VOAR ERA SEU ÚNICO REMÉDIO
Foi ainda na adolescência que ele descobriu que podia voar. E sempre que o ambiente ficava pesado, batia as asas e ganhava os ares feito um passarinho! Pegava uma corrente de ar, enroscava-se e depois esticava o corpo, mãos juntas e pés também, como um peixinho no céu-oceano. Lá de cima, apreciava a beleza das paisagens, sem envolver-se na mesquinhez dos acontecimentos cotidianos, que tornam a vida aqui embaixo insuportável.
Agora, já no meio da casa dos trinta, o que ainda o intriga é não conhecer outra pessoa que o imite. Alguém que também saiba voar. E não compreende como as pessoas conseguem viver sem isso. Como é possível não sufocarem na atmosfera densa, poluída e triste existente ao rés do chão? Mas, enfim, dizem que a vida é feita de escolhas... Vai ver, todo mundo escolheu diferentemente dele.
Um problema, nos dias atuais, são as geringonças modernas a infestarem os ares, tornando o sobrevoo de áreas urbanas uma prática perigosa e não mais apenas divertida. Os tais drones, então, são uma ameaça constante! Em várias oportunidades, esteve muito perto de chocar-se com um deles, o que poderia ter-lhe causado ferimentos ou a morte. Isso o levou a desenvolver um escudo anti-drones, tarefa que o ocupou por várias semanas, durante as quais esteve entocado no "quartinho das invenções", que fica nos fundos do jardim. Justifica o sacrifício com a certeza de que nada supera o indescritível prazer de voar.
Nesta manhã, teve um surto de lucidez e flagrou-se a pensar que sua vida talvez não passe de alucinação. Coloca em dúvida a própria capacidade de voar. Recusa o café que a esposa lhe põe à frente e sai para o jardim, de onde pretende decolar. Mas não consegue sair do chão. Em grande aflição, corre em busca do escudo anti-drones. Se o encontrar, fica claro que ele voa e essa incapacidade deve ser temporária. Dirige-se ao "quartinho das invenções", onde não chegará.
Pela metade da manhã, a mulher estranha que ele não tenha voltado para o café. Chama o filho do casal, de sete anos, e juntos vão a procura do homem. Encontram-no caído, a três passos da porta do "quartinho". Está morto, em posição fetal - e seco -, como se atingido por um raio, na calma azulada da manhã. O filho adentra o quartinho e vê, sobre a mesa de trabalho do pai, o objeto cônico, feito de material transparente e ultrarresistente, dotado de empunhadura e bracelete na parte interna. Na superfície externa do cone, cadáveres de minúsculos insetos e marcas de atrito com impurezas da atmosfera.