A menina do bosque
Todo dia era a mesma coisa: um tal de corre no bosque para catar ervas, um mexe mexe intenso no preparado, um olho na caça e outro no tempo que podia virar e estragar as intenções (boas e más) do dia.
Betina vivia amedrontada debaixo das saias da mãe. Temente, estava sempre solícita à todas as ordens que lhes eram impostas. Sua mãe não era de brincadeira, e portanto, era melhor não contrariá-la. Se ela lhe pedisse uma asa de morcego coxo ou uma pata de coelho manco ou um olho de sapo caolho era mais prudente providenciar o mais rápido possível, a menos que ela quisesse ver boiando no caldeirão uma orelha de menina malcriada.
Chorava copiosamente a cada missão executada e voltava para casa trêmula, tentando manter a sanidade e a serenidade. Em vão. A bruxa Sophia tudo sabia. E da menina, com escárnio e prazer mórbido, ria.
“Que tal acalmar esse coraçãozinho angustiado, minha filha?”, perguntava com voz melodiosamente doce.
A menina, que já sabia o que isso significava, baixava humildemente os olhos, conivente.
“Sim, mamãe. Estou indo.”
E passava a varrer a casa, a tirar o pó dos móveis, a regar as ervas nos canteiros, a lavar os utensílios. Entre um intervalo e outro punha-se sonhadora na janela e, com o vento batendo-lhe no rosto, imaginava um mundo diferente. Talvez, uma vida de criança “normal” que brinca, que recebe carinho, que tem amigos, que vai a escola fosse, afinal, cativante.
Fechava os olhinhos em seus devaneios, e quando dava por si, estava flutuando a dois palmos do chão. Policiava-se. Não queria desenvolver os dons que lhes eram inatos. Queria mesmo era fugir daquela sina de bruxa a qualquer custo.
Vez ou outra quando saía para colher ervas diferentes para mais uma poção maligna da mãe, Betina corria até o vilarejo mais próximo e ficava atrás das árvores a espiar a vida pacata das outras crianças. Sorria ao vê-las numa ciranda animada ou dividindo um pão ou um pedaço de torta de maçã. Ah, o cheiro da torta era sublime! Presumia que a desejada guloseima fosse mais saborosa que a famigerada sopa de patas de aranhas, especialidade de sua mãe. Entristecia ao lembrar da sua vida. Só queria ser criança e não podia. Como isso doía. Chorava com a mãozinha no coração. “De que me adianta o dom da vida se nasci para sofrer? Nasci bruxa e o meu destino é sombrio. Que saída tenho eu vivendo neste meio de trevas, abandono e desilusão?”, indagava-se com pesar entre soluços de lamentos.
Certo dia, retornando de um desses passeios “alegre-tristes”, encontrou a casa vazia e um bilhete sobre a velha mesa de carvalho que dizia:
“Betina, precisei sair para levar o unguento da senhora Alba e realizar o ritual de maldição para liquidar os seus credores. A velha não aguenta mais aqueles sanguessugas em sua porta. Mexa o caldeirão com cuidado, pois essa é uma poção especial. Já volto. Ass.: mamãe.”
“Especial?”, perguntou-se curiosa. Foi depressa espiar o livro das sombras da mãe. “Poção do amor”, dizia na data de hoje. “Hum... Interessante! Talvez eu possa reforçar os ingredientes, deixar a poção mais poderosa, misturá-la ao suco de groselha e dar para a mamãe-bruxa beber. Quem sabe assim ela torna-se mais amorosa.”, pensou a menina esperançosa. Pegou um punhado generoso de alecrim e mais um outro de camomila e um coração extra de rã do pântano. Só precisava agora subir num banquinho, jogar tudo no preparado que já borbulhava nervosamente e mexer bem...
Os olhos de assombro da menina arregalaram-se quando perceberam que aquele enorme caldeirão quente virava sobre si. Um grito aterrador ecoou por todo o bosque. Uma revoada de pássaros alçou voo. Depois, silêncio mortificante. Quando Sophia chegou a casa encontrou o panelaço jogado no chão e apenas as roupas rasgadas da menina, como se seu corpo tivesse se desintegrado completamente. “Nããããooo... Minha filhinha...”
Betina ficou espreitando o desespero da mãe, escondida embaixo do assoalho da casa. Encolhera e achou por bem se dar por morta. Fugiu dali para sempre.
***
Hoje brinca feliz com seus irmãos adotivos no gracioso balaço de cogumelos, construído por sua nova família de gnomos, que tão amorosamente a acolheu.