A filha da Natureza
A filha da Natureza
Dias chuvosos eram comuns na floresta de Atwoods, perfeitos para danças na chuva, brincadeiras na lama e pregar peças em aventureiros desprevenidos. Mas para alguns pixies era um dia para compartilhar histórias no conforto das pequenas tocas que existiam dentro de troncos das maiores árvores da floresta.
Era dentro da toca do Pistachio, um pixie ancião e ex-aventureiro, que se encontrava Iria, uma curiosa jovem fada de asas verde e azul que tinha um gosto especial pelos contos inimagináveis que o velho gostava de compartilhar.
-Senhor Pistachio, senhor Pistachio, que aventura tem para me contar hoje?- Ela perguntou assim que adentrou a toca.
-Bom, menina, primeiro me diga o que me trouxe para adoçar meus ânimos - O senhor respondeu, alisando sua barba, já com um sorriso no rosto.
Era o pequeno ritual do ancião, os jovens curiosos e sonhadores vinham lhe perguntar sobre suas aventuras, e em troca ofereciam as mais diversas frutinhas enroladas em minúsculas folhas de louro ou amora.
Naquele dia, Iria havia levado alguns mirtilos salpicados com orvalho da manhã, colhidos da mais velha árvore da clareira onde moravam. As frutas estavam enroladas com muito cuidado em uma trouxinha de folhas de hortelã.
-Apenas você hoje, minha querida?- O pixie perguntou, ao aceitar o presente.
-Sim, parece que há um grupo de duendes que iam fazer uma oferenda à Mãe, e os outros foram acompanhar. Mas já vi isso na primavera passada.
Os dois se sentaram um frente ao outro, a pequena trouxinha aberta entre eles, como era o costume, a diferença era que, normalmente, haveria muitas mais trouxinhas com diferentes iguarias e fadas sentadas em roda. Se sentindo honrado com a escolha da jovem, o senhor Pistachio decidiu fazer algo especial, e disse: - Então, para você que prefere as histórias de um velho a um espetáculo raro, contarei um segredo.
“Quando eu era pouco mais velho do que você, me aventurei a oeste do oeste da nossa floresta. “Nada há lá”, diziam meus amigos, portanto fui sozinho. Depois da clareira Mansa, passando do rio de Atwood, atravessando o pântano sombrio, dentro a pequena floresta de Gil-gead, há um conjunto de rochas dispostos da forma mais curiosa.
O pixie parou um momento para pegar um mirtilo, e enquanto saboreava a fruta, aumentava a expectativa da jovem.
A pequena prendia a respiração e apertava os punhos contra as pernas, tamanha sua ansiedade. Nunca ninguém havia falado de terras além-pântano. Sabia que existiam, pois vez ou outra apareciam humanos e outras criaturas perdidas que só podiam ter vindo de muito longe, mas a maioria das fadas se contentava com esses pequenos vislumbres ocasionais de que existia um mundo fora da floresta, sem interesse em ver pessoalmente de onde vinham os forasteiros.
Vendo o semblante da jovem, o senhor Pistachio mudou de ideia. Realmente tinha intenção contar o que tinha visto para ela, e aquilo que sucedeu tal descobrimento, mas resolveu que, para Iria, sua mais ávida ouvinte, a mera descrição de um fato já não era mais suficiente.
-Minha pequena, quer mesmo saber o que encontrei naquela clareira, naquele dia? -
Iria achou estranho, pois raramente o velho interrompia sua narrativa, além de considerar a pergunta redundante.
-Claro que quero, senhor Pistachio.
-Então, querida criança - ele se levantou e foi até uma pequena mesa onde haviam vasos e potes de barro, pedra e madeira, altos e baixos, redondos, quadrados e retangulares. Correu sua mão sobre os recipientes, pegou um pote de barro comprido e fino com tampa decorado e caminhou de volta à fadinha - Tenho aqui um presente para você - E entregou o pote à ela.
Com cuidado, Iria pegou o pote, analisou o desenho simples entalhado nele: linhas em zigue-zague e círculos ocos, o que indicava que era um pote muito antigo, pois essa já era uma moda um tanto ultrapassada. Um vaso atual teria ondas e espirais. Após essa observação, ela abriu com cuidado a tampa, colocou-a ao seu lado e retirou de dentro do pote um longo pergaminho enrolado em um pedaço de couro curtido.
Estendeu o pergaminho no chão e observou. Era um mapa. Iria já havia desenhado mapas na terra quando brincavam de caça ao tesouro ou para ilustrar caminhos para viajantes, mas essa foi a primeira vez que viu um mapa verdadeiro, desenhado em couro, com tinta preta representando todos os aspectos da região.
Ela pode reconhecer no mapa a clareira onde morava seu clã, o rio Atwood, o pântano e muitos outros locais familiares. Mas a verdadeira fascinação se revelava nos muitos locais não conhecidos à jovem. Com olhos brilhando, ela perguntou ao velho:
-Esse é o mapa do mundo?
Ao ouvir tamanha inocência, o velho pixie caiu na gargalhada, o que deixou Iria com as bochechas vermelhas de vergonha.
-Não, não, minha pequena, me perdoe, apenas me lembro de quando eu mesmo tive essa dúvida. Veja, - ele disse enquanto apontava um local no mapa - essas são as pedras que lhe falei.
Assim como Sr. Pistachio havia descrito, à oeste da clareira, estavam representadas no mapa um conjunto de pedras dispostas em círculo. Iria levantou os olhos do mapa, e seus olhares se encontraram. O velho sabia exatamente o que se passava na cabeça da jovem, seu semblante um espelho de sua própria ansiedade na juventude. Sorriu e disse:
-Quando parte?
Com um sorriso de orelha à orelha, ela respondeu:
-“Não deixe para amanhã, o que pode fazer hoje!”
Horas depois; menos horas do que você esperaria para preparações de tal proporção, e mais horas do que a jovem fada gostaria de ter demorado; a maioria dos habitantes da clareira estavam reunidos, alguns animados, outros chorosos e os mais conservadores, com carrancas desaprovando tal ousadia (afinal, para que uma fada iria querer sair do perfeito conforto que oferecia a floresta de Atwoods?), para se despedir da menina, suas pequenas asas forrando o chão da clareira com seu pó de fada.
“Onde vai?”, “Quando volta?”, “Por que não fica?”, “Me traga um presente!” Essas eram apenas algumas das muitas perguntas que faziam as fadas, enquanto enchiam de presentes, provisões, conselhos e avisos a pequena recém aventureira, mas a maioria das questões ficava sem resposta, pois logo que um entregava seu presente, outro já a puxava
com outra indagação. O único comentário que a fez parar foi o de uma fada mais velha que disse, quase distraída: “Titânia não ficará feliz com essa notícia…” Ainda assim, em sua felicidade, Iria ignorou o aviso, pegou sua trouxinha - agora cheia de iguarias e boas intenções - amarrou-a como bolsa lateral e partiu.
Iria levou até a noite daquele dia para voar até a borda do pântano sombrio, pois em seu caminho pela floresta, foi se despedindo de seus amigos animais e de suas plantas e árvores favoritas e também fez uma pequena pausa na lagoa de prata para pedir a benção da Mãe - uma naiade muito antiga que residia no lago. Quando Iria chegou na borda do pântano sombrio, resolveu passar a noite em uma toca de texugo. Normalmente esses animais não eram os melhores anfitriões, mas ela tinha um dom especial em amansar rabugentos “Com licença, sr texugo, lhe ofereço um pouco de mel, e você me oferece um lugarzinho em sua casa?” Com seu sorriso meigo, poucos tinham o coração gelado suficiente para recusá-la.
No dia seguinte, antes do sol tocar a copa das árvores, ela já tinha feito o desjejum com amoras, raízes e orvalho. Seguiu sua jornada pântano adentro, pousou pela noite em uma toca de coruja, e observou o chuvisco gelado de outono.
-Tchau, tchau, dona coruja, bom descanço. - Se despediu de sua companheira pela manhã e seguiu em frente.
Continuou segundo as direções do mapa e logo o chão lamacento foi se tornando gramado e terra, as árvores ciprestes deram lugar à vegetação mais espaçada e verde-vivo da floresta de Gil-gead. Nunca havia estado lá antes, mas imediatamente sentiu uma tênue vibração de magia no ar, diferente da magia que estava acostumada, natural e inconstante que se manifestava da natureza, de seres sobrenaturais e das próprias fadas pixie em sua floresta, essa parecia emanar de um mesmo ponto fixo e estável, era como se estivesse ouvindo um zumbido em seus ouvidos.
A sensação não familiar lhe causou um leve arrepio.
Animada, Iria se dirigiu em linha quase reta para a fonte da magia estranha, apenas se desviou de árvores e pedras em seu caminho. Quanto mais se aproximava, maior a tensão pairando no ar e mais alto o zumbido em seus ouvidos.
Quando chegou no local, não houve dúvida: a magia fluía de um conjunto de pedras altas e disformes, dispostas de forma circular e bem espaçadas entre si. Cada pedra tinha diferentes escritos em runas e em vários idiomas desconhecidas por Iria, ela reconhecia apenas as letras do idioma comum, mas não as palavras que formavam. A magia estava incrustada nas pedras de uma maneira que Iria havia visto apenas uma vez: no poderoso colar mágico que sua rainha, Titânia, usava.
Observando o local, duas coisas eram óbvias: Aquele era o local indicado pelo Sr Pistachio, e apenas um feiticeiro muito poderoso poderia ter feito um trabalho tão duradouro e permanente. Iria também percebeu que o sortilégio ali presente não era nem bom nem ruim, apenas era.
A pequena fada adentrou o círculo de pedras e pousou bem no centro, assim que seus pézinhos tocaram o chão, percebeu que ali, escondida por ervas daninhas e terra, se encontrava outra pedra. Com um gesto, invocou uma forte lufada de vento que limpou a sujeira quase por completo, revelando uma pedra sextavada, entalhada com runas e linhas que formavam um complexo círculo de magia.
Ela não tinha grandes conhecimentos arcanos, mas com um pouco de dedução e tentativa e erro - tocou nas pedras, sentiu seu fluxo de magia, lembrou das runas ensinadas por uma fada feiticeira há muito tempo - chegou a conclusão que deveria ativar a pedra central primeiro. Com cautela, tocou a runa no centro da pedra, que significava “início” e deixou um pouco de sua magia fluir para a pedra. Imediatamente, a runa acendeu com um leve brilho azulado, e era como se todo o conjunto de pedras acordasse de um longo sono, a magia começou a fluir da pedra central para as demais e vice versa.
Agora Iria estava realmente perdida. Tinha ativado o círculo de magia, mas não sabia para que ele servia, muito menos como utilizá-lo! Sentou-se com as pernas cruzadas bem no centro da pedra de ativação, com a mão no queixo e analisou a situação. Resolveu que deveria ativar uma das pedras do círculo, assim como tinha feito com a pedra central.
Escolheu a pedra com o conjunto de runas que mais lhe agradava os olhos. No idioma comum lia-se “Elaodrin”. Levantou-se e voou até ela e ao encostar em sua superfície, um leve distúrbio aconteceu: os escritos entalhados na pedra escolhida brilharam, e uma forte onda de magia pulsante surgiu da pedra sextavada. Por instinto, Iria se dirigiu de volta ao centro, e, quando adentrou o círculo de magia, a luz piscou uma, duas, três vezes, e a cada pulso a magia aumentava cada vez mais. No terceiro pulso um grande clarão ofuscou a visão de Iria, e uma sensação de náusea e desorientação a invadiu. Fechou os olhos com força, e, quando os abriu novamente, não reconheceu nada que estava em sua volta - se encontrava em um amplo salão sem janelas redondo feito de pedra, muito empoeirado e decadente. Havia bandeiras gigantes penduradas nas paredes, mas estavam desbotadas e comidas por traças, de muitas só restava o varão de ferro. Abaixo de seus pés estava uma versão ampliada da pedra sextavada da floresta, mas com muitas mais inscrições e um círculo de magia muito mais complexo. Acima, o teto era uma abóbada de vidro e ferro, a maioria dos vidros estava quebrado, o que explicava a lama que havia se formado em alguns pontos do salão. Deveria ter sido um local muito imponente, em seu auge.
Havia também uma única porta de duas folhas de madeira adornada com ferro, mas a fada nunca tinha visto algo tão massivo. A porta deveria ter a altura de três humanos em pé um em cima do outro. Uma das folhas estava entreaberta, e uma leve brisa vinha dali.
Passado o choque e náusea do ocorrido, Iria tomou fôlego e levantou voo. Ao bater suas asinhas de borboleta, uma pequena nuvem de poeira se levantou abaixo dela.
Esse era o momento que tanto esperou. O começo de sua aventura.
Foi cautelosa até a porta gigante e a atravessou.