indiozinho insolente… 

Meus irmãos! Estavam pior que eu, completamente tomados pelas raízes de sangue. Omama protege melhor os pequenos, repeti mentalmente, o que era irônico, já que eles já estavam quase mortos de tão debilitados.  — Quero dizimar todos os filhos de Omama, mas eu não teria mais como perturbar meu irmão se não sobrassem nenhum. Então me contento com esses dois pequenos,meu irmão choraria tanto que inundaria essa floresta para sempre.  Seu corpo sombrio virou uma fumaça densa e mal cheirosa que foi entrando pela minha boca, nariz, olhos, ouvidos. Eu não conseguia respirar, minha pele ardia em brasa como se eu tivesse caído em água fervente. Tossi, sufocada, meus pulmões se encolhiam tentando expulsar Yoasi, e ele ainda podia falar dentro da minha cabeça  “Você vai me dar seus irmãos se quiser salvar sua etnia yanomami” ele disse dentro de     mim. 

— Não! — gritei com todas as minhas forças, expulsando parte da fumaça com um sopro de ar, mas ele ainda estava ali.—Por que eles e não eu? Eu digo meu nome! —eu disse num último fôlego. 

— Porque ninguém é mais amado por meu irmão do que uma criança. Se eu conseguir

extinguir aqueles dois, eu venço. — a essa altura ele já não falava comigo, mas devaneava. 

— Sabe ­que­ não ­pode ­fazer

isso — eu disse engasgada em saliva e fumaça.  — Não sozinho, mas você vai fazer por mim.  Ele pos imagens na minha cabeça, eu estava de volta à shabono, espíritos negros invadiam os corpos dos índios, fazendo­os avançar uns sobre os outros, puxando cabelos,rasgando a pele com as unhas e os dentes, como animais selvagens.  Eu gritei em agonia novamente e Yoasi me calou num turbilhão de fumaça quente e negra. Mais raízes brotavam do chão, sedentas, exatamente como serpentes famintas. Senti algo forte me empurrar, quebrando as raízes encravadas no meu corpo. Yoasi me levantava         com toda sua força, me fez pegar com a mão direita a estaca afiada que eu havia trazido para colher timbó e apontar para o peito de de Waxi.  

“Você já sabe o que acontece depois disso. Você cumpre sua parte e salva sua tribo”, ele me inclinou sobre o corpo de meu irmão e preparou o golpe. Na ultima hora a estaca foi desviada e aingiu as raízes, esguichando sangue. Eu não fiz isso,Yoasi também não.  De repente fui pega firme pelo meu colar e fui arrastada por garras rentes eu meu pescoço, quando ouvi duas vozes gritarem “Ira!” 

"Lalubalu die!" — gritei em desespero para se calarem e perdi os sentidos.  Acordei não sei quanto tempo depois,o espirito de Yoasi já não estava em mim. Porém,não foi um alívio abrir os olhos, eu estava num poça de lama cercada por vários corpos murchos, com olhos vidrados, bocas e unhas negras,completamentetomados por formigas de fogo. Não os reconheci, mas o lugar não era longe de onde eu estava antes, pois a trilha de mortos ia em direção ao pântano.

Parecia que uma enxurrada havia levado camadas várias de folhas e raízes mortas, e trazido à tona os mortos de Yoasi. Seriam as lágrimas de Omama? Será que seu gêmeo mau havia matado meus irmãos? Eu não me recordava.

Por que ele não me matou quando descobriu meu nome?  Essa era a última coisa de que me lembrava, Ira, meu nome sendo gritado por vozes aterrorizadas. Senti três arranhões profundos no ombro, ainda sangravam, vi uma onça espreitando entre as árvores, imóvel. Foi quando entendi o que tinha acontecido. Meus irmãos não gritaram meu nome, apontavam para a onça que havia me puxado pelo colar. A onça e e tinhamos o mesmo nome, Ira, seria minha noneshi? Como soube onde eu estava? Concluí que nossa ligação era suficiente para atraí-la para perto.  Nem todos os índios sanumá ganhavam o mesmo nome de seu animal sombra, muitos mudavam várias vezes com o tempo. O meu continuava sendo Ira, por causa da minha mania de observar e agir.

Eu sabia que minha noneshi era uma onça, mas nunca imaginei que iria encontrá-la em vida. Ela nasceu, eu nasci, ela cresceu, eu cresci, eu morro, ela morre.  Eu não podia voltar para a shabono ainda, a tribo estaria segura sem saberem do perigo que corriam. 

Esperava que Omama estivesse protegendo meus irmãos. Passei horas procurando um dos xamãs que vivia fora da aldeia, mas estava tão escuro que eu só andava em circulos. Eu estava faminta, fraca, e me assustava com qualquer movimento. Resolvi seguir minha noneshi, que estava em melhor estado que eu. Não sei se era uma boa idéia, já que Yoasi podia estar usando algum espírito xapiripë para me espiar, mas achava que a onça poderia sentir se isso acontecesse. Ele me usou para fazer mal a centenas de animais, e faria de novo, só que ao meu povo. O criador podia evitar a tragédia, mas o irmão ainda contava com os espíritos para realizar seus planos.

Eu precisava saber o que Omama queria de mim para salvar a tribo e me livrar de atentar contra meus irmãos.  A onça encontrou uma fogueira brilhando, era o xamã me esperando, cheirando yakoana. 

— Um xapiripë me disse o que aconteceu.  — Então sabe que estamos todos em perigo por minha culpa.  — Não é sua culpa, nosso povo sempre esteve em perigo, desde que Omama gerou os sanumá com a filha de Tëpërësiki. Você sabe que o sigilo dos nomes é apenas um escudo frágil. Lembre­se de que Yoasi é tão poderoso quanto seu irmão. Os espíritos me avisaram que Omama precisa de você. 

—  De mim?   O xamã não respondeu apenas pegou um punhado de yakoana e apertou contra meu rosto. Minha mente rodopiou para outra visão, a mesma que Yoasi havia colocado em minha mente só que com detalhes diferentes, eu entrava novamente na shabono e as crianças       gritavam os nomes dos mais velhos, e a medida que os nomes eram revelados cada um deles caía morto num último suspiro donde saía uma fumaça preta que eu sabia ser o espírito unokai.  As crianças me apontavam, me acusando. E os corpos não paravam de caír, dilacerados à unhadas e mordidas, enegrecidos, sendo devorados por formigas defogo. No pátio central um corpo de luz chorava alto, triste pela perda dos filhos, e o chão começava a inundar de lágrimas. Era Omama, quando me viu, estendeu a mão, e quando eu toquei, a sensação era     totalmente diferente da que eu tinha sentido antes com o gêmeo. Foi então que eu entendi, ambos gêmeos eram como o noneshi um do outro. Um nasceu no mesmo momento do outro.

Para toda vida criada, uma vida era tirada, mas o equilíbrio havia sido abalado quando Omama tomou a filha do monstro aquático e gerou filhos, que geraram filhos. Não eram mais fruto de  simples criação, então Yoasi não podia dispor daquelas vidas como queria. Os dois nunca poderiam ser destruídos, ou todo o mundo yanomami deixaria de existir, para haver paz eles teriam que se tornar outra coisa, ou uma coisa só. 

A visão mudou de cenário, e voltamos para o pântano, onde Yoasi tinha meus irmãos presos. O sol estava sendo encoberto pela lua e o dia virando noite por alguns instantes, no exato momento em que eu pisava a terra do gêmeo mau. Os dois irmãos se encontravam novamente, a luz tentando engolir a escuridão.   Nesse momento do sonho fiquei consciente novamente, sem a certeza de qual era meu         papel na história. Ia perguntar o xamã, mas quando abri os olhos ele estava com os olhos arregalados, tremendo fortemente, seus olhos começaram a escurecer e a perder a vida. De repente milhares de formigas saltaram da boca do velho.

Senti a onça puxar meu colar e me arrastar apressadamente para longe.   A madrugada perdurava, e eu estava tão perdida quanto antes. Continuei seguindo minha noneshi, na esperança de ela estar sendo guiada por Omama, mesmo não confiando mais no criador. Por que precisava de mim se era tão poderoso?  Fora dos limites da shabono haviam marcas da matança que vinha ocorrendo na floresta. Ela parecia morta em algumas partes, verde e viva em outras. Uma trilha de animais apodrecendo pintava o solo de um tom de negro viscoso. Vi mais corpos, três caçadores da minha tribo, com certeza morreram ao saírem da proteção de Omama para me procurar. A cada passo que eu dava, seguida pela minha noneshi, caía algo morto aos meus pés,e eu me perguntava se nós seríamos os próximos. 

A essa hora, Yoasi, já devia saber que eu estava com meu animal sombra. Era só questão de tempo até mandar um espírito maligno nos encontrar e nos matar. Eu precisava ir até a shabono, que era o lugar menos perigoso da floresta no momento, precisava alertar a tribo do que estava acontecendo. Quando cheguei havia gente caída por todo o pátio, não mortos ainda, mas exaustos. Algo queimava nas fogueiras, havia muita fumaça brança, o que me tranquilizou momentaneamente, porque achei que pudesse ser o espírito unokai de Yoasi. Reconheci o cheiro, era yakoana, os xamãs haviam queimado a planta em grandes quantidades para controlar os índios e impedir que saíssem dos limites.  

Uma velha se levantou e gritou “Ira” com o que restava de suas forças, ela gritou meu nome de forma que até espantou os pássaros. O restante da tribo também se levantou, precariamente, e fez coro com meu nome. Minha mãe chorava, mas participava, certa de que minha desobediência havia trazido destruição para a tribo, desesperada pelo desaparecimento de meus irmãos. Avançaram em minha direção, alguém me agarrou pelos cabelos e me amarrou. A onça circulava as pessoas,preparando­-se para atacar, mas havia muitas pessoas e ela não tinha chances, os caçadores conseguiram amarrá­la. Eles iam nos entregar a Yoasi, e nem sinal de Omama. Parecia impossível fazê­los coexistir para acabar com a disputa e salvar todo o povo.  O sol nasceu, cercado de densas nuvens negras de chuva, a lua ainda não havia sumido, estavam se aproximando cada vez mais.

Eu sabia que o momento da visão aproximava, mas ainda não sabia o que fazer. Eu estava machucada e desamparada. Chegamos ao pântano e eu fui jogada entre as raízes desangue, meus irmãos ainda estavam     lá, presos. Meu nome voltou a ser gritado, como forma de invocar ogêmeomau. Uma fumaça brilhante se materializou e começou a entrar pela minha boca, perdi o controle dos movimentos. Olhei para minha babava, engasgada em saliva e fumaça negra, exatamente como eu na tarde anterior. Seus olhos estavam amarelos e ansiosos. Yoasi a controlava e essa era uma grande desvantagem, porque mesmo sob o controle de Omama, meu corpo ainda era o mais frágil.   Minha mão direita pegou a lasca de bambu afiado que deixei caída quando fugi de Yoasi. Ainda não precisava saber a hora certa de agir. Eu era uma mera observadora, presa em meu próprio corpo. 

Escureceu e eu soube, a onça atacaria. Nós morreríamos.  A onça avançou com os dentes escancarados diretonomeupeito. Na última hora, meu braço direito, armado, se moveu e atingiu minha noneshi também no que deveria ser seu peito. A onça caiu em cima de mim, me encharcando de sangue quente, que eu já não sabia se era só meu, ou dela, também moribunda.   As raízes espinhosas nos abraçaram e sorveram o sangue derramado, até que raízes secaram até virar pó. Não era mais possível distinguir Omama de Yoasi, os dois agora eram feitos da mesma matéria. A chuva finalmente caiu, alagando o pântano e levando o pó das raízes ao rio.  

Eu não sabia dizer se estava morta, mas podia ouvir meus irmãos me cercarem, deitando minha noneshi ao meu lado. Vi nossos espíritos se desgarrarem dos corpos formando uma nova conexão. A ferida em meu peito se fechou milagrosamente quando o novo espírito migrou para mim. Seu corpo ficaria inerte para sempre naquele túmulo de tantos, mas seu espírito agora vivia em mim. A tribo passou a me chamar de Irawë, o espírito da onça, e não precisaram mais escondê-­lo. 

Lívia Helena Rodrigues
Enviado por Lívia Helena Rodrigues em 15/10/2018
Reeditado em 18/10/2018
Código do texto: T6476895
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