Hombridade dos poetas: outros tipos de poetas
Outro dia flagrara vovó furtando gostosos pedaços das lembranças de sua juventude. Lembranças essas que tinham sido feitas reclusas em fotografias que agora se demorava a contemplar ternamente do álbum que protegia em seu colo, como se de um material de valor se tratasse. Era de se comover ao ver a devoção que oferecia ao objeto.
Recostada comodamente em seu assento preferido que já perdera o brilho do verniz, um pouco mais velho que eu, fui arrebatado pelas minhas vagas recordações. Utopizava-as no mesmo lugar e posição que encontrara vovó. Outrora mais disposta e bem-humorada, agora um pouco mais séria, tricotando e me contando proezas de meu avô. Vovó tinha a maninha de dizer que meu avô era um poeta, um outro tipo de poeta.
Meu avô bateu as botas quando eu tinha 8 anos de idade apenas, agora com 20 e poucos anos, das recordações que ainda tenho dele, não lembro de tê-lo visto a escrever poemas ou ouvido de algum parente próximo que não fosse vovó.
Então perguntara meio incrédulo:
- A senhora algum dia já o viu a escrever poemas?
- muitas vezes! - Dizia ela. - Muito deles os escreveu na minha frente.
Seu avô foi um dos poucos de seu tempo que amava e fazia com paixão sua arte. Vou lhe contar um segredo... foi a poesia do seu avô que me conquistou.
Quando voltei a prestar atenção em vovó seus dedos da mão direita passeavam delicadamente numa fotografia em especial. Fez uma pausa. Vovó ficara com o rosto mais sério ainda. Podia se ver claramente estigmas de enrubescimento em seu rosto a acentuarem-se. Com gestos calculados removera os óculos de leitura dos olhos. Com a mão esquerda e com a direita prendia os dedos polegar e indicador entre os olhos ao mesmo tempo que os mantinha apertados. Seus braços tremiam quando voltou a abri-los e seus olhos haviam adquirido um brilho diferente, como uma imagem vista no encontro entre o mar e o pôr do sol ou o brilho nos olhos de uma criança que reivindica por alguma coisa, antes de começarem a jorrar definitivamente lagrimas.
- Sei que você está aí - disse vovó. - Pode entrar.
Entrei e encostei a porta atrás de mim.
- Como a senhora soube que era eu? – Perguntei.
- Teu cheiro é inconfundível.
Vovó sempre foi uma mulher valente quanto aos seus sentimentos mais recônditos e ferinos. Jamais demonstrou qualquer resquício de melancolia ou sofrimento, nem mesmo quando falava do meu avô. Mas agora, ela estava abatida por mais que se esforçasse a dissimular, seu semblante denunciava melancolia pura e enxergava-se mais claramente o peso do tempo idos e vindos em seu rosto.
Levantou-se do lugar onde estava com elegância, pousou o álbum de fotos que mantinha no colo e caminhou para a janela. Ficou por lá por pouco tempo. Depois passou por mim sem proferir uma palavra sequer, bateu-me de leve no ombro e saiu. Só levando consigo sua nostalgia de momentos que infelizmente jamais regressarão.
Fiquei só, naquele pequeno espaço repleto de coisas velhas. Era como se tivesse num museu, um outro tipo de museu. Muito diferente daquele que o governo tem em seus cuidados, todo limpinho muito bem aparado, cheirosinho e iluminado.
Alcancei o álbum de fotos para mim, vovó havia olvidado de fecha-lo e guarda-lo e pude ver com meus próprios olhos o que os seus olhos viram pela última vez antes de deixar seu aposento. E sentir o que sentira e indescritivelmente reviver sua nostalgia e perceber finalmente o que queria me dizer a anos e eu nunca entendera.
Na foto estava meu avô na companhia de vovó. Eram muito jovens, tendo não menos de 22 anos e não mais que 24 anos. Seus rostos emitiam luz, paixão e felicidade. Felicidade por vovó estar ao lado da pessoa que mais amava e avô por estar fazendo o que mais amava, mas não mais que vovó é claro.
Na foto avô Carlos erguia o pé direito do chão e achava equilíbrio no ombro de vovó com o braço esquerdo, mantendo-se na ponta do polegar do pé esquerdo.
Meu avô era de fato um poeta, outro tipo de poeta. Ele não escrevia seus poemas com caneta numa folha branca como fazem os escritores. Mas as escrevia com o seu corpo em cima do palco. Meu Avô Carlos fora um bailarino. Vovó tinha razão!
Bailarinos, pintores, cantores, jogadores, maestros, pensadores, escritores no fundo somos todos poetas, outro tipo de poetas. Pois encontramos em nossa arte o fosso para emanar a alma que transborda e coração que sufoca.